Ativistas trans dizem que o Brasil é o país mais transfóbico do mundo, mas seus dados permanecem indisponíveis para checagem independente. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Na
semana passada, a ANTRA, Associação Nacional de Travestis e
Transexuais, publicou mais um de seus relatórios anuais de vítimas da
transfobia. A cobertura da imprensa progressista, até o momento, tem
sido simpática e pouco crítica, com escolhas estilísticas praticamente
indistinguíveis do texto dos ativistas. Perguntas difíceis à ONG
simplesmente não foram feitas. Não se está negando a existência dos
crimes contra trans. O que se está criticando aqui é a falta de
transparência nos dados.
A
ANTRA é categórica logo no prefácio do relatório: “Em 2020, o Brasil
assegurou para si o 1º lugar no ranking dos assassinatos de pessoas
trans no mundo, com números que se mantiveram acima da média. Neste ano,
encontramos notícias de 184 registros que foram lançados no Mapa dos
assassinatos de 2020. Após análise minuciosa, chegamos ao número de 175
assassinatos, todos contra pessoas que expressavam o gênero feminino em
contraposição ao gênero designado no nascimento.” A ONG reclama também
de “subnotificação” e da ausência de coleta de dados por parte do
governo. Ela também afirma que a expectativa de vida de transexuais no
Brasil é de apenas 35 anos. Duvido desses números e dessas conclusões.
Na
última quinta-feira (28), para anunciar seu relatório, a ANTRA fez uma
transmissão ao vivo no canal do Fundo de População das Nações Unidas no
Brasil, com participação de uma representante desse órgão da ONU, do
embaixador da Noruega no Brasil e de duas líderes da ONG. Menos de 50
pessoas assistiram à transmissão. Fui uma delas. Os comentários da live
não eram muitos, portanto. Quem a administrou viu as perguntas que fiz.
Perguntei, por exemplo, por que os dados são fechados e só fornecidos em
particular, mediante uma aparente triagem biográfica do solicitante.
Mencionei, ainda, a checagem dos dados do Grupo Gay da Bahia e a taxa
exorbitante de 88% de erro nos dados, e perguntei se isso não criaria um
ambiente que torna estranha a não-publicação aberta desses dados de
violência por transfobia.
Fui
solenemente ignorado. A pessoa responsável por escolher as perguntas
precisou catá-las cuidadosamente em meio às minhas, evitando-as com
esmero. Outros comentaristas da live me responderam. Um deles disse que o
meu tom era “passivo-agressivo”. Respondi que não era minha intenção,
mas que ainda queria respostas às minhas perguntas. Outra mencionou algo
sobre a empregabilidade das pessoas trans, com o que concordei
entusiasmadamente, mas ainda querendo os dados. Só uma pessoa me
incentivou a ir atrás dos dados e checá-los.
Mas
só poderei fazer isso se a ANTRA publicar esses dados. Não gosto do
elitismo de ter que pedi-los em particular. Quero que qualquer pessoa
possa checar a minha checagem sem esforço. Mas pedi os dados, e, sem
surpresa, os ativistas ignoraram o pedido.
Rigor estatístico
Não
fiz só perguntas. Até concordei com a ativista da ANTRA quando ela
relatou que autoridades usaram os relatórios da ONG para alegar que as
mortes por homofobia caíram durante o governo Bolsonaro. Concordo com a
ANTRA que membros importantes desse governo têm um viés e uma
indisposição para com a população LGBT. Mas o que bate em governo também
bate em ANTRA. A razão pela qual o governo não pode afirmar uma queda
nas mortes por transfobia é que não se pode simplesmente pegar uma
porcentagem de mortes num ano, outra porcentagem em outro ano, com base
em amostra de qualidade questionável, ver uma diferença aritmética entre
as duas e alegar uma tendência social inteira. É preciso rigor
estatístico e eu me ofereci para ajudar com isso, o que também foi
ignorado.
A
falta de rigor estatístico sobre os dados que me negaram só posso
denunciar como um palpite informado. Mas outras afirmações posso
responder aqui e agora. A ANTRA está produzindo e propagando informações
falsas com o respaldo da imprensa e de sites progressistas como o
Quebrando o Tabu.
A
estimativa de que 1,9% de brasileiros seriam transexuais é uma orelhada
que ignora a literatura científica do tema. Não é possível haver 4
milhões de transexuais no país. Na live, Bruna Benevides, uma das
autoras do relatório da ANTRA, confessa que é difícil chegar ao número
total. Mas é curioso que se opte por uma sobre-estimativa evidente,
quando boas fontes sugerem que o total de transexuais de uma população
está mais próximo de 0,5% - que também pode ser um número exagerado.
Expectativa de vida
Mas
há coisa pior. A ANTRA falta com a verdade duplamente ao afirmar que a
expectativa de vida dos transexuais no Brasil é de 35 anos. Em primeiro
lugar, ao comparar esse número com a expectativa de vida geral dada pelo
IBGE, está-se comparando laranjas a bananas, já que o número da ANTRA
não é uma expectativa de vida, pois não foi calculado como se exige. A
ANTRA cita como fonte para esse número um estudo qualitativo com base em
apenas três pessoas, mas é até difícil descobrir exatamente de onde vem
essa estatística falsa. Trata-se apenas de uma fofoca com um número.
