O fim da miséria é nossa fronteira civilizatória, no século XXI, tanto quanto o foi, no século XIX, o fim da escravidão. Fernando Schüler via Veja:
A
imagem causou algum impacto. Um homem ainda jovem, Luis Vander,
agachado, catando um resto de carne, no caminhão. “Vai aí e pega uma
pelanquinha”, diz ele, “salga e manda pra casa.” Luis é morador de rua
na Glória, pedaço do Rio que cansei de cruzar quando trabalhava ali
perto, na Cinelândia. Vez por outra encontrava pessoas morando na rua,
como quase todo mundo encontra nas grandes cidades brasileiras. É o país
da vergonha, com o qual já nos acostumamos. Marcelo Neri, da FGV,
contabiliza 13% da população vivendo abaixo da linha de miséria. Para
quem alimentou a expectativa, uma ou duas décadas atrás, de que
eliminaríamos a miséria e daríamos um “salto civilizatório”, não deixa
de ser um soco na cara.
A
pobreza é um tema que muita gente evita, me disse um colega, porque
acentua uma sensação de impotência sobre o país. A miséria caiu de 20%,
no início dos anos 1990, para algo próximo a 6%, em 2014, e muita gente
acreditou que as políticas sociais eram a chave desse processo. Quando
da crise de 2014/2016, em apenas um ano perto de 2 milhões de
brasileiros cruzaram, para trás, a linha da miséria. Descobrimos que a
chave era o crescimento econômico. A transferência de renda importa, mas
não decide o jogo. Ela reduz o que Sendhil Mullainathan chama de
“armadilha da escassez”, o círculo vicioso que inibe os muito pobres a
dar os passos difíceis (buscar um emprego, estudar) para superar a
própria miséria.
O
tema é incômodo, mas necessário. O fim da miséria é nossa fronteira
civilizatória, no século XXI, tanto quanto o foi, no século XIX, o fim
da escravidão. Essa intuição estava já contida na social-democracia e na
tradição liberal. Pensadores liberais como Milton Friedman se bateram
pela ideia de um imposto de renda negativo, e Hayek deixou claro que sua
“ordem espontânea” deveria assegurar uma renda mínima, que ele definiu
com “um piso abaixo do qual ninguém deveria cair”.
Martin
Luther King produziu uma boa síntese dessas tradições. Depois dos
direitos civis, ele dedicou seus últimos anos ao combate à pobreza, que
via como o próximo desafio a ser enfrentado pela América. Lançou a “Poor
people’s campaign”, percorreu o país fazendo sermões e planejava uma
gigantesca marcha sobre Washington para aprovar uma espécie de lei dos
direitos civis contra a pobreza. Acreditava que a lei e o direito tinham
um papel a cumprir aí, se a América quisesse assegurar a cada um a
“vida, a liberdade e a busca da felicidade”, como estava escrito na
Constituição.
Em
1967, King discursou em Stanford dizendo que o desafio da pobreza era
muito mais difícil do que o dos direitos civis, que diziam respeito à
igualdade formal e a uma questão de “decência”. Do direito de um negro
“pedir um hambúrguer e um café” em uma lanchonete como qualquer cidadão.
O desafio agora era alcançar uma “igualdade genuína”, que nada tinha a
ver com a quimera da “igualdade de renda”. Dizia respeito ao que é
essencial à vida. Em primeiro lugar, um país não segregado.
Assustava-lhe o espectro de uma América feita de bairros negros cercados
de subúrbios brancos. Em segundo, o acesso de todos a “um salário
decente” e uma “renda mínima garantida”. Andava irritado com o enorme
gasto do governo com uma guerra estúpida, no Vietnã, e para levar o
homem à Lua em vez de aplicar o dinheiro “com os dois pés no chão, aqui
na terra”. E desconfiava que muita gente graúda que havia apoiado os
direitos civis tiraria o time de campo diante dessa nova agenda. Foi com
essa angústia que ele se foi, naquele dia triste de abril, em Memphis.
De
certo modo, andamos na mesma batida no Brasil. Temos direitos elegantes
inscritos na Constituição que mal se realizam na vida real. Nosso mundo
político, lá no fundo, dá muito pouca bola ao tema da pobreza. Basta
observar como encaramos a provisão de serviços pelo governo. Virou
lugar-comum dizer que aeroportos e as áreas de infraestrutura são muito
importantes e por isso não podem ficar nas mãos da burocracia pública.
Nas mãos da burocracia pública só devem ficar as escolas, os postos de
saúde e as creches públicas. Casualmente tudo que nossa elite, e
virtualmente todos que tomam decisões, na política, há muito se
habituaram a comprar no setor privado.
O
ponto é que os mais pobres não formam um grupo de pressão no mercado
político. Você vai a Brasília e observa o lobby dos bancos, dos juízes,
policiais e guardas municipais. Vê o lobby dos professores públicos,
igrejas evangélicas e da Zona Franca de Manaus. Vê inclusive o
auto-lobby dos políticos, emplacando o fundão eleitoral. Só não encontra
o lobby dos mais pobres, dos pais de filhos em escolas públicas, e
muito menos o dos brasileiros como o Luis Vander, que vagueiam à noite
pelas ruas da Glória, no Rio, em busca de uma pelanca ou algo melhor
para saciar a fome. Costumamos disfarçar o tema da pobreza sob a ideia
da “desigualdade”. É como se o importante fosse a distância entre os
recursos das pessoas, e não se essas mesmas pessoas têm o suficiente
para viver. Se você nascer no Maranhão terá perto de 20% de chance de
crescer em uma casa com serviço de esgoto sanitário; nascendo em São
Paulo, as chances irão a 90%. O importante é a diferença de 20% para 90%
ou o fato de que 80% das pessoas, no Maranhão, ainda não têm o acesso?
O
tema da desigualdade é sexy na arena política. Ele se presta a uma
retórica de combate. O tema da pobreza não. Ele está apenas distante do
universo de prioridades de quem decide, seja no governo, seja no mundo
da opinião política. É muito mais fácil obter audiência falando em
“taxar os mais ricos” ou amaldiçoando a fortuna do Jeff Bezos do que com
um debate sem graça sobre a multidimensionalidade da pobreza,
indicadores sociais e legislações inteligentes, como o recente marco do
saneamento básico, facilitando investimentos e já sinalizando resultados
reais para os mais pobres.
O
foco de qualquer política social deve ser ajudar as pessoas a andar com
as próprias pernas. Não seremos uma grande civilização sem vencer a
miséria, mas também não o seremos mantendo as pessoas presas ao Estado.
Por isso a atualidade da agenda de Martin Luther King. Direitos iguais e
acesso universal a recursos muito básicos, que no fundo sabemos quais
são.
E
a utopia de um governo que gaste “com os dois pés no chão”, deixando o
caminho mais livre possível para que cada um, a partir das próprias
escolhas, conduza sua jornada em “busca da felicidade”.
Publicado em VEJA de 13 de outubro de 2021, edição nº 2759
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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