A realidade está ao nosso favor; não dos camisas vermelhas que acham que catolicismo é coisa de branco. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Ficar
trancado em casa lendo notícia faz mal para a cabeça. Já que eu não
posso tirar o Sr. Polzonoff da casa dele e levá-lo para dar um passeio
num local agradável, porque ele mora muito longe, talvez eu deva contar
dos festejos que vi este domingo, na véspera do ataque de racialistas
negros à Igreja de Nossa do Rosário em Curitiba. O texto dele sobre isto foi deprê demais.
Burrice com PhD
Vemos
esse tipo de notícia e temos que aprender a ser burros para entendê-la.
É preciso esquecer, por exemplo, que a Igreja tem santos negros desde
antes da descoberta do Brasil. Que a Santa Ifigênia, princesa da
Etiópia, é representada com a Igreja na mão, dada a sua importância nos
primórdios do cristianismo. De novo, este país de formação católica está
muito acostumado a reverenciar uma mulher negra antes de vir uma mana
de cabelo rosa e argola de boi no nariz querendo nos ditar ordens. Se
alegarem que Santa Ifigênia não é uma santa das mais populares, digo que
este não é o caso de São Benedito, negro nascido na Sicília à época do
descobrimento do Brasil. Sua devoção saiu da Europa, atravessou o
Atlântico e encontrou aqui os africanos que fizeram a mesma travessia.
Mas
os negros católicos nem sempre se organizavam levando em conta a cor do
santo. A padroeira preferida foi justo a Nossa Senhora do Rosário. Em
Salvador, Cachoeira, Rio de Janeiro e Olinda existem igrejas homônimas
chamadas Igreja Nossa do Rosário dos Pretos. Em São Paulo e no Recife,
há as homônimas Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos.
Como
os bem-nascidos da sociedade colonial não queriam se misturar a
descendentes de escravos e a ex-escravos, a cor era uma barreira para o
ingresso em ordens terceiras (leigas) e enterros privilegiados. Assim,
em vez de chorar e pedir cota, esses negros bem-sucedidos criaram tais
igrejas e irmandades. Justamente sob a padroeira Nossa Senhora do
Rosário, atacada pelos camisas vermelhas.
É
preciso uma burrice deliberada, estudada, falsificadora da realidade,
para dizer que catolicismo é coisa de branco. Basta entrar numa igreja e
olhar quem está lá dentro. Se a demografia do local não for atípica
(como uma área de colonização ucraniana, por exemplo), a igreja estará
recheada de pardos. A pessoa precisa dividir o mundo entre coisa de
preto e coisa de branco, o que dá um trabalho danado. Curiosamente,
porém, nenhum desses racialistas considera que a Universidade veio da
Europa, de modo que só poderia ser branca.
E
de fato, se você quiser repetir barbaridades racistas, é mais fácil
granjear apoio de uma Fundação Ford (a este respeito, leia-se “Uma Gota
de Sangue”, de Demétrio Magnoli), que vai bancar seus estudos num desses
departamentos gringos de Black Studies, do que da senhorinha parda que
está assistindo à missa, ou vendo o povo do terreiro ir entregar
oferendas.
No lugar errado, segundo os cálculos
E
aqui chegamos à necessidade de dar uma voltinha. Olhando-se de uma
perspectiva calculista, eu poderia dizer que estou no pior lugar do
mundo. O racismo negro avança, e eu sou uma branquela sozinha num dos
lugares mais negros do Brasil. Para piorar, os racialistas botaram uma
universidade aqui durante o petismo. A nova universidade atraiu ninguém
menos que Kabengele Munanga
para morar na cidade (tive a informação, mas nunca o vi pessoalmente).
Para piorar mais ainda, vivo num estado governado pelo PT, que reserva
uma área da administração para ser parquinho de racialistas. A
Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) foi criada
por Lula em 2003 e deixou de existir no plano federal. Na Bahia, temos
uma Secretaria da Promoção da Igualdade Racial (Sepromi), uma Seppir
estadual (e eu sei que a expressão “igualdade racial” foi usada em
oposição ao antirracismo porque um militante histórico assim me contou:
ele queria vender ao governo uma campanha contra o racismo e a Seppir
estava disposta a tratar consigo, desde que não usasse a palavra
“racismo” e trocasse por “igualdade racial”. Como era um homem sério e
um legítimo antirracista, recusou-se a abrir mão da palavra racismo).
A
minha posição, em tese, deveria ser impossível. Se eu conduzisse a
minha vida com base nas informações supracitadas, estaria desesperada,
achando que preciso de um local muito bem policiado e de maioria branca
para viver. Mas a minha posição serve, antes, para mostrar que essa
gente não tem tanto poder quanto acha.
A rua lá fora
Estou
na minha casa, lendo sob a janela, quando ouço chamarem o meu nome. É o
pintor de paredes, um negro retinto que estava todo vestido com as
cores da Etiópia – até a máscara. Avisa que virá fazer o serviço depois
de terminar de pintar uma garagem e põe o papo em dia. Pergunto pelo
dono do bar, que está meio sumido desde as cirurgias da vista. Ele
especula que hoje o velho apareça, por causa da festa de Oxum que
haveria entre uma, uma e meia, quando o rio enchesse. Aproveito para
saber por que não houve nada no 2 de Fevereiro, contando que achei
estranho não ter nada para Iemanjá. Ele responde muito enfático que 2 de
Fevereiro é em Salvador, porque é Iemanjá e Iemanjá é água salgada. Como aqui é água doce, é Oxum.
