Muito aprendemos sobre ciência, vírus, hipocrisia, falsos liberais, instituições e agentes políticos emaranhados com o Partido Comunista Chinês, democratas de mãos dadas com ditadores e uma eleição presidencial no mínimo bizarra e cheia de perguntas sem resposta na República mais sólida do planeta. O que esperar então para o próximo ano? Ana Paula Henkel para a Oeste:
É
desnecessário dizer que 2020 foi um ano difícil para o mundo. A
pandemia não veio aterrorizar apenas em seu aspecto viral propriamente
dito, pondo em risco a saúde de bilhões de pessoas. Também jogou na UTI
economias sólidas e entubou, já com risco de morte, economias fracas e
suscetíveis a ações de tiranos. Ela nos trouxe o perigo dos anos
nefastos das páginas de História em que o autoritarismo cerceava
liberdades, prendia quem pensava diferente e usava tragédias para
projetos de poder.
E
2020 chegou ao fim. Aos trancos e barrancos. Muito aprendemos sobre
ciência, vírus, hipocrisia, falsos liberais, instituições e agentes
políticos emaranhados com o Partido Comunista Chinês, democratas de mãos
dadas com ditadores e uma eleição presidencial no mínimo bizarra e
cheia de perguntas sem resposta na República mais sólida do planeta. O
que esperar então para o próximo ano?
Em
uma sociedade na qual sempre estamos olhando para fora, para os
acontecimentos que se sucedem numa velocidade hipnotizante, numa era de
total adoração ao imediatismo, onde encontrar alguma faísca de
maturidade e renovação de que algo possa melhorar em 2021? Onde pousar o
pensamento para refrigerar a alma e seguir sem desanimar?
Pessoas
diferentes encontram estratégias diferentes de reclusão, análise e
imersão. O que serve para mim pode não servir para você. Ao longo do ano
de 2020, após o nascimento da Revista Oeste, construímos uma relação de
afeto a cada semana. Por isso, sinto-me à vontade para dividir onde
encontrarei o alento para seguir firme no ano que se aproxima. E, como o
Natal nos mostra, a força está na própria vida, nas tradições que não
se desbotam com o tempo, na família, nas palavras sábias de pessoas mais
velhas que a atualidade parece não ter mais tempo de ouvir.
O
ano era 2000. O mundo se preparava para a virada do milênio e eu me
preparava para minha terceira Olimpíada. Ela seria disputada do outro
lado do mundo, em Sydney, na Austrália, e seria minha primeira Olimpíada
pelo vôlei de praia depois de disputar dois Jogos Olímpicos pelo vôlei
de quadra.
Depois
de uma sólida e dedicada carreira no vôlei de quadra, o sucesso de
minha ida para o vôlei de praia era incerto, mas lá estava eu, começando
mais um desafio em mais um ciclo olímpico. Foi quando apareceu um
aliado importantíssimo, vital para prosseguir com um plano sério de
duros treinamentos, estratégia e dedicação: o patrocinador dos sonhos.
Um
patrocinador dos sonhos no esporte não é aquele que simplesmente
estaciona na porta de sua casa com um caminhão de dinheiro e lhe deseja
boa sorte. Um patrocinador dos sonhos é um aliado que tem um plano
amplo, com várias vertentes e campos de ação para atletas de alta
performance. Um patrocinador dos sonhos é um aliado que não lhe pagará
apenas um bom salário, mas traçará planos de voo com uma equipe técnica
composta de experts em estatísticas, análises, preparação física,
medicina esportiva, marketing. Um patrocinador dos sonhos é aquele que
lhe dá toda a segurança e estrutura para que você possa se dedicar ao
máximo — e apenas isso — aos intensos e quase infinitos treinamentos, a
única chance possível de chegar ao Olimpo. E lá estava eu, aos 28 anos,
depois de sonhar — e trabalhar — por muitos anos com o patrocinador dos
sonhos. Tudo o que eu precisava fazer era o que eu vinha fazendo desde
os 16 anos. Treinar. Treinar feliz, treinar com dores, treinar no sol,
treinar na chuva, treinar, treinar e competir.
