A
questão posta no título — ou a questão mais geral, para quem vai o
Nobel? — nunca teve resposta simples, e pelo que se observa com o
andamento da física contemporânea, será ainda mais difícil nos próximos
anos. Astronomia, astrofísica e física de altas energias talvez sejam as
mais vibrantes e efervescentes áreas da física atual. Os próximos
laureados deverão continuar saindo dessas áreas, a menos que apareça
algo extraordinariamente inovador em alguma outra área.
Não
pretendo, neste ensaio, discutir os trabalhos dos ganhadores do Prêmio
Nobel de Física (PNF) deste ano, até porque veículos dos mais diferentes
tipos já estão fazendo isso, e para apresentações mais especializadas,
recomendo os textos da profa. Thaisa Storchi Bergmann, do Instituto de
Física da UFRGS[1] e do prof. George Matsas, do Instituto de Física
Teórica da UNESP[2]. No seu canal do YouTube o IF-UFRGS disponibiliza o
colóquio apresentado pela profa. Thaísa Storchi Bergman sobre “O Prêmio
Nobel de Física de 2020 e a história da busca pelos Buracos Negros
Supermassivos no Universo”[3]. Pretendo aqui apenas fazer uma reflexão
em torno da questão posta no título. Recentemente, Hood fez uma incursão
mais geral, em torno da questão que coloquei no início deste ensaio,
para quem vai o Nobel?, olhando para as possibilidades futuras[4]. É uma
boa oportunidade para ver a questão também em retrospectiva. Não há
dúvidas de que a física está ingressando para valer na era que os
sociólogos da ciência há muito tempo denominam grande ciência, uma
expressão introduzida nos anos 1960 por Derek de Solla Price, cofundador
da sociologia da ciência, ao lado de Robert Merton. Para uma breve
discussão dessa ideia recomendo o artigo do prof. Peter Schulz[5]. Price
dizia que 10% dos cientistas publicavam 90% dos artigos. Nem naquela
época isso era verdade, e muito menos o é na atualidade da astronomia,
da astrofísica e principalmente da física de altas energias. Por
exemplo, duas equipes totalizando 1500 cientistas estiveram envolvidas
na detecção de buracos negros com massas intermediárias[4], e artigos
recentes com resultados obtidos no CERN (acrônimo para Conseil Européen
pour la Recherceh Nucléaire) têm mais de mil autores. Essa é a dimensão
da grande ciência atual: investimentos astronômicos e equipes
gigantescas, o que aumenta a proporção de cientistas nas grandes
descobertas.
Acredita-se
que no espaço da pequena ciência, com a participação máxima de meia
dúzia de cientistas por artigo, é razoavelmente simples atribuir valores
relativos da importância de cada um, o que leva à definição do líder da
pesquisa. Em ensaios anteriores[6], [7], mostrei que isso não é bem
assim, e mesmo na pequena ciência, a questão que intitula este ensaio
sempre causou embaraços na concessão dos PN. A história está cheia de
casos ilustrativos, como o de Lise Meitner, talvez o mais exemplar de
todos, e objeto principal deste ensaio. Há diversos critérios para se
abordar eventuais injustiças na concessão do PN. Um deles é o sempre
presente sentimento nacionalista. Muitos brasileiros, eu incluso, não
perdoam a Academia Sueca de Ciências pelo não compartilhamento do PNF de
1950 entre Cecil Powell e César Lattes, quem sabe incluindo também
Giuseppe Occhialini.
Na
tarde do dia seguinte à morte de Lattes, em 8 de março de 2005, recebi
um telefone do chefe de redação do jornal Zero Hora (Porto Alegre),
solicitando um obituário para o Caderno Cultura do dia 12. Era
quarta-feira, e eu tinha que entregar o texto na tarde de sexta. Dois
dias para juntar, rever a literatura e escrever a matéria. Fiz o que
pude para escrever Cesar Lattes e o Nobel tungado[8]. Quando iniciei
esta série de ensaios sobre o PN, aqui no Estado da Arte, pensei em
ampliar o texto de ZH, mas imediatamente vi que eu teria pouco a
contribuir, uma vez que a partir de 2005 muitos trabalhos importantes
foram publicados em diversos veículos. Em uma busca rápida que fiz no
Google Acadêmico encontrei duas dezenas de artigos pós-2005. Para os
leitores interessados em uma leitura mais aprofundada, sugiro os livros
de Francisco Caruso, Alfredo Marques e Amós Troper[9], e Cássio Leite
Vieira[10].
Obituário de Cesar Lattes |
Ponderando a importância científica
Um
critério básico para a atribuição de valores relativos da participação
de alguém em um trabalho de equipe é o que se busca quando se deve
premiar um, ou no máximo três cientistas que contribuíram para
determinada área de conhecimento. Tenta-se descobrir o líder, e se seus
colaboradores tiveram participação do mesmo nível, ou de nível
secundário. Nem sempre essa ponderação é consensual, e como veremos, foi
claramente falha no caso Lise Meitner. Alguém pode pensar no Índice de
Citação Científica (SCI na sigla em inglês), criado por Eugene Garfield
nos anos 1960. Mas, de acordo com Stván Hargittai[11], embora o número
de citações seja importante, para os comitês do PN esse indicador é mais
uma curiosidade do que um fator decisivo. E qual o critério usado pelos
comitês do PN e pela Academia Sueca de Ciências (ASC) para definir as
premiações? Não há um critério definido. Há um procedimento burocrático
até se chegar ao PN, mas cada um que participa do processo define seus
critérios.
