Se Oswaldo Eustáquio é blogueiro ou jornalista não interessa. O grave é
que ele foi preso por suas opiniões. Até um “inimigo” saiu em sua
defesa. Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
Lá vamos nós, mais uma vez, falar de Oswaldo Eustáquio. Que, em
tempos normais, seria apenas mais um ser humano, por acaso brasileiro,
por acaso alfabetizado, por acaso com acesso à Internet e por acaso
crítico um tanto quanto descalibrado das instituições que ele considera
ideologicamente carcomidas. Mas que em tempos excepcionais passou dez
dias na cadeia, a mando do Supremo Tribunal Federal, por falar/escrever
bobagens, dando início a uma das disputas mais tolas de um século fértil
em tolices do gênero.
Falo, evidentemente, do “dilema profissional” de Eustáquio.
Blogueiro, gritam uns; jornalista, berram outros. Eu, aqui do conforto
de quem não consegue entender nem essa disputa lexical nem a lógica por
trás da perseguição a uma pessoa só porque não concordamos com a visão
de mundo dela, me pergunto se isso é mesmo uma questão importante – e
para quem. Se ele fosse médico, sua prisão seria mais digna de
escândalo? Se fosse um catador de papel será que alguém se levantaria
contra esse absurdo?
O “dilema” é mais simples do que parece e revela, entre outras
coisas, todo o amor que o brasileiro dito intelectualizado nutre por um
pedaço de papel capaz de lhe conferir uma identidade – basta ver o caso
recente do quase-ministro da Educação Carlos Alberto Decotelli. Não se
engane: quem prega jocosamente em Eustáquio a letra escarlate de
“blogueiro”, ignorando o que diz a carteira de trabalho e o currículo
(espero que verdadeiro) dele, é porque há muito tempo abdicou da
condição de indivíduo e só consegue se ver como parte de uma classe
sujeita a uma ortodoxia.
Além disso, ao ignorar ou até celebrar a flagrante imoralidade da
prisão de uma pessoa por crime de opinião e se ater à picuinha
blogueiro/jornalista, é como se os colegas de profissão de Eustáquio
traçassem uma linha divisória igualmente imoral entre a opinião certa (a
deles) e a opinião errada (a de todos os que não ostentam o diploma
cafona na parede).
Contradição inerente à democracia
Quem se manifesta sobre a prisão inaceitável de Oswaldo Eustáquio,
mas insiste em chamá-lo de “blogueiro”, está usando um artifício vil
para desqualificá-lo, como se as palavras escritas nesse tipo de
plataforma não merecessem atenção. O leitor atento aqui percebe quão
contraditório é isso. Afinal, se as palavras de um blogueiro não valem
absolutamente nada, por que prendê-lo?
A tentativa de desqualificação é tão óbvia quanto contraproducente. E
quem lê, ouve ou assiste ao noticiário que faz uso desse expediente
percebe. É como se a boca de quem dá a notícia se contorcesse numa
expressão de nojo. De uma ojeriza que nada tem a ver com o meio usado
por Eustáquio e tantos outros para expressar suas ideias – admiráveis ou
não. Tem a ver com o conteúdo das postagens deste ou daquele blogueiro
de sua (nossa) preferência.
De Eustáquio em específico se diz duas coisas. Primeiro que ele é um
contumaz disseminador de notícias falsas. Mas talvez já esteja na hora
de desmistificar um pouco esse negócio de notícia falsa. As pessoas
falam em notícias falsas como se elas fossem um fenômeno novinho em
folha, nascido das entranhas das redes sociais. Como se as pessoas
fossem incapazes de diferenciar uma mentira deslavada de uma verdade ou
até semiverdade. E como se essas notícias falsas (também conhecidas como
boatos, fofocas e mentiras) tivessem o poder de mudar o destino do
país.
Essa fetichização da notícia falsa é um fenômeno interessante porque
escancara o paternalismo com que alguns intelectuais, jornalistas ou
não, tratam seus leitores, ouvintes ou telespectadores. Todo esse medo
da mentira é também uma distorção do próprio conceito de credibilidade
no qual se baseia o trabalho da imprensa. Credibilidade não é algo
palpável; não é algo impresso no granito da eternidade. É algo que se
conquista aos poucos e que infelizmente pode se esvair de uma hora para
outra.
Não à toa, o conceito de notícia falsa, embrulhado na terminologia
anglófila, tem atraído políticos oportunistas que acreditam ter o poder
de domesticar a realidade para adequá-la a seus interesses.
Em segundo lugar, diz-se que Eustáquio é um militante antidemocracia.
Alguém que estaria querendo impor uma ditadura fascista, bolsonarista
ou bolsolavista (chame como quiser) no Brasil. Um ser deplorável, digno
de prisão, que agiria nas trevas da notícia e que não comunga dos
valores liberais que supostamente nos unem desde que Tancredo Neves foi
indiretamente eleito.
