Sob a capa de ativista antirracista, Mamadou Ba mais não é do que um agente político. A luta antirracista mais não é do que nova semântica, essencial para reforçar a “luta pela transformação social”. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:
Nos
últimos dias, o espaço mediático foi conquistado pela controversa
discussão à volta das recentes afirmações de Mamadou Ba, autointitulado
ativista antirracista, que numa conferência digital sobre o “racismo e avanço do discurso de ódio no mundo”
transmitida no canal “Pensar Africanamente”, no YouTube, terá afirmado,
de forma tida como bombástica, ser necessário, por uma questão de
sobrevivência, e cita-se, “matar o homem branco”. Defendeu Mamadou Ba
que para se “evitar a morte social do sujeito político negro” é
necessário “matar”, não um homem branco qualquer, mas o “homem branco,
assassino, colonial e racista”.
Rapidamente
as redes sociais foram tomadas pelas habituais formas de luta
fratricida, na sua formulação digital, tendo a batalha mais épica sido
travada no Twitter entre os que questionaram o conteúdo eminentemente
racista das afirmações, e os que vieram contextualizar o pensamento de
Mamadou Ba como sendo meramente metafórico. Dentre as várias afirmações
proferidas ganharam visibilidade as de André Azevedo Alves, questionando
se [a]pelar publicamente à “morte do homem branco” conta como racismo e apelo ao genocídio”,
e as inúmeras respostas que recebeu de toda uma psitacista esquerda
unida, em Dolby Surround, justificando as intervenções de Mamadou Ba
como tendo sido proferidas no contexto do pensamento de Frantz Fanon.
Destaco, neste particular, as de Francisco Seixas da Costa que, com a
habitual acutilância e assertividade que marcam o seu alter ego virtual,
sentenciou: “Há
limites para a estupidez e para a desonestidade: quem não leu Frantz
Fanon e não sabe interpretá-lo, às tantas também deve achar que o
conceito freudiano de “matar o pai” deve ser levado à letra. Estudassem!”,
e as do Secretário de Estado da Energia, João Galamba, que numa
manifestação visivelmente freudiana, carregada de quilowatts, desabafou:
“Este senhor dá aulas a pessoas. Diz que é professor.”
Ora,
tendo-me eu interessado bastante ao longo dos anos pelo tema das
relações entre racismo, desigualdade e democracia, e lido com atenção e
sentido crítico a obra de Fanon e várias das suas expressões e
adaptações, decidi trazer para esta coluna reflexões que não são viáveis
nas limitações de carateres de uma rede social. Será a referência
pública à “morte do homem branco”, no sentido que lhe dá Fanon, uma
manifestação de racismo e um apelo ao genocídio, ou simplesmente a
expressão deve ser lida no sentido “metafórico”? Qual o sentido e o
alcance, em Fanon, da referência em questão? Será esta linha de
pensamento a mais adequada para combater o racismo, ou será esta “luta”
meramente instrumental, subordinada a uma ação política mais vasta? Será
Fanon um pensador a quem valha a pena, hoje, creditar méritos, seja no
plano das ideias, seja como expressão de pacifismo e símbolo
antirracista?
A
obra de Fanon flui entre o sociopolítico e o psicológico, sendo uma das
expressões mais conhecidas da chamada “psicopolítica”. Nascido em 1925,
é nos anos 50 que Fanon constrói uma narrativa de fusão entre as
correntes dominantes da psicanálise de Freud, o existencialismo de
Sartre, e o marxismo. Fanon escolhe para si uma politização explícita do
psicológico, trazendo uma série de preocupações e conceitos
ostensivamente psicológicos para dentro do registo do político. Fá-lo,
aliás, de uma forma bastante criativa e até poética, tendo inspirado
obras cinematográficas de inegável valia, como, entre outras, “La noire de“, do senegalês Ousmane Sembène (1966),
por muitos considerado o pai do cinema francês, ou produções mais
recentes, como o galardoado “Chameleon Street”, de Wendell B. Harris
(1989), ou o interessantíssimo “Frantz Fanon: Black Skin, White Masks”,
de Isaac Julien (1995). O pensamento de Fanon está intimamente ligado
também à realidade lusófona, tendo inspirado o importante filme, “Sambizanga”, de Sarah Maldoror,
mulher de Mário Pinto de Andrade (primeiro presidente do MPLA, afastado
por Agostinho Neto), produzido em 1972, adaptação duma novela de José
Luandino Vieira, A vida verdadeira de Domingos Xavier, que conta a
história de Maria, uma mulher que de cadeia em cadeia procura o seu
marido preso; ou a curta-metragem do brasileiro Aloysio Raulino, “O
Tigre e a Gazela”, de 1976, disponível online no portal oficial do PortaCurtas.
