É ao discutir as teorias mais gerais e fundamentais da física que a imprecisão da fronteira entre as ciências naturais e a filosofia se torna mais manifesta. Artigo de Lawrence Sklar, traduzido para Crítica na Rede por Desidério Murcho, Pedro Galvão e Paula Mateus:
A
demarcação das ciências naturais em relação à filosofia foi um processo
longo e gradual no pensamento ocidental. Inicialmente, a investigação
da natureza das coisas consistia numa mistura entre o que hoje seria
visto como filosofia (considerações gerais das mais vastas sobre a
natureza do ser e a natureza do nosso acesso cognitivo a ele) e o que
hoje seria considerado como próprio das ciências particulares (a
acumulação de factos da observação e a formulação de hipóteses teóricas
gerais para os explicar). Se olharmos para os fragmentos que nos restam
das obras dos filósofos pré-socráticos, encontraremos não só tentativas
importantes e engenhosas para aplicar a razão a questões metafísicas e
epistemológicas vastas, mas também as primeiras teorias físicas, simples
mas extraordinariamente imaginativas, sobre a natureza da matéria e os
seus aspectos mutáveis.
Na
época da filosofia grega clássica já podemos encontrar uma certa
separação entre as duas disciplinas. Nas suas obras metafísicas,
Aristóteles faz claramente algo que hoje seria feito por filósofos; mas
em muitas das suas obras de biologia, astronomia e física encontramos
métodos de investigação que são hoje comuns na prática dos cientistas.
À
medida que as ciências particulares, como a física, a química e a
biologia, foram aumentando em número, canalizando cada vez mais recursos
e desenvolvendo metodologias altamente individualizadas, conseguiram
descrever e explicar os aspectos fundamentais do mundo em que vivemos.
Dado o sucesso dos investigadores das ciências específicas particulares,
há muito quem pergunte se ainda restará algo para os filósofos fazerem.
Alguns filósofos pensam que existem áreas de investigação que são
radicalmente diferentes das que pertencem às ciências particulares,
como, por exemplo, a investigação sobre a natureza de Deus, sobre o “ser
em si” ou sobre qualquer outra coisa do género. Outros filósofos
tentaram de várias maneiras encontrar uma área remanescente de
investigação em filosofia que estivesse mais próxima dos
desenvolvimentos mais recentes e sofisticados das ciências naturais.
Segundo
uma perspectiva mais antiga, que foi perdendo popularidade ao longo dos
séculos sem nunca desaparecer inteiramente, existe uma maneira de
conhecer o mundo que nos seus fundamentos não precisa de depender da
investigação observacional ou experimental própria do método das
ciências particulares. Esta perspectiva foi influenciada parcialmente
pela existência da lógica e matemática puras, cujas verdades firmemente
estabelecidas não parecem depender, para que estejam garantidas, de
qualquer base observacional ou experimental. De Platão e Aristóteles a
Leibniz e aos outros racionalistas, passando por Kant e pelos
idealistas, e mesmo até ao presente, tem persistido a esperança de que,
se fôssemos suficientemente inteligentes e perspicazes, poderíamos
estabelecer um corpo de proposições que descreveriam o mundo e que, no
entanto, seriam conhecidas com a mesma certeza com que dizemos conhecer
as verdades da lógica e da matemática. Poderíamos acreditar nessas
proposições independentemente de qualquer apoio indutivo obtido de
factos específicos observados. Se dispuséssemos de um corpo de
conhecimento como esse, não teríamos atingido o objectivo procurado
durante séculos pela disciplina tradicionalmente conhecida por
“filosofia”?
Segundo
uma perspectiva mais recente, o papel da filosofia não é o de funcionar
como fundamento ou extensão das ciências, mas como sua observadora
crítica. A ideia é a de que as disciplinas científicas particulares usam
conceitos e métodos. As relações entre os diversos conceitos, embora
estejam implícitas no seu uso científico, podem não ser explicitamente
claras para nós. O papel da filosofia da ciência seria assim o de
clarificar essas relações conceptuais. Uma vez mais, as ciências
particulares usam métodos específicos para fazer generalizações, a
partir de dados da observação, em direcção a hipóteses e teorias. O
papel da filosofia, segundo esta perspectiva, é o de descrever os
métodos usados pelas ciências e explorar as bases de justificação desses
métodos, isto é, compete à filosofia mostrar que os métodos são
apropriados para encontrar a verdade na disciplina científica em
questão.
Mas
será que podemos diferenciar a filosofia e a ciência, a partir de
qualquer uma destas perspectivas, de uma maneira simples e directa?
Muitos especialistas sugeriram que não. Nas ciências específicas, as
teorias por vezes não são adoptadas devido apenas à sua consistência com
os dados da observação, mas também com base na sua simplicidade, força
explicativa ou outras considerações que pareçam contribuir para a sua
plausibilidade intrínseca. Quando constatamos isto, começamos a perder
confiança na ideia de que existem dois domínios de proposições bastante
diferentes: aquelas que são apoiadas apenas por dados empíricos, e
aquelas que são apoiadas apenas pela razão. Muitos metodólogos
contemporâneos, como Quine, estariam dispostos a defender que as
ciências naturais, a matemática, e até a lógica pura, formam um contínuo
unificado de crenças sobre o mundo. Todas elas, defendem estes
metodólogos, são indirectamente apoiadas por dados da observação, mas
todas contêm também elementos de apoio “racional”. Se isto for verdade,
não será a própria filosofia, vista como o lugar das verdades da razão,
uma parte do todo unificado? Isto é, não será também a filosofia apenas
uma componente do corpo das ciências especializadas?
Quando
procuramos a descrição e a justificação apropriada dos métodos da
ciência, parece que estamos à espera que os resultados específicos das
ciências particulares entrem de novo em cena. Como poderíamos
compreender a capacidade dos métodos da ciência para nos conduzir à
verdade se não estivéssemos em condições de mostrar que esses métodos
têm realmente a fiabilidade que lhes é atribuída? E como poderíamos
fazer isso sem usar o nosso conhecimento sobre o mundo, que nos foi
revelado pela melhor ciência de que dispomos? Como poderíamos, por
exemplo, justificar a confiança da ciência na observação sensorial se a
nossa compreensão do processo perceptivo (uma compreensão baseada na
física, na neurologia e na psicologia) não nos assegurasse que a
percepção, tal como é usada quando se testam as teorias científicas, é
realmente um bom guia da verdade sobre a natureza do mundo?
É
ao discutir as teorias mais gerais e fundamentais da física que a
imprecisão da fronteira entre as ciências naturais e a filosofia se
torna mais manifesta. Dado que elas têm a ambição ousada de descrever o
mundo natural nos seus aspectos mais gerais e fundamentais, não é
surpreendente que os tipos de raciocínio usados ao desenvolver estas
teorias altamente abstractas pareçam por vezes estar mais próximos dos
raciocínios filosóficos que dos métodos usados quando se conduzem
investigações científicas de âmbito mais limitado e particular. Mais
adiante, à medida que explorarmos os conceitos e os métodos usados pela
física quando esta lida com as suas questões fundamentais mais básicas,
veremos repetidamente que pode estar longe de ser claro se estamos a
explorar questões de ciência natural ou questões de filosofia. Na
verdade, nesta área da investigação sobre a natureza do mundo, a
distinção entre as duas disciplinas torna-se bastante obscura.
Lawrence Sklar
Philosophy of Physics (Oxford University Press, 1992).
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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