Este número foi repetido acriticamente pelo Google e por vários órgãos
internacionais, incluindo a ONU. Ágata Cahill, estudante de psicologia e
escritora que trata do assunto, parece ter matado a charada da origem
da estatística: é uma média de idade de assassinados, não uma
expectativa de vida.
Continuando
no relatório da ANTRA: não é possível que o Brasil seja o campeão dos
assassinatos transfóbicos. Como muitos aprenderam na pandemia, só se
pode comparar um país com outro levando em conta o tamanho de sua
população, por isso existem estatísticas como números de mortos por 100
mil habitantes. A ANTRA alega que o Brasil é o que mais mata transexuais
por serem transexuais com base em números absolutos.
Desmentida
pela agência Aos Fatos, a ANTRA respondeu mostrando que, em termos
relativos, o Brasil não está na frente. Mas continua repetindo a
afirmação alarmista enganosa. Outro problema com a afirmação é que os
números dos países que mais violam direitos humanos não são confiáveis.
Dizer que o Brasil é o pior entre todos é ignorar aqueles que não são
democracias com livre circulação de informações. Esse é um problema
sistemático nos números sobre direitos humanos: a percepção falsa de que
as democracias são piores que as ditaduras, pois as democracias são
mais honestas sobre seus números.
Ágata explora esse problema com mais densidade. Escreve ela:
“A
ANTRA justifica a conclusão ‘país que mais mata trans pelo 12º ano
consecutivo’ explicando (…) que +40% das mortes ocorrem em território
brasileiro. (…) O raciocínio é: entre 2008 e 2020, foram documentados
3.664 assassinatos motivados por transfobia no mundo, sendo 1.593 deles
no Brasil (43,4%). (…) [A própria] ANTRA pontua que ‘na maioria dos
países, os dados sobre a violência contra pessoas trans não são
produzidos sistematicamente’. Assimilar esse pormenor traz problemas
sérios para a narrativa do ‘país que mais mata’.
Existe
uma tendência contraditória em países democráticos, com razoáveis
liberdade de expressão e acesso à internet, de se acreditar estar numa
situação pior do que seus vizinhos justamente por terem maior exposição
aos próprios problemas e acesso filtrado aos dos outros países. O
obstáculo da subnotificação, embora tema-chave para tratar dos números
brasileiros, muito raramente é abordado pela ANTRA no contexto mundial.
(…) Não é difícil suspeitar o porquê. De acordo com a base de dados por
ela usada, entre 2008 e 2020, só foram documentados 18 casos de
assassinato por transfobia em TODO O CONTINENTE AFRICANO. (…) Apesar de
exceções como Irã e Tajiquistão, onde é 'permitido' ser trans (e não
gay) ou ambos, a regra no Mediterrâneo é tratar todos os LGBTs
igualmente: na base da pedrada. O número de casos nesses dois países,
curiosamente porém, é o mesmo do Afeganistão e Uzbequistão: 1.
O
número de assassinatos por transfobia no Iraque presentes na base de
dados (…) é 3. O da Arábia Saudita é 2. É estritamente proibido pensar,
sonhar em ser abertamente gay ou trans por lá. Conclusão: é verdade que
‘o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans no mundo pois 43%
delas ocorrem aqui’. Isso, claro, se você excluir 120 países da sua
conta e assumir que nos últimos 12 anos houve menos de 30 mortes na
África, Afeganistão e Arábia Saudita juntos”.
Motivações ocultas
Não
gosto de ter que usar a minha identidade. Mas acredito que devo
fazê-lo, já que, em vez de responder às minhas perguntas, alguns
questionam somente minhas motivações (é um tema do pós-modernismo: a
falta de curiosidade por fatos e o excesso de interesse em adivinhar
motivações ocultas), e já que o movimento LGBT está cada vez mais
identitário, cada vez mais indisposto a ouvir críticas, e cada vez mais
faminto por impostos.
“A
correta coleta de dados sobre violência anti-LGBT no Brasil possui como
um dos obstáculos uma retórica que inocenta qualquer falha ou
desonestidade vinda de dentro e incrimina qualquer crítica vinda de
fora”, escreve Ágata. “Se numa determinada janela de tempo duas pessoas
trans são brutalmente assassinadas pelo mero fato de serem trans, mas é,
por algum motivo, noticiado que este foi o caso de cinco (…), qualquer
tentativa de corrigir esse erro será vista com maus olhos, e aqueles
envolvidos na denúncia serão inculpados de insensibilidade ou mesmo
conivência com tais crimes. ‘Por acaso duas mortes em vez de cinco é
algo a se comemorar? (…) Por acaso as vidas dessas pessoas, vítimas do
preconceito, não são importantes? Será que elas mereciam morrer? Quantas
mais de nós terão que partir antes que parem de diminuir nosso
sofrimento?’ É a mesma retórica repetida dia após o outro.”