Um
resumo muito interessante sobre esses procedimentos foi apresentado por
Peter Rodgers, às vésperas da premiação de 2000[12]. Ao longo de seus
120 anos de existência, os comitês do PN devem ter passado por algumas
mudanças, mas a essência continua a mesma. Portanto, salvo diferenças
quantitativas, como número de cientistas convidados a fazer indicações,
número de respostas recebidas pelos comitês, número de indicados ao
prêmio, etc., o cenário geral é esse descrito por Rodgers referente ao
ano de 2000, para o PN de física. A ASC enviou mais de duas mil cartas a
físicos do mundo inteiro, convidando-os a indicar candidatos para o
PNF. Deve ter recebido algo em torno de 300 indicações, que o comitê,
constituído por cinco professores de universidades suecas, reduziu para
10 ou 15. Na carta-convite eles pedem para os convidados não tornarem
públicas suas indicações.
Cada
uma dessas 10 ou 15 indicações foi enviada para um ou dois
especialistas na área, cujos relatórios são estudados pelo comitê. A
partir daí o comitê decide quem deverá ser premiado e envia sua
recomendação para os membros da classe de física da ASC (aproximadamente
40 membros). Em reunião, a classe de física discute a indicação e
elabora um relatório para os membros de todas as áreas do conhecimento
da ASC (350 suecos e 164 estrangeiros). O relatório pode estar de acordo
com a recomendação do comitê, ou não. Eles podem até fazer outra
indicação. Em uma reunião fechada, geralmente no início de outubro, a
ASC reúne-se para fazer a indicação. Toda a documentação referente ao
processo deve permanecer secreta durante 50 anos, após o que, parte da
documentação poderá ser consultada por historiadores da ciência
credenciados.
Alguns
princípios para a concessão do PN são questionados por parte da
comunidade científica. Por exemplo, a premiação por uma descoberta
específica, e não pela obra de uma vida inteira. Muita gente acredita
que esse princípio impediu o físico alemão Arnold Sommerfeld de ser
premiado. Atualmente, com os grandes projetos de física sendo
desenvolvidos por equipes enormes, questiona-se o impedimento de premiar
organizações, como o CERN, onde praticamente toda a pesquisa de física
de alta energia é realizada. Finalmente, o princípio segundo o qual no
máximo três pessoas podem compartilhar a premiação. Talvez esse
princípio fosse um problema neste ano, caso Stephen Hawking estivesse
vivo. Claramente o comitê de física decidiu, neste ano, premiar os
buracos negros. Daí porque escolheram Roger Penrose, o principal teórico
da área, ainda vivo, que mostrou que o buraco negro é uma robusta
previsão da teoria da relatividade geral, e dois astrofísicos
observacionais, Andrea Ghez e Reinhard Genzel pela descoberta de um
objeto compacto e supermassivo (um buraco negro) no centro de nossa
galáxia. Mas, Hawking ficaria de fora? Quem cederia o lugar? Penrose,
Genzel ou Andrea Ghez? A considerar o que escreveu Penrose para o
obituário do amigo[13], talvez até ele cedesse seu lugar para Hawking.
Penrose começa citando o famoso astrofísico inglês Lord Martin John
Rees:
Poucos dos sucessores de Einstein fizeram mais para aprofundar nossos insights sobre gravidade, espaço e tempo.
Depois,
Penrose passa a destacar a vida acadêmica de Hawking. Aos 32 anos foi
eleito para a Royal Society. Aos 37 é nomeado professor Lucasiano de
matemática em Cambridge. Trata-se da mais famosa cátedra inglesa,
ocupada por Isaac Newton e Paul Dirac. Foi um dos primeiros a mostrar
como flutuações quânticas podem explicar a distribuição de galáxias no
universo. Finalmente, Penrose vaticina:
Hawking não foi, talvez, o maior físico de sua época, mas em cosmologia ele era uma figura superior. Não existe um critério perfeito para o valor científico, mas Hawking ganhou o Prêmio Einstein, o prêmio Wolf, a medalha Copley e o prêmio de Física Fundamental. O prêmio Nobel, no entanto, lhe escapou.
Caso
similar é o de Rosalind Elsie Franklin, que faleceu quatro anos antes
da concessão do PN em fisiologia e medicina de 1962, pela descoberta da
estrutura molecular do DNA. A pergunta é a mesma: no lugar de quem
Rosalind Franklin entraria? Eu penso como Hargittai[11]; ela entraria no
lugar de Maurice Wilkins. A história é interessantíssima, e longa,
razão pela qual merece um ensaio específico, que já está a caminho. Para
o assunto não ficar aqui totalmente no ar, convém destacar alguns dados
em torno do PN em fisiologia e medicina de 1962. Os ganhadores foram
Francis Harry Compton Crick, James Dewey Watson e Maurice Hugh Frederick
Wilkins. O primeiro artigo no assunto é de Watson e Crick, em 1953. No
ano seguinte, Franklin e R. G. Gosling publicaram seu primeiro trabalho
sobre raios-X do DNA. Também em 1954, Wilkins e colaboradores fizeram o
mesmo. Dos três ganhadores, o único que mencionou Rosalind Franklin na
conferência Nobel, foi Maurice Wilkins, justamente aquele que
provavelmente perderia o prêmio se ela estivesse viva.
Uma introdução ao caso Lise Meitner
Repito
o que escrevi acima, opinião compartilhada por praticamente todos os
historiadores da ciência: é difícil saber se o caso Meitner configura a
maior injustiça na concessão do PN, mas é certo que ele é o mais notório
na literatura historiográfica. Inúmeros são os artigos publicados sobre
o assunto, principalmente pela professora de química do Sacramento City
College, na Califórnia, que reuniu seus estudos no livro Lise Meitner: a
life in physics[14]. Quem também dedicou-se à análise desse caso foi
István Hargittai[11].
