São Paulo sob o domínio da COVID-19: Sociedade e economia em tempos de crises: sanitária, política e social
24/06/2020 às 11:44 JORNAL DA CIDADE ONLINE
Sair
pelas ruas da cidade de São Paulo em um domingo de meados do mês de
junho, ainda no início do processo de reabertura da cidade, em
decorrência da pandemia do novo coronavírus, aguçou meus sentidos,
provocando em mim um turbilhão de sensações e reflexões; que promoveram
observações atentas, análises e conclusões.
Senti e visualizei
medo, tristeza, choro, melancolia, pena, indignação, solidão, abandono,
insegurança, exposição às ofertas maléficas das ruas, mazelas sociais
expostas e dúvidas, muitas dúvidas.
Nos dias seguintes da permanência em São Paulo, continuei nas minhas andanças, buscas e contemplações.
O
retorno a minha segunda casa, após pouco mais de três meses, colocou-me
em contato com uma realidade nunca vista em São Paulo, maior centro
financeiro, produtivo, cultural, consumidor e populacional do Brasil e
um dos maiores do mundo. Tive que enfrentar medos e fraquezas internas
para chegar e circular no epicentro brasileiro da COVID-19.
Não
foram poucos os que me desencorajaram nessa empreitada. Neste artigo
trarei percepções, análises, dúvidas e informações sobre esse momento
ímpar que vivemos.
Ao ver a Avenida Paulista e outras vias da
região central de São Paulo com poucos carros e pessoas, tive,
imediatamente, a sensação de um vazio, que algo estava faltando por ali.
Observando com mais atenção e tempo, fui percebendo que o medo e a
desconfiança estavam nos olhares e nos movimentos de quem se aventurava a
circular nas vias públicas, bem como nos daqueles que se encontravam
dentro dos estabelecimentos e moradias e observavam o exterior. Caminhar
apressado e atento para qualquer aproximação era uma constante, minha e
de diversos outros. No entanto, as aglomerações ocorrem em pontos de
concentração de moradores de rua e usuários de drogas, na parte central
de São Paulo. Fácil
foi perceber que muitas pessoas estão vivendo nas ruas, bem mais do que
em todos os outros momentos de minha experiência em São Paulo, que já
dura mais de 20 anos.
Barracas e ambientes improvisados de
papelão, de compensados e de madeiras estão espalhados por inúmeras ruas
e avenidas, com maior concentração nas intermediações da Paulista; do
miolo do centro da cidade, como Praça da Sé, Vale do Anhangabaú e
Cracolândia; além de parte do Brás; viaduto de acesso à Mooca e elevado
Costa e Silva (Minhocão). Mesmo
em regiões nobres da cidade, como Jardins, Higienópolis e Vila Mariana,
por exemplo, é possível notar um grande número de pessoas dormindo nas
ruas, embaixo de marquises e em varandas de imóveis abandonados ou para
aluguel. Pessoas
de variadas idades, desde crianças a idosos, famílias inteiras, estão
nas ruas. Contei em uma passagem de pedestres quase em frente ao
edifício da Fiesp, na Paulista, quatro crianças e dois adultos dormindo
amontoados em uma mesma pequena barraca. Por segurança e companhia, as
pessoas se unem em pequenos grupos em pontos com menos circulação e nas
proximidades de praças, parques, viadutos e becos. Não foram poucos os idosos vistos perambulando ou dormindo em bancos de ruas/praças e galerias comerciais, em completo abandono.
Os
cenários da Praça da Sé; da Cracolândia, com as pessoas se drogando em
grupos; do largo de São Francisco e do viaduto da Mooca, com inúmeras
pessoas em filas para pegar doações de comida, foram os mais
impactantes. Em
um túnel perto do Vale do Anhangabaú, vi, à luz do dia, um senhor
fazendo suas necessidades fisiológicas, de cócoras, sem qualquer roupa,
no meio fio, ao lado dos carros passando.
Outro aspecto notável
consistiu no misto de estabelecimentos comerciais já abertos, em dias e
horários permitidos nos decretos do governo local, e de tantos outros da
mesma natureza ainda fechados, como restaurantes, comércios e
prestadores de serviços; alguns já com placas de "passa-se o ponto" ou
de "venda/aluguel". Algo que, possivelmente, indica a quantidade de
negócios que não conseguirão reabrir. Muitos outros bares, casas
noturnas e ambientes de diversão fechados ou, ainda, com indicativos de
fim das operações, são facilmente vistos. A retomada econômica e das
atividades comerciais por São Paulo dá aparência de que não será nada
fácil. Assustador
também é a abundância de lixo e entulho espalhados nas ruas da cidade,
especialmente na parte mais central. Algo que só elevam as sensações de
abandono e de terra arrasada, promovendo mais medo nas pessoas ao saírem
nas ruas. Vi cenários dignos de filmes de pós-guerra ou que retratam
centros urbanos abandonados e locais dominados por extrema violência. De
fato, as ruas e calçadas foram tomadas por entregadores de mercadorias,
alimentos e refeições. Eles atuam a pé, em bicicletas, motos, carros e
até de skates. Alguns transitam em altas velocidades, especialmente os
motoqueiros. São facilmente identificados por meio das bagagens que
levam nas costas e a constante pressa. Na
última noite em São Paulo, quando estava produzindo as derradeiras
imagens na Avenida Paulista, presenciei a cena mais triste e chocante.
Um senhor de uns 50 anos de idade, logo a minha frente, caminhando no
sentido Paraíso/Consolação, do lado e nas proximidades do Masp, levando
algumas sacolas plásticas cheias, passou a buscar em cestos de lixo, um
após o outro, restos de comida. Acompanhei a saga desse senhor à procura
de comida e, por repetidas vezes, não menos do que dez, estive diante
dessa condição extrema, comovente e lamentável. Uma condição deplorável e
inaceitável para qualquer ser humano. Em
uma perspectiva econômica ampla, dados da PNAD COVID-19, realizado pelo
IBGE com o apoio do Ministério da Saúde no mês de maio/2020, para
visualizar impactos da pandemia no mercado de trabalho, apontam para o
drama vivido por muitos brasileiros em meio à crise, em decorrência de
desemprego ou da falta de possibilidade de busca de atuação, algo que
deve ser agravado nos primeiros meses de retomada das atividades
econômicas.
Na última semana de maio cerca de 17,7 milhões de
pessoas não procuraram emprego no Brasil, em função da pandemia ou por
falta de oportunidades. Adicionando a esse número os 10,9 milhões que
estavam desempregadas e em busca de uma ocupação, temos um total de 28,6
milhões de pessoas que queriam um emprego, mas encontraram dificuldades
na inserção no mercado. O IBGE estima que 84,4 milhões de pessoas
estavam ocupadas no país, de um montante de 169,9 milhões com idade para
trabalhar. A informalidade, apesar de ter caído durante o mês de maio,
atinge em torno de 30 milhões de pessoas.
Quedas na produção
industrial, no comércio e nos serviços durante a pandemia, que vão
promover mais desemprego e escassez de recursos em muitos lares, só irão
agravar a situação econômica do Brasil nos próximos meses. Os pedidos
de recuperação judicial e falência, especialmente de pequenas empresas,
crescem no país nesses meses de pandemia, segundo dados da Serasa, e
devem disparar nos primeiros meses após a crise.
