Todos os grandes empresários que rezam a cartilha do progressismo têm carta branca para atropelarem os Estados democráticos. (Sobre a Uber, lembrem que ela mandou cartinha para os clientes xingando-os de racistas. Como toda Big Tech, é progressista). Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
A
esquerda mudou muito em pouco tempo. Antes ela tinha ares de
catolicismo enrustido: fazia apologia da pobreza e da vida comunitária,
lembrando um monastério. Seu antissemitismo ocasional também lembrava o
antissemitismo católico: via os banqueiros judeus roubarem o tempo,
enriquecerem de maneira ilícita por não trabalharem o solo. Usura era
pecado.
Todos
esses cacoetes católicos medievais foram substituídos por uma postura
de nouveau riche: nada mais bonito que usar roupa de grife e ostentar
como prova de empoderamento. Quando consegue alguma posição de status, a
discrição está fora de questão. E até mesmo as bem-nascidas, outrora
cheias de complexos e culpas, usam suas grifes sem medo de ser feliz: o
correto seria todos terem dinheiro para comprar grifes. Se você nasceu
pobre, ter uma Louis Vouitton é símbolo de justiça social. Se você
nasceu rica, ter uma Louis Vuitton significa que você tem algo que
deveria ser de direito de todos. O fato de algumas andarem com bolsas
baratas é culpa do capitalismo.
De
minha parte, não vejo muita diferença entre esse povo e aqueles
funkeiros do tráfico que ficam ostentando marcas de luxo. Se o
“comunismo” desse povo me desse uma Louis Vuitton, eu venderia e
seguiria usando a minha Luís Vitão: uma bolsa de couro de bode da qual
gosto bastante.
Ao
escolher minha bolsa de bode, eu apoiei o artesão que vende couros na
Ladeira da Barroquinha. O artesanato vendido ali é em parte feito na
oficina do dono, e em parte trazido de todo o Semiárido, sendo os mais
coloridos e elaborados os cearenses. São feitos por brasileiros livres.
Se eu escolhesse uma Louis Vuitton, bancaria uma das muitas grife
europeias que usam mão de obra escrava dos campos de concentração chineses.
Posso dizer que o fetiche dos esquerdistas (e funkeiros) com marcas de
luxo é ególatra, além de indiferente a um genocídio real.
Ficamos
assim: a esquerda, que antes emulava as virtudes monásticas da
austeridade e da vida comunitária, hoje é nouveau riche e ególatra. É
como se a caricatura do capitalismo pintada pelo esquerdista monástico
tivesse ganho vida dentro da própria esquerda. O dinheiro não faria
acabar a solidariedade entre os homens? Os conservadores costumavam se
contrapor apontando a caridade privada. Mas aí estão os esquerdistas fãs
de marcas que usam trabalho escravo, sem darem a mínima para isso. O
esquerdista monástico diria que o capitalismo aliena. O esquerdista
nouveau riche prova que sim.
Esquerda pró-corporações
Temos
hoje, então, uma esquerda que adora marcas de luxo e não tem vergonha
disso. Daí não se segue, porém, que isso tenha feito dela uma apoiadora
do livre mercado que possibilitou o surgimento de tais marcas. São como
crianças mimadas querendo que um Grande Protetor satisfaça seus desejos.
A
novidade é que esse protetor não necessariamente é o Estado. Pode ser
um empresário iluminado. Hoje vemos coisas impensáveis para a década de
2010, que são esquerdistas em coro elogiando empresários, destituídos de
qualquer tipo de ceticismo. O PT fez Joesley Batista e Eike. No
entanto, daí não se seguiu que Joesley fosse vendido ao público como um
grande homem capaz de moralizar a sociedade. A coisa é diferente com
Luiza Trajano, que de oligopolista do varejo foi alçada a luminar do
pensamento social, ungida à qual devem se curvar as leis. A Constituição
e as leis trabalhistas proíbem a discriminação racial em contratações —
mas Lulu do Magalu pode tudo, e leis podem ser atropeladas para que ela
abra uma vaga de estágio black only. Nada que os “operadores do direito” não resolvam com uma hermeneuticazinha.
Se
repararmos bem, os oligopolistas estão, com uma hermenêutica aqui, um
lobby ali, uma vista grossa acolá, atropelando as leis criadas pelas
democracias liberais. Vejam o caso dos aplicativos de motoristas: são
baratos, são eficientes… e não pagam imposto. Qualquer empresário
brasileiro tem que pagar bastante imposto, mas Travis Kalanick (dono da
Uber) pode repassar os custos para os motoristas e enganar o fisco de países de todo o mundo com empresas de fachada.
Não
estou dizendo que o sistema tributário brasileiro é bom; não estou
dizendo que táxi é melhor do que Uber; não estou sequer tratando de
legislação trabalhista. Estou dizendo que todos os grandes empresários
que rezam a cartilha do progressismo têm carta branca para atropelarem
os Estados democráticos. (Sobre a Uber, lembrem que ela mandou cartinha
para os clientes xingando-os de racistas. Como toda Big Tech, é
progressista.) O cuidado mais elementar que todo Estado tem é com o
fisco. Se vemos o Estado tolerar a evasão fiscal explícita, é porque o
problema é grave.
Mas
voltemos à caracterização dessa esquerda nouveau riche. Seu sonho é ser
bancada por empresário, ganhar salário alto e viver em luxo. Em vez de
querer viver diretamente do Estado, como o concursado à moda antiga, o
esquerdista se tornou um sócio do empresariado progressista. O
empresariado fica encarregado de arrancar o máximo possível do dinheiro
de impostos, o esquerdista fica encarregado de tornar isso legítimo na
opinião pública. Depois o empresário dá ao esquerdistas migalhas capazes
de bancar a sua vida de classe média alta. Pode inclusive bancar
veículos de comunicação quebrados por falta de público. E quem trabalha?
Ora, os uigures lá em Xinjiang.
A direita também mudou
Desde
a redemocratização, a direita mais visível é a liberal. São os fãs de
Roberto Campos que se mantiveram fiéis ao seu legado liberalizador, que
se opunha ao espírito estatista da Constituição de 1988. A direita era
associada ou à defesa do regime militar, ou à ideia de Estado Mínimo.
Com
o avanço do progressismo sobre as instituições, com a suspensão dos
diretos humanos e garantias individuais que veio à tona com a pandemia,
de repente a direita começa a ser caracterizada pela conservação do
Estado democrático de direito tal como o conhecemos, que inclui a
liberdade de expressão.
Creio
que os velhos termos “direita” e “esquerda”, hoje, mascarem uma divisão
nova. Chamamos de “esquerda” quem é a favor da usurpação do Estado pelo
empresariado progressista e de “direita” quem é a favor da preservação
de um Estado democrático com eleições livres e limpas.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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