Nas
suas duas obras emblemáticas, Fanon procura perceber até que ponto a
psicologia humana está intimamente ligada a forças sociopolíticas e
históricas, construindo uma narrativa psicopolítica onde emprega
conceitos e explicações psicológicas e psicanalíticas para descrever e
ilustrar o funcionamento do poder, em particular, o colonial. Pode-se,
assim, a meu ver, concluir sem dificuldade que no plano argumentativo
não se apreendeu suficientemente a proposta de Fanon se não dermos
espaço para perceber – e no meu caso, rebater – o político dentro do
psicológico e o psicológico dentro do político.
Por
partes: é a meu ver inegável a importância da obra “Peau noire, masques
blancs”, (1952), como ensaio e proposta, sobretudo, como abordagem
teórica para tentar identificar os problemas da identidade negra em
contextos racistas e coloniais, bem como os vários complexos
psicoexistenciais e os seus efeitos prejudiciais, não apenas nos sonhos
dos negros, mas também na sua vida real. Não sendo a psiquiatria a minha
área de estudo, consigo, ainda assim, perceber o interesse do apelo e
da proposta feitas e aceitar sem dificuldade o impacto que a escravatura
e a colonização poderão ter tido na construção do imaginário das
pessoas de raça negra, e as implicações nos seus comportamentos. Fanon
diz ter rastreado as implicações dessa resposta – do negro que deseja
ser branco – nos domínios da linguagem, sexualidade, sonhos e
comportamento, encontrando em cada instância a persistência desse desejo
– a apropriação da língua e da cultura do branco, o desejo de um
cônjuge ou parceiro sexual branco, o sonho de ficar branco. É esse
conflito entre o desejo fundamental e a patologia que resulta da
impossibilidade de o realizar, que forma o ponto focal da análise de
Fanon, tão bem sintetizado no título “Pele Negra, Máscaras Brancas”. O
sonho de ficar branco, como condição neurótica é, porém, apresentado já
de uma forma mais figurada na obra “Os miseráveis da terra”, onde com
mais detalhe e sentido político se discorre sobre a “condição nervosa”
do status do nativo, os seus distúrbios de personalidade, e o conflito
que se gera entre um impulso ou desejo poderosos e a necessidade de o
reprimir. A “neurose da negritude” que Fanon nos apresenta é exatamente o
“sonho de ficar branco”, isto é, o desejo de atingir o nível de
humanidade concedido aos brancos em contextos racistas e coloniais, o
qual, porém, acaba reprimido pela impossibilidade de alguém concretizar
esse sonho, dentro de um corpo negro.
Sendo
a construção apelativa, sobretudo no contexto dos anos 50 e 60, a
primeira grande crítica que se pode fazer é que, ao contrário daquilo
que é o domínio da medicina, que enquadra os traumas e as neuroses
dentro dos limites da psicologia individual, a proposta de Fanon
extrapola tais ideias para fazer delas fenómenos psicológicos
explicitamente sociais, enraizados nos contextos históricos e políticos
específicos da colonização, onde as desigualdades sociais e políticas
estão na base do que poderia ser visto como um problema exclusivamente
intrapsíquico. Fanon defende, aliás, a existência de uma neurose
cultural, que visa manipular a dimensão inconsciente, assente numa
constelação de postulados e proposições que lentamente e com a ajuda de
livros, jornais, escolas e seus textos, anúncios, filmes, rádio, fazem o
seu caminho dentro da mente, empurrando o símbolo do Mal para tudo o
que é negro. Particularmente na Europa, “onde o negro [seria] o símbolo
do mal”, onde “concreta ou simbolicamente, o homem negro [representaria]
o lado mau do personagem”. O conceito de inconsciência coletiva seria
assim a melhor forma de explicar como o racismo pode funcionar de forma
herdada, compartilhada por todos os europeus ou brancos, consolidando-se
num sistema político de representações que projetam os arquétipos dos
valores mais baixos para serem representados pelo negro, assumindo a
negritude a fórmula do mal.