Tudo
que sabemos sobre a concessão do PN é a relação de indicados e a
relação de quem os indicou. As discussões nas reuniões dos comitês,
assim como da Academia são secretas. Há quem diga que os relatórios são
destruídos, mas não isso não é oficialmente reconhecido. Ocasionalmente,
um ou outro membro desses comitês e da Academia quebram o sigilo, mas
isso não constitui fonte historiográfica, embora seja usada em algumas
publicações. Assim, para analisar a pertinência ou não da decisão da
ASC, costuma-se analisar a vida acadêmica dos ganhadores e dos
rejeitados e suas repercussões na comunidade científica. Quem assim
procede costuma indicar como se comportaria caso fosse membro de um
comitê, ou da Academia. É o que farei a seguir.
O
PN de química de 1944, anunciado em 1945, foi concedido a Otto Hahn
pela descoberta da fissão de núcleos pesados. Vejamos do que se trata, e
quem esteve envolvido com isso.
Desde
o início do século, Ernest Rutherford vinha bombardeando diferentes
materiais com partículas alfa emitidas com altas energias por alguns
núcleos atômicos. Foi assim que em 1911 ele teve a ideia do modelo
atômico, posteriormente elaborado por Niels Bohr. Nesse modelo, o átomo
era constituído de um núcleo, muito pequeno e muito massivo, em torno do
qual giravam os elétrons. Anos depois, em 1919, Rutherford descobriu o
próton, ocasião em que imaginou que no interior do núcleo deveria também
haver uma partícula neutra, com massa similar à do próton. Essa
partícula foi descoberta em 1932, por James Chadwick, seu colaborador, e
recebeu o nome de nêutron. No mesmo ano, o casal Irène e Frédéric
Joliot-Curie realizaram experimentos que levaram à descoberta da
radioatividade artificial produzida pelo bombardeio de núcleos com
nêutrons[7]. A partir de então, diversos experimentos foram realizados
com bombardeio de nêutrons, inicialmente por Enrico Fermi e seus
colaboradores, em Roma, que começaram a bombardear urânio. Assim que
tomou conhecimentos dos resultados obtidos por Fermi, em 1934, Lise
Meitner procurou Otto Hahn e lhe propôs retomarem a colaboração que
estava interrompida fazia quase uma década. É importante destacar esse
fato: fazia quase uma década que Meitner e Hahn não colaboravam
cientificamente. Qual é a importância disso? É que quando começaram os
questionamentos sobre a não concessão do PN, chegaram a alegar que ela
não passava de uma auxiliar de Otto Hahn, e que este era de fato o líder
da pesquisa. Então, para confrontar esse preconceito, vale a pena
mencionar, nem que seja brevemente, o que os dois fizeram até o ano de
1934.
Lise
obteve seu doutorado em física na Universidade de Viena, em 1905, com
uma tese sobre condução do calor em materiais inomogêneos. Logo depois
do doutorado começou a se interessar por problemas da radioatividade,
como a deflexão das partículas alfa ao atravessar os materiais, aquele
problema que estava começando a ser investigado por Rutherford. Seu
primeiro trabalho nessa área foi publicado em 1906, na Physikalische
Zeitschrift, sobre a absorção dos raios alfa e beta. Publicaria mais
dois trabalhos na mesma revista, sobre o mesmo assunto, antes de se
mudar para Berlim em 1907, onde teve como mentor Max Planck, e fez
amizade com jovens cientistas que entrariam para a história da física:
James Franck, Gustav Hertz, Max von Laue, Otto Stern, Max Born, Niels
Bohr, Erwin Schrödinger e Albert Einstein. Mais importante que isso, do
ponto de vista profissional, foi seu encontro com o químico Otto Hahn,
quatro meses mais novo que ela, e que estava à procura de um físico para
auxiliá-lo em experimentos sobre radioatividade. Depois de ter ouvido
piadas de seus colegas de faculdade, que consideravam aberração uma
mulher fazer curso superior, ela teve que enfrentar a primeira
dificuldade profissional por ser mulher. O chefe de Hahn, Hermann Emil
Fischer, PN de química de 1902, não permitia que mulheres trabalhassem
em seu laboratório. Contornaram o problema instalando os equipamentos
numa velha carpintaria, onde foi permitido que ela trabalhasse. Essa
situação perdurou até 1909, quando estudos acadêmicos na Alemanha foram
permitidos às mulheres. Em 1912 foi criado o Kaiser-Wilhelm Institut für
Chemie, em Berlim-Dahlem, uma zona rural nos arredores de Berlim. Ali
no KWI, Lise trabalhou durante 25 anos.
Estabeleceu-se
uma frutífera colaboração entre os dois jovens cientistas, com 30
artigos publicados entre 1907 e 1925. Em 1918 eles publicaram o primeiro
trabalho que desembocaria na descoberta do protactínio, o elemento
químico 91. A partir de 1921, Meitner começa a realizar estudos sem a
participação direta de Hahn. Ela estava mais interessada nos
experimentos de vanguarda da física nuclear, enquanto seu colega
continuava concentrado no refinamento de técnicas radioquímicas. Então,
ao mesmo tempo que publicava com Hahn, ela publicava sozinha artigos
mais fundamentais. Na prestigiada Zeitschrift für Physik, ela publicou,
em 1921, um sobre os diferentes tipos de decaimento radioativo e a
possibilidade de sua interpretação a partir da estrutura central. No
mesmo ano ela publicou nos anais da Sociedade Kaiser Wilhelm para o
Avanço da Ciência, um artigo com fundamentos básicos sobre
radioatividade e constituição atômica. É essa diferença entre os perfis
acadêmicos de Meitner e Hahn, que aparentemente os envolvidos na
indicação e seleção do PN de química de 1944 não levaram em conta. Hahn
era um químico de primeira grandeza, assim como Meitner era uma física
da mesma ordem. Se complementavam na prolífera parceria que fizeram ao
longo de décadas. Por isso os dois mereciam ganhar o PN, de química ou
de física.
A
partir de 1926, os dois tomam definitivamente rumos científicos
diferentes, e desaparecem os trabalhos em parceria. O primeiro trabalho
de Meitner dessa fase completamente independente apareceu ainda em 1925,
na Zeitschrift für Physik, sobre a radiação gama da série do actínio, e
a prova de que os raios gama só são emitidos depois que o átomo decai.
Entre 1925 e 1933, Meitner e seus colaboradores publicaram 25 artigos,
sem a participação de Hahn. Se a história fosse interrompida em 1933,
casualmente o mesmo ano em que Hitler assume a chancelaria alemã,
veríamos que Lise Meitner era uma cientista independente, com produtiva
vida acadêmica. Não é por menos que já em 1924 ela fora indicada ao PN
de química, juntamente com Hahn.
Agora,
em relação ao PN de química de 1944, façamos um exercício mental
supondo que a história começa em 1934. Conforme já adiantei, o nêutron
tinha sido descoberto em 1932, e Enrico Fermi começara a bombardear
núcleos de diferentes elementos químicos com nêutrons. Seu primeiro
trabalho sobre o bombardeio de urânio foi publicado em 1934, na Nature.
Sua hipótese era a possibilidade de obtenção de elementos transurânicos.
Foi isso que animou Lise Meitner e a levou a convidar Otto Hahn para
refazer a parceria científica[15]:
Achei esses experimentos tão fascinantes que, logo após a publicação de seus relatos em Nuovo Cimento e Nature, persuadi Otto Hahn a renovar nossa colaboração direta, interrompida há vários anos, com o objetivo de investigar esses problemas.
Com
a colaboração do jovem doutor em química, Fritz Strassmann, Lise
Meitner e Otto Hahn publicam o primeiro trabalho da nova parceria em
1935. Nesse trabalho, publicado na Die Naturwissenschaften, Hahn e
Meitner apresentaram algumas observações sobre os produtos de
transformação artificial do urânio. Entre 1935 e 1938, essa equipe
publicou 17 trabalhos. Quando tudo caminhava razoavelmente bem, porque
embora de origem judaica, Lise estava escapando da perseguição nazista
porque era austríaca e não trabalhava em órgão do governo Alemão, uma
vez que o KWI era uma instituição privada. Mas, quando em março de 1938 a
Áustria foi ocupada pela Alemanha, Lise teve que fugir para não sofrer
os efeitos das leis raciais da Alemanha nazista. Em julho ela fugiu para
a Suécia, e lá ficou trabalhando por 22 anos no Instituto Nobel para
Física, em Estocolmo, sob a direção de Manne Siegbahn, PN de física de
1924.
Em
dezembro de 1938, Otto e Fritz realizaram o experimento que resultou na
descoberta da fissão nuclear. Vamos ouvir Lise contando essa
história[15]:
Hahn me escreveu no Natal de 1938 descrevendo os surpreendentes resultados de seus últimos experimentos. Eu estava em Kungalv, na costa oeste da Suécia, passando alguns dias de férias de Natal com Otto Frisch, que viera de Copenhague. Naturalmente, fiquei muito empolgada com a carta de Hahn e, nela, ele me perguntou o que eu, como física, achava dos resultados. Ao ler a carta, fiquei completamente entusiasmada e pasma, e também – para falar a verdade – inquieta. Eu conhecia muito bem o extraordinário conhecimento e habilidade química de Hahn e Strassmann para duvidar por um segundo da exatidão de seus resultados inesperados. Esses resultados, eu percebi, haviam aberto um caminho científico inteiramente novo – e também percebi o quanto havíamos nos desviado de nosso trabalho anterior!
Lise Meitner: (A) Viena, 1906; (B) Catholic University of America, 1946; (C) Aeroporto de Viena, 1953; (D) Com Otto Hahn, 1912. |
O caminho para a fissão nuclear
Aqueles
resultados obtidos por Hahn e Strassmann e publicados em janeiro de
1939, na Die Naturwissenschatfen, aceleraram a corrida nuclear,
freneticamente iniciada em 1934, com a participação dos mais importantes
cientistas da área. É isso que acontece com uma pesquisa de grande
impacto. Os experimentalistas correram para a confirmação experimental
dos resultados, enquanto os teóricos começaram a esboçar a explicação.
Com a ajuda do seu sobrinho Otto Frisch, Lise Meitner saiu na frente. Em
menos de um ano, mais de cem artigos foram publicados sobre o assunto,
por vários pesquisadores europeus. E não foi pequeno o impacto. Na
história moderna, apenas a descoberta dos raios-X teve tanto impacto em
curto intervalo de tempo. Mas, por que tanto interesse? Para melhor
apreciar essa interessante história, e minimamente compreender a razão
do interesse, é importante ter ideia da extraordinária complexidade dos
fenômenos nucleares. Tentarei apresentar essa ideia em linguagem
simples, sem recorrer aos conceitos mais complicados.
Todos
sabem que o átomo tem um núcleo, com prótons (carga elétrica positiva) e
nêutrons, em torno do qual orbitam elétrons (carga elétrica negativa).
Estou desprezando o fato de que prótons e nêutrons são constituídos de
quarks. Podemos desprezar essas partículas elementares para elaborar um
cenário mais simples, sem qualquer prejuízo para a explicação dos
fenômenos estudados nos anos 1930 e 1940. O átomo mais simples, sob
todos os aspectos, é o hidrogênio. Um próton e um elétron. A
possibilidade da existência desse par foi explicada no modelo de Bohr.
