Não foram apenas as sondagens produzidas nas últimas semanas que erraram. Foi também, mais geralmente, a percepção que cada um de nós, independentemente das preferências partidárias, tinha do país. A crônica do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Não
me lembro de outras eleições como estas. Mal foram comunicadas as
primeiras sondagens à boca das urnas, todas as expectativas foram
invertidas: o PS estava muito próximo da maioria absoluta que acabou por
obter. E quando digo “todas as expectativas” quero mesmo dizer “todas
as expectativas”: as dos votantes, sem distinção de partidos, e as dos
votados, também sem distinção dos partidos. Claro que em muita gente
havia o desejo que o PS obtivesse maioria absoluta. Mas o desejo é
apenas um ingrediente de uma expectativa. Para que a expectativa se
forme é necessário que contemos, além do desejo, com várias condições
que apontem para a verosimilhança da sua satisfação. E ninguém contava
que tantas condições se reunissem assim, conjuntamente conspirando para a
maioria absoluta.
Não
foram apenas as sondagens produzidas nas últimas semanas que erraram, o
que acontece frequentemente. Foi, mais geralmente, a percepção que cada
um de nós, independentemente das preferências partidárias, tinha do
país que se revelou profundamente inadequada. Inadequada a um tal grau
que as expectativas por essa percepção engendradas foram frustradas logo
às primeiras notícias. E isso, repito, tanto para aqueles para quem a
maioria absoluta do PS foi uma dádiva dos céus como para aqueles para os
quais foi um duche gelado. Resumindo. A surpresa não deve ter sido
muito menor para António Costa do que para Rui Rio.
O
que é particularmente interessante em tudo isto é mesmo a dimensão da
inadequação da percepção comum à realidade. Não sou “cientista político”
e nem sequer sou dotado de grande imaginação para conceber “cenários”.
De facto, perco imediatamente o pé quando me pedem para os imaginar. Não
é só ficar paralisado pelo medo de errar: é que me falta por inteiro a
capacidade para os ver à minha frente e para os ponderar. Mas gostava a
sério que os inúmeros “cientistas políticos” que para aí andam, que são
muito entendidos nestas coisas, nos explicassem como uma tão grande
inadequação entre a percepção colectiva da realidade política e a
realidade política propriamente dita pode ter tido lugar.
Porque
as explicações que nos foram oferecidas ficam muito longe de nos
satisfazer no capítulo. Elas, no fundo, colocam-se ao nível daquilo que
qualquer pessoa minimamente atenta ao que se passava podia, sem
dificuldade, conceber. Por exemplo, que o PSD, tendo laborado, sob Rio,
no erro – um entre muitos – de se apresentar como um partido de
centro-esquerda, tenha afastado de si um grande número de eleitores
potenciais. Isso explica, sem dúvida, a derrota do PSD, que era
verosímil, por mais que a sua vitória tenha parecido, a certa altura,
igualmente possível. E o mesmo se pode dizer do “voto útil” à esquerda.
Tal ajuda a perceber a vitória do PS e a derrota do PSD, não a sua
escala e a conquista da maioria absoluta por parte do PS. Esta era, à
partida, declaradamente inverosímil. Para todos, repito mais uma vez.
Como
não é lícito invocar nestas matérias o puro acaso, é preciso buscar uma
razão qualquer que dê satisfatoriamente conta da inadequação entre a
percepção comum e a realidade. O que convida a uma certa especulação.
Uma especulação sobre as vítimas do costume: os portugueses. Como os
portugueses, com as suas singularidades todas, são muito parecidos com
os outros povos, é preciso cuidado com estas coisas. Não tenho
conhecimento de qualquer característica nacional que nos incline
fatalmente para uma irracionalidade que frustre sistematicamente
qualquer previsão racional sobre o nosso comportamento político. Deve,
portanto, haver alguma racionalidade oculta na realidade que escapou à
nossa percepção e que frustrou as nossas expectativas.
“Racionalidade”
significa aqui, modestamente, a boa consequência lógica de um acto por
relação a um desejo. Ora, conhecido o acto – o voto na maioria absoluta
do PS -, é preciso perguntar qual o desejo. E receio bem que a natureza
desse desejo seja, no fundo, simples de explicar. É, banalmente, o
desejo que nada mude, porque toda a mudança é vista como inevitavelmente
mudança para o pior. A maioria dos portugueses não quer mudar nada. A
mudança inspira medo a uma sociedade frágil e insegura que não confia na
sua própria força. Não é uma explicação muito sofisticada, eu sei, mas,
na sua banalidade, é verosímil. E, à sua maneira, dá conta de um
comportamento que apresenta alguma racionalidade. Se eu me sinto frágil e
inseguro, quero tudo menos meter-me em aventuras para as quais não
julgo ter forças suficientes.
É
claro que caberia ao PSD persuadir os portugueses que a mudança é
desejável e que os portugueses teriam força para a levar a cabo. Mas Rui
Rio foi feito para tudo menos para isso. Em tudo o que ele disse e fez
não havia a mínima indicação nesse sentido. Mesmo ficando-nos pelos
vários debates, digam-me onde é que ele exprimiu, com um mínimo de
convicção, qualquer desejo de mudança? Prometeu apenas que faria melhor
do que Costa – e provavelmente faria. Mas o “melhor” era aqui uma
continuação do mesmo. Eram uns ajustes aqui, uns consertos ali. Porquê
correr o risco, o pavoroso risco, de mudar? Nada do que disse inspirava o
ânimo para a mudança, sobretudo num país que parece radicalmente avesso
a ela. Jogou no mesmo e teve a desagradável surpresa de recolher o
mesmo na dose forte da maioria absoluta do PS.
Estou
obviamente a especular ao oferecer esta explicação um pouco selvagem
para a radical inadequação entre as expectativas maciças da percepção
comum e a realidade que se veio a verificar, inadequação essa que foi o
facto mais singular destas eleições. O que eu gostaria mesmo era de ter
uma explicação a sério dos muitos politólogos que por aí há. Por isso, o
que escrevi antes sobre o medo de mudar como factor determinante oculto
deste comportamento eleitoral, mais do que uma tentativa de explicação,
deve ser entendido como uma pergunta que lhes é dirigida: como é que
nos conseguimos colectivamente enganar tanto?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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