As palavras também têm suas biografias, autorizadas e não autorizadas, e ambas esclarecem muitas coisas. Deonísio da Silva para a Oeste:
Eça
de Queiroz mostrou com deboche e graça impagáveis as contradições da
República francesa, que, em nome da República e da Liberdade, proibiu
Termidor, drama escrito por Victorien Sardou mostrando quanto tinham
sido cruéis os atos de certos líderes da República praticados no século
anterior em nome da Liberdade e da República. A peça teve uma única
exibição e foi imediatamente proibida pelo governo, em nome da República
e da Liberdade, como funesta para a República e para a Liberdade.
Cecília
Meireles, na obra-prima que é Romanceiro da Inconfidência, dirá: “Ai,
palavras, ai, palavras, que estranha potência a vossa! / todo o sentido
da vida principia à vossa porta; / o mel do amor cristaliza /
seu perfume em vossa rosa; / sois o sonho e sois a audácia, /
calúnia, fúria, derrota...”
Prezados
leitores, vocês sabem em que ano estamos? Em que ano estavam os
fascinantes autores citados que, em séculos diferentes, transfiguraram
cada qual em seu estilo temas e problemas do terrível século 18? Pois o
Brasil atual vive um contexto semelhante, e as palavras parecem ser
outras, ainda que sejam as mesmas.
Ora,
estamos em 2021, mais de dois séculos depois da famosa Revolução
Francesa e da Inconfidência Mineira. O ano de 2021 é fruto de um erro
consolidado, uma fake news avant la lettre, que se tornou verdade ao
contar o tempo a partir do ano do nascimento de Jesus Cristo. Há fake
news que pegam e fake news que não pegam. E naturalmente há entre elas
erros de designação, pois algumas são tratadas como fake news sem o ser e
outras são designadas como verdades inquestionáveis, mas podem ser fake
news. Elas se tornaram abundantes nesse tempo que pode ser contado de
outro modo.
A
História foi dividida entre a.C. (antes de Cristo) e A.D. (iniciais em
latim de Anno Domini, Ano do Senhor), cujo maior representante na Terra é
hoje o papa Francisco. O Sumo Pontífice, nomenclatura herdada do
poderoso Império Romano, assim como diocese e paróquia, bispo, padre,
pastor, presbítero etc., e o mundo que os cristãos criaram, seus usos e
costumes, é também seu líder e o maior influencer do mundo, com mais de
1,4 bilhão de seguidores.
Ainda
assim, representam pouco mais de 60% do povo cristão, hoje na marca de
2,3 bilhões de pessoas. É bom que sobretudo as autoridades saibam com
quantos e com quem estão mexendo quando mexem em coisas sagradas para
esse formidável exército de forças aparentemente desarmadas.
Podemos
dizer, entretanto, que vivemos em 2021 uma dupla era, convivendo aos
trancos e barrancos. A era das fake news e a era da pandemia.
Jesus
Cristo nasceu entre os anos 8 e 4 a.C., dizem respeitáveis
historiadores. De resto até o papa emérito Bento XVI sabe e atestou por
escrito que Jesus de Nazaré nasceu em outra data, provavelmente no ano
15 do reinado do imperador Tibério, embora os Evangelhos digam que foi
no de Otávio.
Há
outras formas de contar o tempo no Brasil, com ou sem pandemia.
Compulse qualquer decreto do presidente da República e você lerá ao
final dele: Brasília, tantos de tal mês de 2021, 200º da Independência e
133º da República. Você viu uma das duas por aí recentemente, a
primeira com seus penachos e sua coragem, obra da monarquia
luso-brasileira, e a segunda com a notória separação de Poderes que
marca o que a palavra dizia originalmente em latim para não ser fake
news, ser de fato república, isto é, res publica, coisa pública?
Todos
haverão de concordar, porém, que o Brasil e o mundo em que vivemos
estão no terceiro ano da pandemia, a não ser que a pessoa viva no mundo
da lua e ainda não se tenha dado conta de que tudo mudou com a doença
que inicialmente foi designada por covid-19.
Pandemia
é palavra que veio do grego, passou pelo latim, fez escala no francês e
chegou ao português. No berço, como indica seu étimo, designava apenas o
público, pela formação pan, todo, e demía, de demos, povo, como é
também o caso de democracia, palavra que tem o mesmo étimo acrescido de
cracia, de kratía, de krátes, poder; outra vez pelo francês démocratie.
Pandemia, quando surgiu, designava público, não doença ou peste.
Se
a palavra pandemia veio da Grécia antiga, aquilo que ela designa veio,
porém, da China atual. Com escalas em outros países antes de chegar ao
Brasil, o vírus mais temido hoje no mundo foi batizado pelos cientistas
Sars-CoV-2, abreviação em inglês de síndrome respiratória aguda
grave-coronavírus-2, causada por doença designada por covid-19,
abreviação em inglês de coronavirus disease 2019. A covide, palavra já
aportuguesada, assim como covidar e covidário, ameaçou levar meio mundo
para a cova. São velhos conhecidos dos cientistas esses vírus, agora em
edições revistas, atualizadas, consideravelmente ampliadas e perigosas.
Também
seu nome veio de longe. Somos filhos das antigas Grécia e Roma, não
saímos do mundo greco-latino e ele não sai de nós. Corona e virus são
palavras latinas, coroa e coisa nociva, respectivamente, e disease,
grega, significando doença, do latim vulgar dolentia, que dói, que o
latim culto designava por morbus, e está no português morbidez, mórbido,
morbosidade etc. É do mesmo étimo de mordere, morder no sentido de
matar ou causar dano.
As
palavras também têm suas biografias, autorizadas e não autorizadas, e
ambas esclarecem muitas coisas. Vírus veio do latim virus, sumo de
plantas prejudicial à saúde. Os antigos gregos o chamavam iós, veneno, e
o tomaram da raiz indo-europeia weiss, fluir, escorrer.
Entre
as voltas que as palavras dão, vírus já foi sumós, não um veneno, mas
um caldo escuro, mélas sumós, feito com carne de porco fervida no sangue
do animal, temperada com azeite e vinagre. Muito apreciada pelos
soldados, a sopa foi servida a seu senhor em Roma por um escravo que
tinha sido cozinheiro em Esparta. “Agora sei por que eles não temiam a
morte”, disse ele ao experimentá-la e cuspir.
O
cientista russo Dimitri Ivanovski, que em 1892 identificou pela
primeira vez o que entendemos por vírus, recorreu ao latim para
designá-lo, mas às vezes preferimos dar outros nomes às realidades. Um
dos exemplos é a preferência pelos pseudônimos do Diabo, cujo nome é
substituído por Coiso, e Coisa Ruim, entre outros.
Outras
vezes, palavras-chaves mudaram de significado. A primeira quarentena de
uma pandemia, imposta a viajantes que chegavam a Veneza, foi de 14
dias, embora o étimo da palavra indique o número 40. Outras quarentenas
atualmente podem ser de meses ou mais tempo ainda.
Lembremos, por fim, que na era das pandemias também as fake news podem matar, às vezes a verdade, por inconveniente.
Deonísio da Silva é professor e escritor, autor de Avante, Soldados: para Trás e De Onde Vêm as Palavras
BLOOG ORLANDO TAMBOSI
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