Para formar o hélio, colocamos mais um próton no núcleo, e mais um
elétron em volta. Com duas cargas positivas o núcleo não pode existir.
Os prótons se repeliriam. O que fazer? Aí vem a magia do nêutron. Ele
não tem carga elétrica, mas é capaz de evitar que os prótons se afastem.
O nêutron é quem dá a liga do núcleo. Então, no núcleo do hélio existem
dois nêutrons para equilibrar o sistema. Assim segue a tabela
periódica. Um próton a mais, alguns nêutrons a mais. Chega um momento
que é tanto próton junto, que não há nêutron que os segure. Isso
acontece com os materiais radioativos. Eles começam a se livrar de
prótons e nêutrons para diminuir o “estresse” no interior do núcleo.
Essa liberação, conhecida como decaimento nuclear, que se constitui na
essência da radioatividade, se dá de várias maneiras. Ora liberam um par
com dois prótons e dois nêutrons, igualzinho ao núcleo de hélio,
inicialmente denominado partícula alfa; ora liberam elétrons,
inicialmente denominados partícula beta; ora liberam energia sob a forma
de raios gama. Dito assim, parece simples. Não é! A descrição de cada
um desses processos, para determinados tipos de átomos é muito complexa.
O fato é que o processo de decaimento faz determinado elemento químico
desaparecer
Sem
nenhuma aparente necessidade, alguns átomos com mesmo número de
prótons, têm mais nêutrons do que o necessário para manter o equilíbrio
nuclear. Parece um defeito da natureza. Por exemplo, aparentemente o
átomo de hidrogênio não precisa de nêutron no seu núcleo, mas existe um
hidrogênio com um nêutron, e outro com dois nêutrons. O primeiro é
conhecido como deutério, e o segundo é o trício. Esses átomos com mesmo
número de prótons e diferentes números de nêutrons são conhecidos como
isótopos. Taí uma palavra-chave importante na física nuclear: isótopos!
Praticamente todos os processos nucleares geram diferentes isótopos. Por
exemplo, o urânio mais abundante é o U-238 (92%), com 92 prótons e 146
nêutrons. Depois vem o U-235 (0,7%), com 143 nêutrons e o U-234
(0,005%), com 142 nêutrons.
Essa
liberação de partículas alfa, beta e raios gama, ou seja, o processo de
decaimento nuclear, pode resultar no desaparecimento de um elemento
químico e o surgimento de outro, ou na substituição de um isótopo por
outro. O notável nesse processo, é que todos os elementos radioativos
terminam chegando no chumbo. Ou seja, todo decaimento radioativo inicia
em determinado elemento e termina no chumbo. Dito de outro modo, todas
as cadeias radioativas têm o elemento chumbo no final. Mas, quanto tempo
dura esse processo? A rigor, o processo é infindável. Portanto, em vez
do tempo de duração, o mais importante é saber a velocidade do
decaimento. Essa velocidade é determinada por uma propriedade típica de
cada elemento, conhecida como meia-vida, que marca o tempo em que a
metade dos átomos do elemento existentes na amostra inicial deixam de
existir. Por exemplo, se um elemento A tem meia-vida de 1 hora, isso
significa que ao final de 1 hora só teremos a metade da quantidade dos
átomos inicialmente contidos na amostra. Ao final da segunda hora, só
teremos ¼ dessa quantidade, e assim por diante. Enfim, cada elemento
radioativo é caraterizado pela quantidade de prótons (seu número
atômico), pela quantidade de nêutrons, que define o isótopo, e sua
meia-vida.
Esses
fundamentos são suficientes para o leitor, mesmo sem uma formação em
física, acompanhar a narrativa a seguir. Mas, é preciso dizer mais uma
coisa, um complicador. O processo de decaimento não é único. Por
exemplo, partindo do urânio, o decaimento chega ao chumbo seguindo mais
de um caminho, como ilustra a figura abaixo. Esses diferentes caminhos
impõem muitas dificuldades aos pesquisadores. Hoje, os físicos e
químicos nucleares entendem todos esses processos, mas nos anos 1930 e
1940 isso era um mistério. A busca pela identificação dos elementos
químicos e a explicação do fenômeno era um tiro no escuro. De um lado,
era indispensável o talento de um químico como Hahn, para a preparação
de boas amostras e o domínio de técnicas analíticas. Por isso ele
mereceu o PN de química. De outro lado, era necessário o talento de um
físico como Meitner, para explicar os resultados obtidos. Por isso ela
mereceria ganhar o PN de química ou de física.
O
urânio decai até chegar ao chumbo por vários caminhos. Quando chega no
Po218 (A), o decaimento pode ir para o Pb214, ou para o At218 (B). A
partir daí várias são as possibilidades de decaimento. |
Voltemos
a 1932, quando o nêutron foi descoberto. Até aquele momento, todos os
experimentos com bombardeio atômico, eram feitos com partículas alfa ou
com prótons. Pelo fato de serem positivamente carregadas, essas
partículas quase não penetram no núcleo, porque são repelidas pelos
prótons. Já o nêutron pode penetrar no núcleo praticamente sem
perturbação. Explica-se, portanto, o entusiasmo de Fermi com a
descoberta de Chadwick. Era um mundo inexplorado para os cientistas
nucleares. Explica-se, portanto, a corrida desenfreada, que estimulou
Lise Meitner a procurar Otto Hahn e propor-lhe retomar a colaboração
científica. Tratava-se de uma corrida de gigantes: Niels Bohr, Enrico
Fermi, Irène Joliot-Curie estavam entre os competidores. Todos
ganhadores de PN e disponibilizando de boas instalações de pesquisa e
competentes colaboradores, assim como Meitner e Hahn, que contavam com
as colaborações de Strassmann e Frisch.