Este
é um conhecimento básico que eu já tinha. Por isso mesmo eu achei
estranho, já que, desde a construção da barragem, a água do rio nesta
altura é salobra. Deixei para averiguar in loco.
Calculei
que, se ele dizia que ia ser uma, uma e meia, devia ser de duas em
diante. Não foi difícil encontrar o ponto da festa: havia ramos de
palmeiras decorando a descida para o ancoradouro e, mais adiante, na
praça, uma estrutura coberta protegendo cestões cheios de flores. Eram
as oferendas. Pergunto a alguns conhecidos para quem era a festa. A
resposta já variou: Oxum e Iemanjá. Vi passando o atarefado ogã e fui
perguntar a ele. A resposta foi: Oxum, Iemanjá e Nanã.
Um
ogã está encarregado de permanecer sóbrio nos rituais, cuidando da
ordem. Este, em particular, prefere se dizer zelador, que, a
acreditarmos nele, é a tradução do iorubá. E devo dizer também que este é
um funcionário da Sepromi. No entanto, sua conduta não aponta indício
nenhum de racismo ou racialismo. Sempre foi gentil e cordial comigo.
Eu
não tenho dúvidas de que não faltariam negros ateus e universitários
para ocupar o lugar dele no cargo. Mas, como eleição é algo que ainda
importa, alguma autoridade deve ter preferido fazer uma média com
terreiros em vez de botar um acadêmico chato que deixasse todo mundo com
raiva. Eu não tenho dúvidas de que o projeto original da Sepromi era
promover separatismo racial. Mas o resultado é um funcionário público
religioso que fica cuidando da vida em comunidade e conhece as pessoas
todas. Mutatis mutandis, é o Padroado.
A
minha primeira saída serviu apenas para coletar informações. Avistei
atabaques, que, pelo lugar onde estavam, eu ouviria de casa quando
começasse. Os laçarotes amarrados nas árvores eram amarelos, sinal de
que a festa deveria ser tradicionalmente para Oxum até a barragem (o
pintor de paredes é velho e pegou esse temp). A homenagem a Iemanjá deve
ser novidade pós-barragem e Nanã, olhando no Google, dá para descobrir
que é dos pântanos. Tem pântano no rio.
Ouvindo
os atabaques horas mais tarde, saio outra vez de casa. Vi na praça
celebrações de candomblé que eu só tinha visto em aquarelas de Carybé.
Creio que em Salvador essas festas não ocorram na rua, mas somente
dentro de terreiros. Mulheres de saia rodada e turbante dançavam em
círculo com homens de gorro, enquanto uma pequena orquestra de atabaques
batucava e um homem cantava músicas religiosas em iorubá. Num dado
momento, os dançarinos pegam os cestões e levam a um saveiro – tem que
ser saveiro, uma embarcação arcaica, que navega sem motor.
O
público era parecido com o de uma igreja católica, até porque é o
mesmo. Há uma porção de velhinhas, inclusive a minha vizinha, que
demorei a conhecer por causa da máscara com um santinho barroco
impresso. A propósito, por aqui há muitas máscaras e camisas com fotos
de esculturas de santos barrocos. Suponho que sejam distribuídos pela
paróquia, e o público usava.
Num
dado momento, a praça deu uma esvaziada por causa de outra procissão
(ou cortejo, como chamam) que vinha trazer oferendas. O público ficava
comparando os dois festejos e logo escolheu um ponto do qual dava para
avistar ambos. Houve quem se preocupasse com a quantidade de cânticos
por orixá, que poderia acabar só na vazante e impedir a entrega de
oferendas. Ouvi também que os elogiados saveiros vinham de Coqueiros e
Nagé. E ouvi até jovens confabulando sobre o ConectSUS, dizendo que a
melhor vacina era a coronavac.
Apreciação da realidade
O
burburinho e os comentários mostram que na rua há gente normal, até
quando praticam uma religião tão diferente da da maioria dos leitores
deste jornal. Os cânticos em iorubá mostram a força da espontaneidade
cultural: não bonito uma língua ter se preservado em condições tão
adversas?
Hoje eu poderia fazer um texto bastante ranzinza usando a cobertura que a Folha deu à invasão da igreja. Mas já sabemos que os jornalistas da Folha vivem numa bolha.
A questão é se nós queremos viver. Se a aceitarmos, estamos perdidos.
Não teremos sequer forças para cobrar a punição dos marginais que
desrespeitaram o culto em Curitiba.
O
medo impede a apreciação da realidade. A realidade está ao nosso favor;
não dos camisas vermelhas que acham que catolicismo é coisa de branco.
Vá dar uma voltinha, sente numa praça, e duvido que não haja algo bonito
para ver. Ficar em casa só lendo notícia é que não pode.
PS:
Após escrever os primeiros parágrafos, vi o vídeo de ontem de Alexandre
Garcia. Nele, descobri que a Igreja invadida é Nossa Senhora do Rosário
dos Homens Pretos. Eu poderia ter corrigido, mas Polzonoff gosta de PS.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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