No estado de São
Paulo, locomotiva econômica do país, as perdas e danos com a pandemia
são diversos. Estimativa recente da Secretaria de Desenvolvimento
Econômico do estado aponta para uma queda de 5,5% do PIB, com perda de
arrecadação em torno de R$ 18 bilhões. São Paulo, assim como os outros
estados, depende hoje de ajuda e de repasses da União para enfrentar os
prejuízos do período de pandemia. Um total de R$ 107,1 bilhões está
sendo repassado aos entes federativos estaduais, de acordo com
levantamento do Instituto Fiscal Independente - IFI. Apenas ao estado de
São Paulo encontram-se disponíveis cerca de R$ 25,9 bilhões, segundo o
referido Instituto.
Levantamento do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada - Ipea indica uma queda de 72% na abertura de
empresas de 1o de abril a 5 de maio de 2020 na cidade de São Paulo, em
relação ao mesmo período do ano passado. Ao município de São Paulo está
previsto em Lei R$ 1,37 bilhão vindo da União para o enfrentamento da
COVID-19, fora os repasses do estado.
Diante do cenário exposto,
com cenas de terra arrasada, muitas perdas e danos, bem como devido ao
isolamento estabelecido, algumas perguntas são necessárias pensando na
cidade de São Paulo, mas que podem ser direcionadas a outras realidades.
A maioria das possíveis respostas deveria estar disponível nas
plataformas de comunicação do ente público, o que não ocorre. Os dados
disponíveis são básicos e relativos à adesão ao isolamento, à ocupação
de leitos disponíveis e aos números de casos e mortes, especialmente,
além do jargão "FIQUE EM CASA".
A primeira pergunta que surge diz
respeito à infecção de pessoas que continuaram trabalhando nesse período
de isolamento social. Os trabalhadores em áreas e atividades
essenciais, como supermercados, verdurões, lojas de materiais de
construção, indústrias, porteiros, seguranças, entregadores,
caminhoneiros, motoristas, taxistas, construção civil, atendentes de
postos de combustíveis, garis, dentre outros, foram mais infectados do
que os que ficaram em casa? Morreram mais pessoas que atuam nessas áreas
do que em outras que pararam as atividades durante a pandemia?
Os
entregadores estão desempenhando importante papel para evitar a
circulação de pessoas pela cidade. Eles foram mais infectados ou
morreram em maior número por isso? Infectaram pessoas nesse ir e vir
constante, especialmente nos contatos diretos nos momentos iniciais e
finais de entrega? Esse e outros dados das pessoas que estão atuando
neste período da pandemia tornam-se imprescindíveis para melhor se
compreender a situação de emergência na saúde pública.
Sabemos que
a área da saúde é um caso à parte, devido à proximidade com infectados e
portadores de outras doenças contagiosas. Mesmo assim, os dados também
são importantes para traçar comparações e realizar análises.
Considerando
o aumento de pessoas vivendo nas ruas de São Paulo nesse período da
pandemia, famílias inteiras, idosos e crianças, além dos adultos de
ambos os sexos, verifica-se a necessidade de acompanhamento dessa
realidade. Esse público tem sido testado para a COVID-19? Foram mais
infectados do que outros segmentos sociais, por estarem expostos aos
contatos de rua, por vezes sem o uso de medidas preventivas adequadas?
Morreram muitos moradores de rua em decorrência de sintomas graves da
doença? Essas e outras perguntas precisam ser respondidas pelo poder
público.
As dúvidas são muitas. Por que a cidade e o estado de São
Paulo, bem como outros Brasil afora, preferiram investir em novos
hospitais, muitos improvisados, em detrimento de investimentos em
equipes de saúde para o atendimento de pessoas em casa?
Para que as pessoas não saiam de casa para os hospitais, infectando e sendo infectadas.
Qual
o motivo da falta de estímulos para as medidas de prevenção de baixo
custo no início da pandemia, como distanciamento social e o uso de
máscaras?
Sabemos que o isolamento social não promoveu um baixo
número de casos e mortes, mas causou elevados prejuízos sociais,
econômicos e na saúde pública, com a falta de combate e enfrentamento de
outras doenças e os efeitos psíquicos colaterais ao próprio isolamento.
Por que ainda insistem no isolamento?
Fica
ainda a dúvida da interferência das disputas políticas no enfrentamento
da pandemia. Por que estados e municípios com governadores e prefeitos
alinhados politicamente com o governo federal apresentaram números
menores de casos e de morte? Mera coincidência?
Os estados de São
Paulo e do Rio de Janeiro apresentam, respectivamente, os maiores
números de casos e de mortes apenas em decorrência das maiores
populações do Brasil? Decisões no enfrentamento, como falta de
protocolos com os medicamentos baratos disponíveis para a fase inicial
dos sintomas interferiu no número de mortes? O uso dos hospitais e dos
respiradores nos casos graves justificam os elevados gastos?
Houve
ou não um grande acordo entre governadores e prefeitos para derrubar o
Governo Federal? Quem mais apoiou esse possível acordo?
Outro dado
estatístico importante a ser levantado está relacionado à atuação de
jornalistas e profissionais de imprensa durante a pandemia. Por não
terem parado e sido constantemente expostos aos diversos cotidianos de
rua, esses profissionais foram mais infectados? Ocorreram muitas mortes?
Tanto
em função do elevado número de casos e de mortes, como devido a
quantidade de pessoas que vivem na cidade de São Paulo, as estatísticas
tornam-se extremamente necessárias para se melhor entender a pandemia.
Em
Nova Iorque, por exemplo, os números demonstraram que 66% das pessoas
que precisaram de atendimento médico em decorrência da infecção pelo
novo coronavírus estavam em casa, sem contatos com as ruas. Aos dados do
estado mantêm-se a mesma importância dos dados estatísticos.
Vale
mencionar, ainda, que a maioria dos mortos pela ou com a COVID-19 em
São Paulo é composta por pessoas das camadas menos favorecidas da
sociedade, com rendas mensais até três salários mínimos. Por quê?
Em
suma, diante dessas e outras, a cidade de São Paulo é ambiente de medos
nesse momento. Medo do invisível, do vírus que pode está em qualquer
lugar, nas ruas, nos meios de transportes públicos, nos estabelecimentos
e também nos lares. As pessoas acabam sendo vistas como potenciais
ameaças, gerando desconfianças mútuas. Os medos já existentes devido a
problemas sociais como violência, trânsito inseguro e desemprego, ganhou
um forte aliado: o medo de contrair o novo coronavírus e de evoluir
para complicações de saúde mais graves e, até, morrer.
Da forma
que a pandemia foi tratada pelo poder público, com total apoio dos
grandes veículos de comunicação, alarmando e aterrorizando a população,
mostrando covas, enterros e caixões, promoveu um encontro entre os
temores do vírus com o maior desafio e incógnita da existência humana, o
medo da morte. O ser humano ocidental capitalista, que normalmente
tenta esquecer a sua finitude e afasta-se de tudo relacionado à morte, é
lançado de frente, cara a cara, com um potencial causador de sofrimento
e morte.
Apesar de serem certos os problemas psíquicos e sociais,
além dos econômicos, em decorrência dessa forma de abordagem da
pandemia, não se pode ainda avaliar a gravidade deles. O futuro é
incerto e nebuloso, não muito diferente das ações desencontradas,
descoordenadas e dos erros no enfrentamento da pandemia. Ver São Paulo
nesse estado de mundo arrasado é triste e desolador. Por dias melhores.
Em
essência, a minha visita a São Paulo durante a pandemia tanto foi
importante para eu confrontar, enfrentar e, até, eliminar os medos
colocados e difundidos, como para experimentar e adquirir a capacidade
de sobrevivência em momentos desafiadores. Fica um crescimento pessoal e
profissional, apesar das variadas imagens fortes e aterrorizantes.
Nunca pensei vivenciar 'Sampa' nesses cenários de guerra. *Todas as imagens são de autoria do jornalista Marcílio Souza, autor do texto.
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