Integrantes da CPI da Covid se articulam para que uma cópia do relatório final da investigação parlamentar seja enviada ao TPI (Tribunal Penal Internacional), em Haia, na Holanda.
Pretendem atribuir ao presidente Jair Bolsonaro condutas que, na avaliação deles, configuram crime contra a humanidade, um tipo penal avaliado pela Justiça internacional.
A insistência em tratamentos sem eficácia (o que contribuiu para o elevado número de vítimas da pandemia, mais de 600 mil), o atraso na vacinação e a desassistência aos povos indígenas são algumas das acusações.
Levada adiante, avaliam senadores, a estratégia de acionar o TPI tem potencial para ampliar o desgaste à imagem de Bolsonaro no mundo, ainda que não produza resultados jurídicos.
Em 2019, Bolsonaro foi denunciado à corte internacional pela Comissão Arns por “crimes contra a humanidade” e “incitação ao genocídio de povos indígenas” do Brasil. A peça segue sob análise até hoje sem desdobramento que seja de conhecimento público.
Especialistas em direito internacional consultados pela reportagem e que estudam o funcionamento do TPI avaliam como reduzidas as chances de o relatório final da CPI prosperar caso ele seja despachado para Haia.
“Não vejo com facilidade”, afirma Alexandria Alexim, professora de direito internacional da Universidade Cândido Mendes, do Rio de Janeiro.
“Até porque não existe jurisprudência. Eu procurei no TPI e não vi julgados semelhantes. A Covid, a pandemia, são questões muito novas para o tribunal internacional”.
O TPI entrou em atividade em 2002, a partir de um tratado internacional, o Estatuto de Roma. O Brasil endossou o tratado e se submeteu à jurisdição do tribunal, está na Constituição.
A corte internacional surgiu da necessidade de dar uma resposta a crimes em larga escala, como os genocídios. Tem em seu histórico a análise de várias atrocidades cometidas por ditadores em países do leste Europeu e da África. Já determinou a prisão de alguns deles.
A professora da Cândido Mendes explica que podem ser apresentadas ao TPI denúncias relacionadas a três tipos penais previstos no direito internacional: genocídio, crime contra humanidade e crimes de guerra.
Quanto aos fatos sob apuração da CPI, Alexim descarta a possibilidade de enquadramento como genocídio, termo muito presente no discurso dos adversários do governo federal, mas os associa ao crime contra a humanidade.
A legislação internacional diz que é crime contra humanidade, entre outras condutas, “ato desumano de caráter similar que cause intencionalmente grande sofrimento ou danos sérios, físicos ou mentais ou à saúde”.
Foi com base nesse trecho que um grupo de juristas, liderado pelo ex-ministro da Justiça Miguel Reale Junior, um dos autores do pedido de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), apontou a responsabilidade de Bolsonaro nas mortes decorrentes da pandemia em recente manifestação enviada à CPI.
Assinaram também o documento, que deve ser anexado ao relatório final da comissão, a juíza aposentada Sylvia Steiner, que atuou no TPI entre 2003 e 2016, e os advogados e professores universitários Helena Regina Lobo da Costa e Alexandre Wunderlich.
O grupo afirma que há indícios suficientes para demonstrar que a população do Amazonas, em especial a de Manaus, “foi submetida a um experimento pseudocientífico para provar-se a tese da imunização de rebanho pela administração de medicamentos sem qualquer eficácia na prevenção ou tratamento da Covid-19”.
Aponta também que há “elementos probatórios razoáveis para acreditar que houve, por parte do governo federal, em especial por parte do presidente da República e do ministro da Saúde, um ataque dirigido contra a população indígena”.
“Ataque” perpetrado, diz ainda a manifestação do grupo de juristas, por meio de “uma política de Estado de adoção de medidas concretas e de omissões deliberadas que resultaram no número de contaminações e de mortos entre as populações indígenas proporcionalmente superior ao que atingiu as populações urbanas”.
A exemplo do que ocorre nos sistemas jurídicos dos países, incluindo o Brasil, a documentação a ser submetida ao TPI passará por um juízo de admissibilidade (ato de aceitar ou não o pedido), a partir da análise de alguns pré-requisitos.
Um dos requisitos de admissibilidade é a demonstração de que há inação ou omissão por parte das autoridades do país encarregadas de investigar a pessoa implicada, afirma o professor da Faculdade Metodista Granbery e advogado criminalista Thiago Almeida.
“Para que uma postulação junto ao TPI tenha um potencial maior de sucesso, esse é um dos elementos que deve estar demonstrado”, afirmou.
“Se não há vontade das instituições em fazer Justiça, seja por motivo de ordem política, econômica ou outra qualquer, se há alguma blindagem, é aí que começamos a pensar em chamar a jurisdição internacional”.
No Brasil, a autoridade encarregada de investigar o presidente é o procurador-geral da República, cargo hoje ocupado por Augusto Aras, reconduzido ao posto pelo chefe do Executivo.
Aras é criticado pela oposição de atuar alinhado aos interesses do Palácio do Planalto e de se limitar a abrir apurações preliminares sobre a conduta do presidente que não rendem sequer inquéritos.
“A Procuradoria [junto ao TPI] vai avaliar o caso e estará atenta, em primeiro lugar, à postura do Brasil”, disse Almeida.
Segundo ele, é prematuro falar em inação de autoridades brasileiras porque o relatório da CPI —e as imputações que nele constarão contra governantes, agentes públicos e outras pessoas— sequer está pronto. Ademais, é difícil demonstrar que as instituições foram incapazes ou omissas em realizar o seu trabalho.
Para além de resultados jurídicos, avalia o especialista, o envio do relatório a Haia e a repercussão que a iniciativa vai criar junto à comunidade internacional podem ser parte de cálculo político.
“Não diria que [o envio do relatório ao TPI] seja meramente simbólico porque não é 0% a chance de haver investigação na corte. Mas, também, não é uma coisa que vai acontecer automática ou instantaneamente”, disse Almeida.
Estadão Conteúdo
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