Acresce
que, como referi inicialmente, Fanon nunca quis limitar a sua análise a
uma dimensão psicológica, sendo antes, esta, instrumental da sua
proposta política. Fanon procura na psicanálise de Freud e nos seus
pressupostos científicos a justificação e o caldo necessários para
desenhar um negro oprimido, a expressão africana do proletário, que
ajudaria a calibrar o historicismo marxista para o tornar pertinente na
libertação colonial. Ora, é na fusão da análise psicológica com as
grelhas do marxismo e do existencialismo, na politização explícita do
psicológico, que radica o seu carácter violento. Violência esta que se
procura legitimar na ideia de opressão cultural e racial. Como muito bem
analisou o Rui Ramos aqui no Observador, o pensamento e a obra de Fanon
“[justificaram] (…) as violências dos colonizados sobre os colonizadores”,
nas guerras coloniais, mas também, digo eu, as ações criminosas de
grupos como o Partido das Panteras Negras, nos EUA, não sendo por isso
factualmente possível olhar para o seu legado ignorando o rastro de
sangue e dor que objetivamente inspirou.
A
recuperação da linguagem marxista assente no trauma e no conflito que
Fanon corporiza, responsável pela morte de muitos brancos e negros, tem,
porém, vindo a fazer o seu caminho nos últimos anos, sobretudo numa
certa Academia e em partidos políticos de franja. O pensamento de Fanon
faz, por exemplo, parte do cimento ideológico que suporta o Black Lives Matter
e os mais recentes movimentos de resistência que trouxeram o caos às
ruas do EUA, estando, assim, intimamente ligado a uma forma violenta, de
rutura, de combate ao racismo. Mamadou Ba faz desde longa data parte
dessa corrente. Sob a capa de ativista antirracista, Mamadou Ba mais não
é do que um agente político. Como o próprio abertamente afirmou,
a luta antirracista mais não é do que uma nova semântica, um novo
sentido para o conceito de “classe”, essencial para reforçar a “luta
pela transformação social (…)”. Mamadou Ba entende que é necessário
convocar para o “combate (…) categorias como a raça, a orientação sexual
e outras que tais” para assim se marcar a agenda política da esquerda.
Estas categorias devem ser vistas como ferramentas operativas na luta
pela “hegemonia cultural”, ocupando o espaço das “direitas e da
social-democracia”. Importa apelar a estas “subjetividades para fazer
política”, na linha dos “ensinamentos do Trotsky nos seus escritos (…),
olhando para a forma como é ensinada a História e construída a cultura
para poder convocar contracultura”, usando a “produção cultural como
espaço de disputa pela hegemonia e [expressão] da forma como queremos
construir a sociedade”.
É
inegável que a raça é ainda um dos fatores de desigualdade. Estamos
longe de ter construído em Portugal, mas também nas sociedades mais
evoluídas, comunidades onde todos temos, à partida, condições para
realizar os nossos sonhos de vida, sem arquétipos de cor. Mas é
importante assinalar que o discurso de rutura que Mamadou Ba – e as
extremas-esquerdas – querem recuperar, até hoje, apenas se interessa
pela questão racial como forma de executar um programa de transformação
social totalitário, que quer ser hegemónico, e que não nega, se
necessário, o uso da força. A raça é para estas correntes políticas uma
mera categoria subjetiva instrumental, uma projeção de um homem novo,
inexistente, cuja ideia de base há muito devia estar – metaforicamente –
enterrada.
Em
sentido simétrico, infelizmente não falta à direita quem procure por
estes dias recuperar a questão racial, étnica ou religiosa como forma de
criação de estigmas e arquétipos de desvalorização coletiva, com fins
meramente instrumentais e políticos, e que apenas ajudam a criar uma
lógica dialética de extremos, com claro prejuízo para a afirmação de
valores e direitos individuais.
A
humanidade está a evoluir a passos largos para uma integração global,
onde rapidamente as categorias raciais deixarão de fazer sentido. O
homem branco, o homem negro, e todas as categorias que hoje conhecemos,
irão morrer de morte natural, sem que tenhamos de os assassinar, física
ou culturalmente. Um elevado grau de miscigenação é o corolário lógico
de uma sociedade global, integrada e livre, onde todos temos os mesmos
direitos e deveres. Ora, a única fórmula política universalmente testada
que promove a mobilidade social e fomenta a liberdade chama-se acesso à
educação, num ambiente de pluralismo e defesa dos valores individuais;
sem tribalismos ou construções artificiais que reduzam a pessoa a uma
categoria religiosa, racial, sexual, ou de género, enclausurando-as em
narrativas vitimistas, capturáveis politicamente. Por isso, muitos dos
que queremos combater o racismo, apenas exigimos mais e melhor Escola.
Os únicos homens que temos de matar – e apenas na nossa psique – é esse
Homem Novo, sonhado por tantos, e que apesar de permanentemente adiado,
tanta dor continua a causar na projeção do seu desejo. E esse Homem
Velho, rezingão e desconfiado, que ainda acha que há espaço no futuro
para o estigma e a segregação.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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