Fermi
foi o pioneiro dessa fase, com seu icônico artigo de 1934, mas
encaminhou a questão equivocadamente. Para ele, o bombardeio de urânio
com nêutrons só podia produzir elementos transurânicos, ou seja,
elementos com número atômico superior a 92, último elemento da tabela
periódica até início de 1940. Como veremos a seguir, o bombardeio
resultava em bário e lantânio, os produtos da fissão nuclear, muito mais
leves do que o urânio. A massa que sobrava nesta reação era
transformada em energia, uma energia capaz de destruir uma cidade, como
ficou evidente em Hiroshima e Nagasaki. Mas, até a descoberta e a
compreensão do mecanismo da fissão nuclear poucos desconfiavam desse
poder destrutivo.
Todavia,
como é muito frequente na pesquisa científica, essa conjectura
equivocada de Fermi foi confirmada por Hahn e Meitner no primeiro
trabalho que eles publicaram sobre o assunto, em 1935. Em 1962, Meitner
escreveu um texto para o boletim da International Atomic Energy Agency
(IAEA), no qual confessa que começou acreditando na hipótese de Fermi,
mas achava muito estranho a existência de uma longa cadeia de
desintegração, aumentando a carga nuclear sem aumentar a massa. Fermi
tinha muita confiança nos seus resultados e desviou seu olhar para outra
linha pesquisa. Mas, Hahn, Meitner e Irène Curie tinham lá suas
desconfianças. Passaram quatro anos obtendo resultados divergentes. Em
cada experimento apareciam vários produtos, com diferentes meias-vidas,
que ninguém sabia bem identificar. Era uma geléia geral descomunal.
Seguindo a hipótese de Fermi, todos buscavam explicações na
possibilidade de elementos transurânicos, mas as contas não fechavam. Um
trabalho chave nessa história foi publicado em outubro de 1937, por
Irène Curie e seu colaborador Paul Savitch.
Usando
refinadas técnicas experimentais, Irène e Paul descobriram um produto
não observado nas pesquisas anteriores. Ele tinha uma vida-média de três
horas e meia, e segundo os autores deveria ser um isótopo do tório. Em
janeiro de 1938, eles publicam outro trabalho afirmando que não se
tratava de um isótopo de tório. Eles dizem que se trata de algo
quimicamente parecido com o lantânio, mas que eles acham que é um
elemento transurânico. Na verdade, tratava-se de uma mistura de bário e
lântanio. Se Irène tivesse percebido isso, provavelmente descobriria a
fissão nuclear alguns meses antes de Hahn e Strassmann. Ela perdeu, pela
segunda vez a oportunidade de fazer uma descoberta importante. Ela
estava próxima de descobrir a fissão nuclear, mas bobeou. A outra vez
foi em 1932, quando seus experimentos mostravam a existência do nêutron e
ela, juntamente com seu marido Frédéric Joliot-Curie pensavam que se
tratava de um raio gama. Chadwick papou o PN de física de 1935[7]. O
grande mérito desses trabalhos de Irène e Savitch foi desviar o foco dos
transurânicos para os elementos abaixo do urânio, abrindo o caminho
para a descoberta da fissão.
Quando
esses resultados estavam em discussão, Lise Meitner teve que fugir da
Alemanha, em julho de 1938. Os trabalhos ficaram por conta de Otto Hahn e
Strassmann. No início de janeiro de 1939, eles publicam na
Naturwissenschaften, o artigo que originou a supracitada carta enviada
por Hahn a Meitner. Intitulado Sobre a detecção e comportamento dos
metais alcalino-terrosos produzidos quando o urânio é irradiado com
nêutrons, esse é o artigo da descoberta da fissão nuclear. Com esse
experimento, realizado em meados de dezembro, eles mostraram que urânio
bombardeado com nêutrons produz, essencialmente, bário e lantânio, dois
elementos bem mais leves que urânio. Para quem sabia ler nas entrelinhas
da ciência, estava claro: a diferença entre a massa do urânio e dos
produtos da reação (bário e lantânio) se transformaria em uma fabulosa
quantidade de energia. Era o que dizia a equação de Einstein,
inocentemente deduzida no contexto da teoria da relatividade especial,
mas que agora apontava para a bomba atômica.
Pioneiros da fissão nuclear. |
O que mais, além do experimento de Hahn e Strassmann?
A
ninguém resta dúvida que o experimento de Hahn e Strassmann aceleraria a
corrida nuclear. Meitner teve o privilégio de ser informada antes da
publicação do artigo. Estava ao lado do sobrinho, Otto Frisch, entre
camadas de neve do rigoroso inverno dinamarquês. Imediatamente fizeram
uma análise teórica dos resultados. Em parceria ou sozinhos, escreveram
alguns artigos em 1939. Historicamente, talvez os mais importantes sejam
os dois artigos enviados à Nature, em 16 de janeiro. No primeiro,
assinado por Meitner e Frisch, com título Disintegration of Uranium by
Neutrons: a New Type of Nuclear Reaction, eles partem de uma ideia
lançada por Niels Bohr em 1936, conhecida como modelo da gota líquida, e
apresentam a primeira explicação teórica da fissão nuclear. O núcleo de
um elemento pesado, como urânio, comporta-se como uma gota de um
líquido qualquer, sob forte tensão interna. Adição de um determinado
valor de energia, de forma violenta, como ocorre no bombardeio de
nêutrons, a gota pode ser dividida em duas menores. A partir desse
modelo clássico, eles apresentaram uma boa descrição do fenômeno
descoberto por Hahn e Strassmann. O segundo artigo, assinado por Frisch,
é importante porque é nesse artigo que ele usa a expressão nuclear
fission para denominar o fenômeno. A inspiração veio da biologia.
