Palavras da artista plástica Juliana Notari: "utilizo a arte para dialogar com questões que remetem à problematização de gênero a partir de uma perspectiva feminina aliada a uma cosmovisão que questiona a relação entre natureza e cultura na nossa sociedade ocidental falocêntrica e antropocêntrica". Deu pra entender? Coluna de Luciano Trigo para a Gazeta:
Água
Preta, município da Zona da Mata pernambucana com pouco mais de 35 mil
habitantes, já pode ter um motivo para se orgulhar: entrou para a
história da arte contemporânea por abrigar a obra “Diva”, da artista
plástica Juliana Notari. Ou não.
“Diva”
é uma vagina de 33 de metros de altura, 16 metros de largura e 6 metros
de profundidade. Como a artista explicou nas redes sociais, trata-se de
“uma enorme escavação em formato de vulva/ferida, recoberta por
concreto armado e resina”. Levou 11 meses para ficar pronta.
Juliana
explicou assim sua obra: “Em Diva, utilizo a arte para dialogar com
questões que remetem à problematização de gênero a partir de uma
perspectiva feminina aliada a uma cosmovisão que questiona a relação
entre natureza e cultura na nossa sociedade ocidental falocêntrica e
antropocêntrica. Atualmente essas questões têm se tornado cada vez mais
urgentes.”
E
conclui: “Afinal, será através da mudança de perspectiva da nossa
relação entre humanos, e entre humano e não-humano, que permitirá com
que vivamos mais tempo nesse planeta e numa sociedade menos desigual e
catastrófica”. (Não percebi onde está o sujeito da oração, mas tudo
bem.)
Pensei
em escrever um artigo falando sobre como é velho, surrado e
ultrapassado (e mesmo reacionário) o recurso de “épater”, de chocar o
público, empregado por artistas plásticos desde pelo menos o começo do
século 20, quando isso ainda fazia sentido. “Uma vagina, oh!” – como se a
representação de um órgão sexual ainda chocasse alguém, nessa altura do
campeonato.
Pensei
também em escrever sobre o desejo inconsciente por opressão – contra a
qual se rebelar e diante da qual se fazer de vítima – que, intuo, se
esconde por trás de toda atitude pretensamente transgressora (na arte
como na vida). Nada mais fácil, cômodo e sem risco que posar de herói da
resistência diante da fantasia de uma ditadura.
Pensei,
por fim, em fazer uma análise semântica do discurso da artista, que
justifica a obra por meio pela enunciação autocomplacente de uma
sequência de clichês que mais parece saída de um “gerador de lero-lero”.
Mas
acho mais interessante comentar a reação dos internautas à obra, já que
eles “problematizam” questões muito mais interessantes (e urgentes) que
aquelas que poderiam ser suscitadas por qualquer digressão teórica.
(Mas, para quem tiver interesse no tema, recomendo a leitura de meu
livro “A grande feira – Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea”;
foi lançado já há dez anos, mas a situação de lá para cá continua a
mesma.)
Estamos
no século 21! A arte não pode ficar presa a conceitos pré-modernos que
impunham às pessoas uma divisão binária e opressora determinada pela
anatomia!
Curiosamente,
são, por assim dizer, questões “contra-lacradoras”, isto é, que
questionam a lacração do ponto de vista da lacração, e não de um ponto
de vista conservador.
E
a primeira problematização que apareceu foi a seguinte: enorme
escavação? Concreto e resina? Obra cancelada por agredir a natureza!
Além do risco de acelerar a erosão do morro onde "Diva" foi escavada,
uma área verde foi esburacada e preenchida com concreto armado. Não
seria um crime ambiental? Onde estão os agentes do Ibama?
Outro
internauta chamou a atenção para o fato de que a vagina representada na
obra está mutilada, já que não tem clitóris. Mas pode ser o ângulo das
fotos. (Ou será uma referência à mutilação genital feminina que ainda
hoje vitima milhões de meninas e mulheres na África e no Oriente Médio?
Acho difícil, pois, como se sabe, para a “galera do bem” o Islã é
bonzinho, e o Cristianismo é malvado. Você já viu algum intelectual ou
artista brasileiro criticar a perseguição a minorias em países
islâmicos? Pois é.)
Um
leitor particularmente sagaz observou que a obra foi realizada usando
mão-de-obra exclusivamente masculina, o que me parece igualmente
problemático, por reforçar a divisão de papéis entre os gêneros: não
seria mais coerente usar mão-de obra feminina para combater a sociedade
ocidental falocêntrica? Além disso, uma vez que engenheiros e operários
homens envolvidos no empreendimento não têm "lugar de fala", eles não
devem ter podido dar sugestões para aprimorar a obra (incluir um
clitóris, por exemplo).
Por
sua vez, uma ativista trans ficou justamente incomodada com a obra, uma
vez que “Diva” reforça o estereótipo que associa as mulheres à vagina,
quando se sabe que hoje em dia muitas mulheres não têm vagina. Para
citar o intelectual Felipe Neto, “se você não sabe disso em 2020, você
precisa sair da bolha hétero e conversar com mais gente”. Estamos no
século 21, gente! A arte não pode ficar presa a conceitos pré-modernos
que impunham às pessoas uma divisão binária e opressora determinada pela
anatomia!
PS:
Mal acabei de escrever o texto acima, li que a artista responsável pela
obra “Diva” está sendo atacada nas redes sociais, com comentários
ofensivos e cheios de palavrões. Repudio totalmente essa atitude de
turbas que se aproveitam da suposta impunidade do ambiente virtual para
destilar seu ódio. Esse comportamento, infelizmente, vem se tornando
rotineiro, inclusive (mas não apenas) por parte daqueles que dizem
pregar a tolerância, mas são os primeiros a constranger, intimidar,
perseguir e esfolar covardemente quem pensa de forma diferente. Mais
inteligência e educação, por favor.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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