Não
sou nenhum inimigo das pessoas trans. Mas eu não quero mais ser
confundido com pessoas que faltam com a verdade (por boas intenções?),
com o rigor científico e estatístico, mesmo que tenham o apoio da maior
parte da imprensa nisso. Não quero ser confundido com cusparadas que dão
capital político a quem eu não quero que seja eleito. Não quero ser
confundido com quem cria projeto de lei para remover toda e qualquer
mentoria médica do processo de transição, e é irresponsável e pouco
curioso a respeito da disforia de sexo na infância.
Só quero fazer o download dos dados.
Escola GGB de dados a serviço da narrativa
Tenho
grande interesse pelo fenômeno da transexualidade. Meu interesse é
profissional, pois a transexualidade envolve biologia e genética. Em
2014, dei uma palestra falando justamente sobre a biologia da
transexualidade. Minha palestra foi muito bem recebida. O presidente da
ABGLT, Toni Reis, se disse surpreso e maravilhado em aprender que a
biologia poderia ter algo a ver com o assunto. Entre os ativistas, a
biologia não é uma ciência popular – selecionam a dedo os biólogos que
diminuírem o papel da biologia a favor de afirmar que o que interessa é
“construção social”.
Não
creio, portanto, que eu seja um radical, muito menos alguém antipático à
causa trans. Mas duvido dos números e das conclusões da ANTRA. A razão
vem da minha experiência passada com os números de outra ONG.
Em
2018, fiquei alarmado com o caso do Daniel Reynaldo, agredido por
ativistas da UFRJ por ter ido a uma palestra fazer perguntas sobre a
qualidade dos dados de um dossiê de “lesbocídio” (assassinato de
lésbicas por serem lésbicas). Depois, ele foi censurado pela justiça por
fazer críticas às pesquisadoras responsáveis. Convidei Daniel e outros
três colegas para fazerem algo que, ao longo de quase 20 anos, ninguém
na imprensa nem na academia se dignou a fazer: checar, um a um, todos os
347 casos relatados como morte por homofobia pelo Grupo Gay da Bahia
(GGB). Escolhemos os dados referentes a 2016, disponibilizados no site
da ONG. Como o GGB colhe os dados da imprensa, assim como a ANTRA, era
só procurar pelas notícias-fonte, lê-las e julgar se houve morte por
homofobia realmente.
Seguimos
as orientações do FBI para definir crime de ódio. Não que elas sejam
diferentes da orientação do puro bom senso. Publicamos nosso relatório
em maio de 2019, com os seguintes resultados: 88% dos casos eram
inconclusivos ou claramente não motivados por homofobia. Descobrimos,
também, que a definição do GGB para “homofobia estrutural” era circular:
casos problemáticos foram incluídos nos dados, pois a homofobia é
estrutural, me dizia um dos fundadores da ONG, e a homofobia é
estrutural porque os dados do GGB assim mostram, dizia a ONG em
relatório para o governo.
Algo
de pouco rigoroso, no mínimo, acontece quando ativistas dão o sobrenome
“estrutural” a preconceitos que combatem. Esta Gazeta do Povo foi o
maior veículo a cobrir a notícia do nosso relatório. Os outros grandes
veículos nos ignoraram sumariamente, com exceção de um único colunista
do Globo. Tanto em 2019 quanto em 2020, as estatísticas anuais do GGB
continuaram sendo cobertas acriticamente pela maior parte da imprensa. É
esta a era em que o jornalismo decidiu que fake news são realmente
inaceitáveis.
Gostaria
de poder afirmar que a ANTRA faz um trabalho melhor que o GGB na coleta
de dados e publicação de conclusões sobre crimes de ódio contra LGBT.
Mas, até onde vi, o GGB serve de inspiração ao trabalho da ANTRA. Após
nosso relatório de checagem, o GGB passou a ocultar os dados em seu
site. A ANTRA faz o mesmo, dando a desculpa de que os dados não estão
abertos para evitar “mau uso” por “interesses políticos”.
Obviamente,
essas ONGs dizem em seus relatórios que mais recursos públicos devem
ser investidos em seu trabalho. Isso parece também um “interesse
político”. À parte isso, honestamente, me incomoda mais o consenso, que
vai muito além dessas ONGs, de que no Brasil todo tipo de problema
social só pode ter solução estatal. Sempre será estranho, para mim, que
alguém tenha essa preferência por gastar dinheiro tomado à força em vez
de buscar dinheiro dado de bom grado. Os ativistas se importam mais com
suas causas do que burocratas. Seria muito melhor que perdessem o
preconceito do financiamento privado e buscassem crescer fazendo think
tanks.
* Eli Vieira é biólogo geneticista com pós-graduação pela UFRGS e pela Universidade de Cambridge, Reino Unido.
** Texto escrito com a colaboração, dedicação e ajuda de Ágata Cahill.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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