Fission já era usado na biologia para se referir à divisão celular.
Em
20 de janeiro foi a vez de Niels Bohr enviar seu trabalho sobre a
fissão, para a Nature, no qual ele detalha alguns aspectos do cenário
desenhado por Meitner e Frisch. Fermi, como não poderia ser diferente,
também foi rápido no gatilho. Em 16 de fevereiro enviou uma carta para o
editor da Physical Review, em coautoria com cinco colaboradores,
apresentando resultados preliminares dos experimentos realizados por
eles, após conhecimento do trabalho de Hahn e Strassmann. Fermi estava
interessado na determinação da alta energia liberada após a fissão.
Finalmente,
um dado sobre o impacto da descoberta da fissão nuclear. Entre 1934 e
1938, o número de trabalhos publicados por ano sobre o bombardeio de
núcleos com nêutrons sempre esteve abaixo de 10. Em 1939 foram
publicados 104 trabalhos.
O Prêmio Nobel escorrega pelos dedos de Lise Meitner
Algumas
pessoas, envolvidas ou não com o processo de indicação do PN naqueles
anos, chegaram a afirmar que Lise Meitner era apenas uma auxiliar de
Otto Hahn. Esse tipo de argumento foi usado em vários outros casos, como
o de Cesar Lattes. A história de vários equívocos e injustiças na
concessão do PN sugere que poucos envolvidos no processo se dão ao
trabalho de uma análise detalhada da produção científica dos candidatos
ao prêmio. Sem contar que eventualmente o comitê solicita o parecer de
alguém que pouco conhece o assunto. Por exemplo, em 1921 o comitê de
física solicita ao professor de oftalmologia da Universidade de Uppsala,
Allvar Gullstrand, um relatório sobre a teoria da relatividade para
aprovar ou não a indicação de Einstein. O relatório, altamente crítico
em relação à teoria da relatividade, contém vários equívocos
conceituais[16]. Einstein foi premiado naquele ano, por que também havia
sido indicado pelo trabalho sobre o efeito fotoelétrico, e o relatório
elaborado por Svante Augus Arrhenius foi amplamente favorável. No caso
Meitner, a impressão que eu tenho é que deram pouca atenção à leitura de
sua obra científica. Pelo que está dito acima, vê-se a independência
científica de Lise Meitner, e pelas citações na literatura, depreende-se
o respeito que o seu trabalho tinha da comunidade científica. Vendo a
história em retrospecto, fica claro que Strassmann e Frisch eram de fato
auxiliares de Hahn e Meitner.
A
tabela abaixo mostra as indicações que Otto Hahn e Lise Meitner tiveram
para o PN de física ou de química, entre 1924 e 1948. Mesmo não tendo
conhecimento das alegações de quem os indicou, nem dos comentários
apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC, a partir da tabela
podemos desenhar um cenário muito interessante. Entre 1924 e 1926, Hahn e
Meitner foram repetidamente indicados para o PN de química, juntos ou
separados, por personalidades de peso no mundo científico da época, e
hoje ícones da história da ciência, como Planck e Nernst. A partir de
1937 eles começam a ser indicados também para o PN de física. Aqui cabe
um comentário de relevância histórica. Quando a ASC concedeu o PN de
física de 1903 a Becquerel e ao casal Curie, pela descoberta da
radioatividade, o comitê de química ficou incomodado, porque
consideravam que a radioatividade era um assunto da química[7]. Todavia,
a descoberta e a explicação da fissão nuclear resultaram da habilidade
experimental de químicos e o do conhecimento teórico de físicos. Aliás,
esse seria aspecto mais importante para justificar o compartilhamento do
prêmio entre Hahn e Meitner. A tabela mostra que vários físicos
importantes consideravam que a descoberta também pertencia à área da
física. Entre os que indicaram Meitner para o PN de física, podemos
destacar Bohr, Laue, Heisenberg, Compton, Franck e Louis de Broglie,
todos ganhadores do PN de física.
Então,
por que o PN fugiu das mãos de Lise Meitner? Ninguém sabe. Como os
comentários apresentados nas reuniões dos comitês e da ASC são secretos,
o que restam são as especulações da literatura. Claramente, Strassmann
não foi incluído na premiação de Hahn, porque todos sabiam que se
tratava de um jovem auxiliar de pesquisa. Mas este não era o caso de
Meitner. Há quem considere a importância acadêmica de Hahn, superior à
de Meitner, pelo seu envolvimento no programa nuclear alemão[17], mas
esse aspecto não foi levado em consideração pelos famosos físicos que a
indicaram em várias oportunidades. Há também quem especule que Siegbahn,
o diretor do Instituto Nobel para Física, em Estocolmo, onde Meitner
trabalhava, não gostava do seu estilo de pesquisa. Nesse sentido, é
interessante observar que ele indicou Hahn para o PN de física de 1943,
sendo ele, Siegbahn, PN de física de 1924, sendo Hahn químico e Meitner
física. Hargittai[11] acha que Lise Meitner ganhou mais prestígio tendo
sido excluída do PN, do que se tivesse ganho. Além de prêmios ganhos em
vários países, ela foi homenageada com a denominação do elemento químico
sintético 109, o meitnério. Mas é um fato histórico que ela ficou muito
amargurada com sua exclusão, tanto do PN de química, quanto do PN de
física. Em sua detalhada biografia de Lise Meitner, Ruth Sime também
sugere que Siegbahn, por pura inveja, foi o principal empecilho[14].