Foi
quando a vida, sem me preparar, sem me avisar, sem sequer me dar a
mínima pista, disse: “Tenho outros planos pra você”. Atletas são pagos e
patrocinados enquanto estão em atividade, treinando e competindo —
afinal, as marcas que investem precisam aparecer e estar em evidência.
Lesões cancelam contratos. Gravidez cancela contratos. E eis que em um
hotel em Gstaad, na Suíça, no meio de uma importante competição para a
classificação olímpica do ano de 2000, o mundo “desabou” em duas linhas
verdes numa caneta branca comprada na farmácia: positivo. Eu estava
grávida.
Um
silêncio inesquecível tomou conta de minha mente, de meu quarto de
hotel, do mundo. Era como se eu estivesse em algum tipo de transe. “Não
pode ser!”, pensei. Estava num relacionamento de muitas idas e vindas —
hoje somos grandes amigos!. Em três segundos, um filme se formou em
minha frente… “relacionamento… família… patrocínio… Olimpíada…
imprensa…”. Não havia uma ordem nos pensamentos, e eu não conseguia
organizar as ideias.
Depois
de jogar mais duas etapas do Circuito Mundial (e de mais quatro testes
positivos), decidi voltar ao Brasil e contar primeiro a meus pais toda a
situação. Embora sinta um amor profundo por minha mãe, desde pequena
sempre tive uma ligação muito forte com meu pai. Via nele um mestre e um
amigo. Por isso, estava extremamente nervosa com a reação daquele a
quem eu nunca quis desapontar na vida.
Viajei
até a casa de meus pais e, eu e eles sentados à mesa da cozinha,
disparei sem rodeios uma única frase: “Estou grávida”. Pelo semblante de
minha mãe, aquele filme que passou em minha cabeça no quarto de hotel
na Suíça agora acontecia com ela. Eu já não era nenhuma adolescente,
mas, mesmo com 28 anos, a preocupação de mãe tomou conta da conversa.
Ela começou a chorar e a repetir: “Mas e seu relacionamento? Vocês estão
juntos? E o patrocínio? Você trabalhou décadas para isso… e a
Olimpíada? O que a imprensa vai falar? Como será a vida?”.
Minha
mãe sempre foi muito emocional e protetora e, confesso, já esperava que
sua reação inicial seria assim. Meu pai, no entanto, estava em absoluto
silêncio e aquilo me incomodava e deixava apreensiva. Foi quando, entre
um suspiro de preocupação e outro, minha mãe, em lágrimas, ficou em
silêncio e meu pai resolveu falar. Eu gelei. Para minha surpresa, ele
olhou para minha mãe, e não para mim, e disse: “Você sabe quantas
pessoas no mundo estão chorando neste exato momento, como você, porque
alguém que elas amam está morrendo e as deixando? E você chora porque a
vida está batendo na porta de minha casa?”. Imóvel e sem sequer piscar,
parecia que eu havia entrado em outro estado de transe. E ele continuou:
“Não me interessa a condição. A vida está batendo na porta de minha
casa, e eu vou abrir, e eu vou celebrar”.
Um
amor tão grande e tão divino tomou conta de mim. Comecei a tremer. Meu
pai, segurando uma cerveja que acabara de abrir, repetiu: “A vida está
batendo na porta de minha casa, e eu vou abrir, e eu vou celebrar”.
O
ano de 2000 voou. A delegação brasileira na Olimpíada de Sydney não
trouxe nenhuma medalha de ouro, mas eu, no Brasil, ganhei a minha.
Gabriel, nome escolhido por meu pai por se tratar de “um mensageiro de
boas notícias”, como ele mesmo ressaltou, decidiu nascer um mês antes do
previsto e chegou pouco antes do Natal, no dia 19 daquele ano. O melhor
presente de minha vida.
