A liberdade é um recurso bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino. Luiz Felipe Pondé para a FSP:
Nos
Estados Unidos, a esquerda se chama liberal, com razão. A esquerda que
sobrou é filha do liberalismo de John Locke (século 17) a John Stuart
Mill (século 19). Um pressuposto básico do pensamento liberal desde
Locke é a exclusão da violência como instrumento político legítimo.
A
deslegitimação da violência como instrumento político é um fator
essencial. Assim como a legitimidade da guerra como continuação natural
da política por outros meios, como afirmou Carl von Clausewitz
(1780-1831) no seu clássico "Sobre a Guerra", caiu em desgraça, a
violência revolucionária teve o mesmo fim.
Restou
à política os espaços institucionais e o mercado, que também têm se
transformado em poder representativo da República, ainda que indireto,
como a mídia o é há muito tempo. Daí o vínculo entre lugar de fala,
marketing e cotas.
Mas
talvez não tenha sido apenas a política como violência que fosse a
justificativa para que os russos realizassem a revolução bolchevista.
A
hipótese de Orlando Figes sobre a Revolução Russa em seu "A Tragédia de
um Povo: A Revolução Russa (1891 - 1924)" (ed. Dom Quixote) –autor
conhecido entre nós pelas suas obras "Uma História Cultural da Rússia" e
"Sussurros" (sobre o stalinismo)– é melhor compreendida numa chave
trágica. O que isso quer dizer?
Isso
quer dizer que a revolução aconteceu por inúmeras razões que escapam ao
controle humano quando vistas numa longa duração entre 1825 e 1924.
Como se o descontrole de um número gigantesco de variáveis desenhasse a
própria noção de destino trágico traçado por forças que nos escapam do
ponto de vista da razão.
A
revolução começou em fevereiro de 1917, quando começa a queda do regime
czarista, com protestos contra a falta de pão, massacres de gente
aleatória, motins no Exército, casais transando nas ruas e sem nenhuma
liderança objetiva única. Nem os bolcheviques acreditavam na revolução
naquele momento.
Isso
não quer dizer que, olhando pontualmente certos momentos na cadeia
infinita de fatos, não percebamos a incompetência do Estado czarista no
seu vai e vem diante da modernização europeia e a resistência a ela por
parte de alguns setores da inteligência russa.
A
vastidão infinita da Rússia e seus Estados satélites, a Primeira Guerra
Mundial, a precariedade técnica e burocrática, a ignorância e a miséria
profundas e a inapetência do "governo provisional" pré-bolchevique são
causas identificáveis, mas incontroláveis quando postas lado a lado.
A interpretação forte dessa hipótese nos leva à suposição de que uma revolução dessa magnitude só acontece como tragédia.
Ninguém
–nem mesmo Kerenski, Lênin, Trótski ou Stálin, seus protagonistas
conhecidos– foi, de fato, senhor do processo. A contingência foi a
senhora da história. E quando a contingência é a senhora da casa,
estamos na casa da tragédia.
A
Revolução Russa, cozida profundamente sob o impacto do racionalismo
hegeliano, acabou por se provar anti-hegeliana e antimarxista: não há
agente histórico racional capaz de conduzir nenhum processo histórico
dessa magnitude.
O
liberalismo como tradição exclui qualquer opção violenta e pretende
conter toda ação política e social dentro de uma racionalidade
institucional. Entretanto, como bem viu Isaiah Berlin (século 20), muito
influenciado pela inteligência russa do 19, a liberdade é um recurso
bruto: o conflito de valores e atitudes é seu destino. Daí ser ele
denominado por John Gray, já no século 21, como o liberal trágico por
excelência.
A
liberdade como dado bruto representa a cegueira final dos processos
históricos. Isso não implica recusa da liberdade, mas sim percepção de
que ela, assim como sua mais nova ferramenta, as redes sociais, é da
ordem da fissura do átomo e da energia nuclear.
Tolstói,
no epílogo da segunda parte do seu "Guerra e Paz", desenhou a melhor
teoria da história para esse quadro: a história é cega e resultado de
infinitas ações que escapam ao nosso controle cognitivo e a nossa
vontade.
Nunca sabemos para onde vamos. Somos agentes da contingência, e não de um processo histórico racional.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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