De
acordo com Sime, o comitê de química do PN e a classe de química da ASC
resolveram adiar a concessão do prêmio de 1944, para avaliar melhor a
colaboração de outros na descoberta da fissão. Depois da guerra, o
comitê decidiu reconsiderar a concessão do prêmio, algo até então
inédito na história do PN. No início de outubro de 1945 começaram a
circular boatos de que Lise estava no PN de química de 1944, ou no de
física de 1945. Foi uma decepção geral quando, em 16 de novembro a ASC
anunciou Hahn para o prêmio de química, e Wolfgang Pauli para o de
física. Em Farm Hall, onde cientistas alemães (incluindo Hahn) estavam
presos[17], a alegria foi geral, mas na Suécia, os amigos de Meitner
ficaram furiosos.
Oskar
Klein, físico sueco recém-eleito para a ASC, rasgou a lei do silêncio e
informou Bohr sobre os detalhes da tempestuosa reunião que resultou na
indicação de Hahn. Por sua importância histórica, concluo este ensaio
com algumas dessas informações. Os químicos Theodor Svedberg e Arne
Westgren já tinham alertado para a importância das contribuições de
Meitner e Frisch, mas a ASC achou muito complicado alterar a decisão
tomada em 1944. A sensação de Klein era que a ASC não queria dar a
impressão de estar sendo manipulada pelos EUA. É bom lembrar que a
Segunda Guerra Mundial tinha chegado ao fim em agosto de 1945, e que
Hahn tinha participado do projeto nuclear alemão e estava preso em Farm
Hall, na Inglaterra, com Heisenberg, Strassmann e outros cientistas
alemãs. Depois de muita discussão, uma pequena maioria votou para não
alterar a indicação de 1944. Provavelmente Meitner foi excluída por
causa da regra das três pessoas. Klein acha que se Meitner fosse
incluída, seria difícil excluir Strassmann e Frisch. Não concordo com
essa afirmação. Pelo que mostrei acima, estava claro que Lise Meitner
era uma cientista independente, ao passo que Strassmann e Frisch eram,
neste caso, apenas auxiliares.
Notas:
[1]
T. S. Bergmann, “Explicando o prêmio Nobel de Física de 2020,”
Instituto de Física – UFRGS, 2020. [Online]. Available:
https://www.if.ufrgs.br/if/explicando-o-premio-nobel-de-fisica-de-2020/.
[Accessed: 10-Oct-2020].
[2]
G. Matsas, “Penrose, Genzel e Ghez dividem o Prêmio Nobel de Física
2020 por sua pesquisa em buracos negros,” Sociedade Brasileira de
Física, 2020. [Online]. Available:
http://www.sbfisica.org.br/v1/home/index.php/pt/acontece/1182-penrose-genzel-e-ghez-dividem-o-premio-nobel-de-fisica-2020-por-sua-pesquisa-em-buracos-negros.
[Accessed: 10-Oct-2020].
[3]
T. S. Bergmann, “O Prêmio Nobel de Física de 2020 e a história da busca
pelos Buracos Negros Supermassivos no Universo,” Instituto de Física –
UFRGS, 2020. [Online]. Available:
https://www.youtube.com/user/Institutodefisica. [Accessed: 20-Oct-2020].
[4] M. Hood, “In an era of team science, are Nobels out of step?,” Phys Org, 2020.
[5] P. Schulz, “Ciência pequena, média ou grande,” Jornal da Unicamp, 2018.
[6] C. A. dos Santos, “A mística e o glamour do Prêmio Nobel,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 26-Jul-2020.
[7] C. A. dos Santos, “O Nobel na família Curie,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 30-Aug-2020.
[8] C. A. dos Santos, “Cesar Lattes e o Nobel tungado,” Zero Hora, Porto Alegre, p. 2, 12-Mar-2005.
[9] F. Caruso, A. Marques, and A. Troper, Cesar Lattes, a descoberta do méson pi e outras histórias. Rio de Janeiro: CBPF, 1999.
[10]
C. L. Vieira, Um mundo inteiramente novo se revelou: uma história da
técnica das emulsões nucleares. São Paulo: Livraria da Física, 2012.
[11] S. Hargittai, The road to Stockholm. Nobel prizes, Science, and scientists. Oxford: Oxford University Press, 2002.
[12] P. Rodgers, “Countdown to the nobel prize,” Phys. World, vol. October, 2000.
[13] R. Penrose, “Stephen Hawking,” Entornos, vol. 31, no. 1, pp. 257–260, 2018.
[14] R. L. Sime, Lise Meitner: A life in physics. Berkeley: University of California Press, 1996.
[15] L. Meitner, “Right and wrong roads to the discovery of nuclear energy,” IAEA Bull., vol. 4, pp. 6–8, 1962.
[16] A. Pais, “Sutil é o Senhor . . .”. A ciência e a vida de Albert Einstein. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.
[17] C. A. dos Santos, “O contexto científico da peça Copenhagen – Parte 2,” Estado da Arte / Estadão, São Paulo, 12-Jun-2020.
[18]
Nobel-Prize-Org, “Nomination and Selection of Nobel Laureates,” Nobel
Prize Organization, 2020. [Online]. Available:
https://www.nobelprize.org/nomination/. [Accessed: 20-Jun-2020].
Agradeço ao professor Luiz Fernando Ziebell, do Instituto de Física da UFRGS, pela cuidadosa leitura do manuscrito.
Carlos
Alberto dos Santos é professor aposentado pelo Instituto de Física da
UFRGS. Foi Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da UNILA e pesquisador
visitante sênior do Instituto Mercosul de Estudos Avançados. Premiado
com o Jabuti em 2016 (3º. Lugar na categoria Ciências da Natureza,
Matemática e Meio Ambiente), atualmente é professor visitante no
Instituto de Física da UFAL.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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