Os
anos se passaram, eu me mudei para Los Angeles e, logo que cheguei à
progressista Califórnia, participei de um grupo de treinamento para
fazer parte de uma ONG chamada Pregnancy Help Center. Criada em 1976,
essa ONG ajuda e acolhe mulheres grávidas que, por alguma razão,
consideram o aborto, estão confusas e precisam de ajuda. A equipe é
composta de vários voluntários, desde conselheiras (meu posto, a
primeira pessoa com quem as mulheres conversam quando chegam lá) até
médicos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos, policiais etc.
Durante
os anos que passei na organização, presenciei histórias muito
impactantes de mulheres que, diante da proteção da legislação que
favorece o aborto no Estado e da facilidade com que isso acontece,
resolveram prosseguir no procedimento nas clínicas abortivas. Foram
algumas noites sem conseguir dormir pensando naquelas moças de vinte e
poucos anos que, em uma ficha, escreviam que já estavam no segundo,
terceiro aborto. Obviamente, para a organização, toda mulher que decidia
seguir a gestação, assistida e cuidada durante e após a gravidez
gratuitamente por uma grande equipe, era motivo de muita celebração.
Nas
muitas conversas que eu tinha com essas mulheres, em um gesto de
conexão afetiva e empatia, eu relatava minha história. Contava sobre meu
pai e as palavras que ele tinha dito na cozinha de sua casa, sobre os
medos, as dúvidas, as lágrimas. E é exatamente dessas ocasiões, do
encontro com mulheres fortes que desafiaram qualquer situação, que tenho
guardadas hoje as medalhas mais preciosas de minha vida. Ao longo do
trabalho na instituição, recebi algumas dezenas de fotos de bebês
enviadas pelas mães. Elas relataram que as palavras de meu pai foram um
bálsamo, uma luz para a única e possível decisão para aquela ocasião.
Meu pai, já falecido naquela época, havia se tornado, sem saber, vida
após sua morte.
E
a vida não está apenas na gestação no ventre de uma mulher. A vida está
nos detalhes que o imediatismo, a tecnologia em excesso, o egoísmo, a
carreira na frente de tudo, a superficialidade das redes sociais
escravizantes não nos deixam mais apreciar. Casais se separam não por
falta de amor, mas por falta de paciência. Jovens estão em depressão não
por problemas, mas pela proteção excessiva a que são submetidos.
Hoje,
tudo tem de ser aceito. Tudo tem de estar “tudo bem” o tempo todo. E,
quando vem um ano como 2020, não sabemos conversar, desaprendemos de
pensar e discutir como sairemos de enrascadas pequenas, grandes,
particulares e públicas, porque as ferramentas não estão no “tudo tem de
estar bem o tempo todo”. Nossos filhos não podem ser envoltos em
plástico-bolha e protegidos dos males do mundo, do sofrimento, dos
desafios. Assim famílias são fortalecidas e homens e mulheres fortes são
forjados.
Apesar
do conturbado ano, foi um prazer estar aqui com vocês toda semana.
Desejo a todos nós, parceiros na caminhada da defesa inviolável da
coragem e da liberdade, que Johann Goethe (1749-1832), filósofo,
cientista e escritor alemão, autor de Fausto, poema trágico e obra-prima
da literatura alemã, nos inspire em 2021 com seu célebre pensamento:
“No momento em que nos comprometemos, a providência divina também se põe
em movimento. Todo um fluir de acontecimentos surge a nosso favor. Como
resultado da atitude, seguem todas as formas imprevistas de
coincidências, encontros e ajuda que nenhum ser humano jamais poderia
ter sonhado encontrar. Qualquer coisa que você possa fazer ou sonhar,
você pode começar. A coragem contém em si mesma o poder, o gênio e a
magia”.
A coragem contém em si mesma o poder, o gênio e a magia. Um abençoado 2021.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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