A razão parece-me simples, ainda que profundamente desconcertante: Bond, o personagem, representa tudo aquilo que as teorias críticas consideram detestável. Diana Soller para o Observador:
Não
sou particularmente fã da série 007. Terei ido uma ou outra vez ver um
dos filmes da saga ao cinema, mas era, acima de tudo, um programa de
família na altura em que se alugavam cassetes VHS no videoclube. Porém
ouvi dizer tanta coisa acerca deste episódio do espião mais famoso de
sua majestade, a personagem criada por Ian Fleming, em 1952, e
engrandecida no cinema por atores carismáticos e “efeitos especiais”,
que lá fui ver com os meus próprios olhos. E é verdade. James Bond foi
assassinado pelo politicamente correto e pelo puritanismo selvagem.
O
James Bond que conheci era um incrível agente que desafiava todas as
leis da física, sobrevivendo a saltos entre aviões, explosões que não
deixavam tijolo sobre tijolo e lutando contra vilões mais fortes e
poderosos com a sua força física mas também com inteligência e argúcia
(e a ajuda das armas não testadas de Q.). Mas também era uma personagem
cheia de “vícios”. Desobediente à autoridade, frio mas sedutor,
irritantemente autoconfiante, um incorrigível bon vivant, sempre rodeado
das mais bonitas mulheres, sem nunca se apaixonar por nenhuma, um copo
de Martini na mão, os melhores carros (devidamente espatifados em cada
filme), os melhores fatos, que ficavam sempre impecáveis no fim de cada
luta, e o uso e abuso do sarcasmo e da ironia. Em tudo Bond era uma
exagero. E por isso era uma personagem. Não mais que isso, uma
personagem. Nunca ninguém no seu perfeito juízo olhou alguma vez para o
007 como “um homem real” ou como um exemplo a seguir.
O
Bond de “No Time to Die” não é uma personagem. É um homem. Envelhecido,
apaixonado, movido por bons sentimentos, alheado de mulheres bonitas,
destituído da sua licença para matar, solitário, deprimido, infeliz, mas
capaz de grandes gestos altruístas. Nada a obstar, não fosse esta
substituição abrupta de um velho conhecido por um homem vulgar que não
conheço de lado nenhum. A questão é: porquê esta transformação? Para quê
matar Bond e substituí-lo por Daniel Craig (desta vez cheio de papos e
rugas) a fazer não-sei-de-quem?
A
razão parece-me simples, ainda que profundamente desconcertante: Bond, o
personagem, representa tudo aquilo que as teorias críticas (descritas
mais detalhadamente aqui)
consideram detestável. É a hipérbole do “opressor”. Como tal, é preciso
retirá-lo do grande ecrã, porque assim exige a higienização da
sociedade que estes movimentos querem fazer.
Estes
movimentos não estão bem definidos, embora haja associações de cidadãos
que se identificam com a chamada “justiça social” ou “política
identitária”. Mas talvez mais importantes sejam os “agentes” (para usar a
expressão de Hans Noel) que, formados em universidades onde estas teses
são cada vez mais populares – especialmente nos Estados Unidos –
entraram no mercado de trabalho. Estes instalaram-se em posições de
poder e, ou por pressão social, ou por acreditarem nestas ideias, são
atores que têm como objetivo dar passos rumo à transformação das nossas
sociedades numa visão utópica em que as “franjas sociais” (esta é
roubada a Foucault) passam a ser detentoras de poder. Por outras
palavras: em vez de tentar corrigir injustiças, como têm feito as
sociedades democráticas com maior ou menor sucesso, os adeptos destas
teses querem alterar de forma absolutista as estruturas institucionais e
sociais nas quais vivemos. Nada menos lhes serve que subverter por
completo a hierarquia em que os opressores (designados por
características de nascimento relacionadas com a etnia, classe social,
género, preferências sexuais, etc.) e os oprimidos (também escolhidos da
mesma maneira) trocam de posições. Nada deve restar do que há nos dias
de hoje porque os “oprimidos”, reduzidos à sua opressão durante séculos
de história, nada mais merecem do que a visão utópica de uma nova
hierarquia social. A morte figurada de Bond no ecrã e as personagens que
se prevê que o substituam são uma alegoria perfeita desta transformação
social.
Roger
Scruton chama a atenção para o “Newspeak” (Fools, Frauds and
Firebrands, 2015), uma tática usada pelos marxistas que se manteve
durante os séculos e continua a ser usada pela “justiça social”.
Trata-se da criação de um jargão alternativo ou da mudança de
significado de expressões de uso corrente (“justiça social” é um bom
exemplo) com a finalidade de transformar a realidade através da
linguagem. E que mais não é um filme do que linguagem?
Para
pensadores e ativistas destas teses – sempre preocupados com
significados – Bond merecia morrer. Não com um tiro, mas pela
destituição de todas as características que fazem dele a personagem que
é. Para quem vê o mundo à maneira da justiça social, Bond encerra em si
todos os pecados, todas as características que têm de ser extirpadas da
sociedade. Se lhes restam dúvidas, vão ao cinema. E reparem nas duas
senhoras que têm um bocadinho do Bond que conhecíamos. São mulheres, uma
hispânica, uma afro-britânica. Essas podem, purificadas pela sua
condição de oprimidas.
“007
No Time to Die” é uma grande metáfora do que as teorias críticas e a
“justiça social” querem fazer da nossa sociedade. Vale a pena ver o
filme. Mas como um documentário do que poderemos vir a ser, se nada for
feito para travar este novo messianismo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário