Redução de doses reservadas pela União Europeia com a AstraZeneca desencadeia reações indignadas e insinuações de represália. Vilma Gryzinski:
Briga
boa é aquela em que as duas partes têm uma certa dose de razão. É isso o
que está acontecendo desde que a AstraZeneca, farmacêutica anglo-sueca
com sede em Cambridge, anunciou que não poderia fornecer os 400 milhões
de vacinas contratados pela União Europeia.
Haveria
um corte de até 60% dos estoques previstos para o primeiro trimestre,
que cairiam de 80 milhões para apenas 31 milhões – um desastre.
Com
razão, as autoridades envolvidas estrilaram . E voaram insinuações de
que houve “desvio” de vacinas para o Reino Unido, que foi mais rápido e
pagou mais por elas, e que a exportação dos imunizantes poderia ser
submetida a controles.
Diante
do climão, foi até criada uma nova expressão, para caracterizar o
“nacionalismo supranacional”. O ápice da ironia, considerando-se que a
União Europeia tem como seu maior inimigo o nacionalismo, ao qual é
debitada a conta de terremotos como o Brexit, um dos panos de fundo das
atuais confrontações.
“A
Europa investiu bilhões para desenvolver as primeira vacinas contra
Covid-19 do mundo e criar um bem comum verdadeiramente global”, disse a
alemã Ursula von der Leyer, a presidente da União Europeia. “Agora, as
empresas têm que corresponder. Precisam honrar suas obrigações e é por
isso que vamos criar um mecanismo de transparência das exportações”.
Também conhecido, oficiosamente, como ameaça de controlar a venda de vacinas para além das fronteiras da União Europeia.
Isso
atingiria diretamente as vacinas da Pfizer fabricadas em Puurs, na
Bélgica. A Inglaterra estaria entre os primeiros afetados se a guerra
das vacinas chegasse a tal ponto, inimaginável em circunstâncias comuns.
Já
nas incomuns, como as atuais, existe até um precedente. Em março,
quando explodiu a crise do vírus, o bloco europeu impôs restrições às
exportações de máscaras e outros equipamentos de proteção individual.
A
AstraZeneca precisa explicar melhor as alterações com a mesma veemência
que investiu contra informações passadas por “fontes da coalizão” – uma
forma de dizer governo – a dois importantes jornais alemães, afirmando
que a vacina desenvolvida pelo laboratório em conjunto com a
universidade de Oxford tinha uma eficiência de apenas 8% em pessoas
acima de 60 anos.
Fake
news total: aparentemente, houve uma confusão com os dados fornecidos
pelos pesquisadores da Astra, indicando que, na fase de testes,
participaram 8% de voluntários na faixa dos 56 aos 69 anos.
Em
relação à falha no fornecimento ao bloco europeu, as explicações da
AstraZeneca sobre problemas de produção nas fábricas na Alemanha e na
Holanda foram consideradas “insatisfatórias” pela Comissão de Saúde da
UE.
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Detalhe:
a vacina Oxford/AstraZeneca ainda não foi aprovada pelos organismos
europeus, cuja burocrática lentidão também tem sido criticada.
Em
especial quando comparada ao Reino Unido (10% da população vacinada) e
Estados Unidos (6%), a taxa de 2% de vacinação na União Europeia é
considerada pífia.
Isso
dá, em números, sete milhões de vacinados em território britânico
contra 1,8 milhão na Alemanha, onde a indignação pelo “ritmo de lesma” é
maior porque foi um laboratório local, a BioNTech, que desenvolveu a
vacina com a parceira Pfizer, uma das grandes farmacêuticas americanas.
“O
contrato com o Reino Unido foi assinado antes e o Reino Unido,
naturalmente, disse ‘vocês vão nos fornecer primeiro’ e isso é muito
justo”, disse o CEO da Astra, o francês Pascal Soriot.
Ele
também ressaltou que as linhas de produção baseadas em território
britânico são mais produtivas porque também saíram na frente para
aprimorar seus processos, enquanto as fábricas na Alemanha e na Holanda
são as com “produtividade mais baixa da rede”. O problema aconteceu no
cultivo de células em larga escala para fabricar o insumo farmacêutico
ativo.
(As
vacinas da AstraZeneca destinadas ao Brasil são produzidas na Índia,
pelo Serum Institute, que terá uma fatia de um bilhão de doses no total
de três bilhões previstos pela farmacêutica para este ano).
A
Pfizer, que exporta para o âmbito europeu a produção de sua fábrica na
Bélgica, também teve problemas de atraso devido a adaptações para
aumentar a capacidade das instalações.
“A
situação é inaceitável”, protestaram os ministros da Saúde dos países
nórdicos. Quando nórdicos usam termos assim, a coisa é grave.
Mal
disfarçando a satisfação em ver os vizinhos europeus em situação
complicada, comentaristas ingleses partidários do Brexit usaram termos
nada compassivos como “república de bananas” e “era hipersurrealista da
guerra das vacinas”.
Podem
criticar de barriga cheia: praticamente toda a produção de vacinas
utilizadas no reino caminha para ser de fabricação local.
Mas
se a União Europeia interferir na entrega de 40 milhões de doses da
vacina da Pfizer que o Reino Unido comprou “legalmente e legitimamente”,
as relações entre a partes seriam “envenenadas” por toda uma geração,
engrossou o primeiro-ministro Boris Johnson.
A
coincidência entre a primeira fase da vacinação em massa e o
agravamento da pandemia, com o temor generalizado de que novas cepas
sejam mais deletérias ainda, esquenta os ânimos e causa disputas por um
motivo muito simples: todo mundo quer vacina e o mais rápido possível.
Atrasar sua distribuição e administração virou o mais mortal dos pecados.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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