E como é nelas que se decide o jogo do poder nas democracias, mesmo as melhores redações do planeta, com raríssimas exceções, tornaram-se totalmente imunodeficientes ao assédio do jornalixo. Fernão Lara Mesquita:
Havia menos de 50 jornais nos EUA em 1776 e mais de 250 em 1800. Eram muitos milhares na virada do século 19 para o 20.
Com
a decolagem esfuziante dos Estados Unidos nos primeiros ¾ do século
passado, depois de derrotado o nacional socialismo, o conceito de
democracia foi universalmente adotado, ao menos como sonho. Até as
ditaduras do internacional socialismo precisavam vender-se como
“democracias excessivas” e incluir no seu figurino institucional
elementos que ao menos se parecessem com instituições democráticas.
O
jornalismo e sua ”freguesia” resistiram bravamente apesar do
persistente mutirão do jornalixo desde Walter Duranty, progressivamente
subsidiado pelo trabalho da “intelligentsia orgânica”, que se foi
tornando hegemônica nas universidades e nas artes na medida em que ia
desaparecendo a memória viva das duas Guerras Mundiais.
Para
“justificar” o massacre de cada década – o da China, o de Cuba, os da
Europa do Leste, os do Sudeste Asiático, o da Coréia do Norte e da China
de Xi Jinping – usou-se primeiro os termos de Gramsci. Mas admitir que
onde está bem plantada ela só pode ser destruída por dentro, a partir de
uma deliberação da maioria contra si mesmo, e que só uma trapaça pode
produzir esse efeito, o resumo da tese do teórico comunista italiano e a
definição da essência do jornalixo, homenageia a superioridade moral da
democracia que seus inimigos sempre lhe negaram ao longo do século 20.
Depois
da internet a luta contra a democracia “burguesa” se foi paulatinamente
transformando, de uma disputa entre verdades concorrentes, na
destruição do próprio conceito de verdade, o que inclui o reconhecimento
da relação indissolúvel entre democracia e verdade.
Mas essa história, como toda a História da Humanidade, pouco tem a ver com racionalidade.
A
legislação que restringia o crescimento sem limites das empresas
proprietárias de rádios, TVs e jornais nos Estados Unidos foi reforçada
em 1975, a data que marca o apogeu da democracia.3, pela Federal
Communications Comission, uma agência criada nos anos 1930 não para se
preocupar com conteúdos, mas para regular o uso das concessões de
frequências de rádio e, mais tarde, também de TV.
Sempre
sob ataque e roídas aqui e ali, as regras da FCC de 75 sofrerão o
primeiro golpe fatal sob os eflúvios da “bolha” da internet e da
ignorância dos legisladores sobre a nova tecnologia e suas implicações,
com o Telecomunications Act de Bill Clinton de 1996.
Sob
a pressão dos produtos a preço vil do trabalho quase escravo e do roubo
de propriedade intelectual dos sobreviventes do socialismo convertidos
ao “capitalismo de estado” inundando seus mercados e matando empregos,
os legisladores americanos, na mais absoluta dúvida sobre o que fazer,
inverteram o ônus da prova contra a acumulação de poder na mídia. O
parágrafo 202 determinava que o FCC revisse suas regras a cada dois anos
“modificando as que não conseguisse demonstrar serem de interesse
público”.
A
“razzia” resultante começou pelo setor de rádios. Entre 1996 e 2002
operações de fusão e incorporação envolveram mais de 10 mil emissoras.
Ao fim daquele ano, apenas três grandes cadeias já controlavam 80% dos
ouvintes e do mercado publicitário.
Sob
o silêncio da mídia diretamente interessada no processo, cada nova
fusão aprovada na Justiça criava um precedente em favor de regras “mais
realistas” para um mundo onde a opção era “crescer ou morrer” para opor
monopólios aos monopólios chineses. “A multiplicação dos sites de
informação”, diziam, “compensa de longe a quantidade de rádios, jornais e
TVs fechados ou fundidos”. Ficava debaixo do tapete o “pormenor” de que
esses sites, como até hoje, não produzem nem apuram informação, apenas
reproduzem e debatem as que a imprensa profissional levanta ou qualquer
aventureiro inventa.
Na
“era Bush” o FCC deixa cair a máscara. Cumprindo um prazo legal
convoca, em plena mobilização do país para a Guerra no Iraque, uma
votação de seus cinco membros em 2 de junho de 2003 e derruba o embargo à
propriedade cruzada de jornais e TVs, extende para 45% o limite de
audiência das grandes redes, altera as exigências para a propriedade de
múltiplos canais e tipos de TV. E tudo se passa sob exemplar “patrulha
do silêncio” conforme medido pelo Project for Excelence in Journalism.
As três grandes redes de TV mencionam o assunto pela primeira vez apenas
na véspera da votação.
Em
1983 quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa
independente nos EUA, Ben Bagdikian, reitor da Berkley Graduate School
of Journalism, mostrou que os americanos se informavam, naquele momento,
com base em notícias produzidas por 50 empresas diferentes. Em 2004, na
7a revisão do livro, sobravam só seis conglomerados gigantes, com
faturamento de bilhões, que não eram nem empresas de informação nem
empresas de entretenimento. Possuiam TVs, jornais, rádios e editoras;
produtoras e distribuidoras de filmes; gravadoras e distribuidoras de
musica assim como empresas promotoras de shows; times esportivos e
estádios onde se dão os campeonatos que só elas transmitem, e assim por
diante…
A
crise do modelo de negócio das empresas jornalísticas completou a
aniquilação da cultura do jornalismo democrático que se vinha apurando
no processo orgânico descrito nesta série entre os praticantes dessa
arte e seu público não traduzível em manuais de melhores práticas de
gestão corporativa. O poder e as prioridades, nessas empresas, passaram
das mãos das áreas de jornalismo – de quem se esperava o comportamento
de um fiscal do poder público orientado por um sentido fundamentalmente
ético – para as áreas administrativas – de quem se exige o comportamento
de agentes implacáveis da expansão da riqueza de um grupo de
acionistas. E como é impossível, mesmo para jornalistas experimentados,
controlar à distância uma redação que lida com uma realidade nova a cada
fato e tem de processá-los em questão de horas, para um administrador
de empresas, que dessa história toda contada até aqui não sabe nem uma
linha e, em geral, tem raiva de quem sabe, isso é absolutamente
impossível.
E
como é nelas que se decide o jogo do poder nas democracias, mesmo as
melhores redações do planeta, com raríssimas exceções, tornaram-se
totalmente imunodeficientes ao assédio do jornalixo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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