Aqui o problema é mais incômodo. Porque é próprio da democracia (ou
melhor, Democracia) abrigar com parcimônia aqueles que a atacam (até o
extremo proposto no chamado Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper). Eu
iria além e diria que a Democracia precisa de pessoas antidemocráticas
para mostrar ainda mais seu valor. E a história recente está cheia de
intelectuais não-fascistas que, de uma forma ou de outra, questionaram
vários dos instrumentos democráticos.
Assim de memória me vêm à mente, por exemplo, Murray Rothbard, que no
livro Anatomia do Estado aponta o Poder Judiciário como o elo
moralmente mais fraco da Tríplice Aliança que nos governa. Hans-Hermann
Hoppe, em seu panfletário O que Deve Ser Feito, vai além e propõe que se
use o “populismo de direita” para se acabar com o que ele considera uma
perversão da democracia. No remoto século XIX, o velho e bom
Tocqueville, observador da Revolução Americana, também tinha receio
quanto à suposta perfeição do tal governo do povo, pelo povo e para o
povo.
“Paladino da Liberdade”
Essa contradição inerente aos regimes democráticos é uma das coisas
que os torna tão fascinantes. Ao prender um homem por se posicionar
contra as instituições democráticas, portanto, o ministro Alexandre de
Moraes e seus colegas do Supremo Tribunal Federal apenas demonstram quão
frágeis são essas mesmas instituições. A prisão de Oswaldo Eustáquio,
bem como de qualquer pessoa que aponte o dedo para aquele castelinho de
areia projetado por Oscar Niemeyer na Praça dos Três Poderes, acaba
soando como uma confissão de fracasso.
Isso sem falar no efeito colateral do martírio. Ao prender um
blogueiro, jornalista, médico ou catador de papel porque ele expressou
sua vontade de ver o STF fechado, o ministro criou um monstro. Neste
caso, um monstro envolto em virtudes que eu, pessoalmente, considero
falsas. Ou alguém duvida que a opinião antidemocrática de Eustáquio,
antes restrita aos grupos mais exaltados, ganhará força e ecoará mais
pelas veredas da Internet? Assim, aquele que era apenas um jornalista
sem expressão expondo para meia-dúzia sua ignorância política se
transformou, por obra e graça do ministro Alexandre de Moraes, no
Paladino da Liberdade - o que ele evidentemente não é.
Ah, contra-argumentarão alguns, mas os ministros do Supremo Tribunal
Federal estavam tendo sua honra violada com palavras de baixíssimo calão
e acusações sem fundamento. Estavam, absurdo dos absurdos, tendo suas
decisões questionadas. Eustáquio inventava teorias malucas para
justificar esse ou aquele veredito. Ele se recusa (recusava?) a aceitar a
infalibilidade jurídica e moral dos homens e mulheres de capa preta
que, por exemplo, recentemente negaram liberdade a um jovem preso por
furtar dois frascos de xampu.
Diante do que pergunto: será que os ataques à honra dos ministros não
têm a ver com o protagonismo que o Judiciário assumiu na política
brasileira desde o julgamento do Mensalão? Não seria efeito colateral da
hiperexposição narcisista dos membros da Corte, de uma celebrização do
saber jurídico que, pensando bem, também pode ser interpretada como um
desvirtuamento das funções democráticas? E que honra frágil é essa que
se deixa abater por... palavras? Nessa toada, em breve o STF haverá de
criar o crime de ministro-do-esse-te-efe-fobia.
Quanto a questionar sentenças e não aceitar a sacralização de Suas
Excelências (em que se pese o tom estupidamente raivoso dos
questionamentos e das críticas), não seria justamente o trabalho de um
jornalista incomodar, importunar, chafurdar no lixo do poder e expor
todas as caquinhas que porventura encontrar?
Um nobre Glenn Greenwald
Diante da prisão escandalosamente arbitrária de alguém que um dia fez
até parte da estrutura sindical, o silêncio das eternamente indignadas
entidades de classe e dos formadores de opinião sempre muito incisivos
em sua defesa da liberdade, sem falar nessa birrinha em chamar Oswaldo
Eustáquio de blogueiro, e não de jornalista, expõem um duplipensar que
não é novo, mas que sempre tomou muito cuidado para não ficar assim tão
evidente. Como se diz por aí, caíram as máscaras.
E eu poderia aqui citar vários momentos da história recente em que a
“classe” se uniu contra os desmandos dos poderosos que tentaram
silenciá-la ou intimidá-la. Mas prefiro terminar este texto destacando
uma notória exceção ao silêncio corporativista no caso Oswaldo Eustáquio
– que jamais será estudado nas faculdades de jornalismo, por motivos
óbvios.
Me refiro à postura nobilíssima do jornalista (nunca blogueiro) Glenn
Greenwald, de quem discordo em praticamente tudo, mas que despertou
minha mais sincera admiração ao dar uma lição de, vá lá, espírito
democrático, solidariedade e até humanismo ao condenar a prisão de
Eustáquio.
O mesmo Eustáquio que, vale lembrar, ofendeu a mãe (!) de Greenwald e
que foi condenado a pagar indenização por isso. O mesmo Eustáquio que é
assim uma espécie de nêmesis de todos os jornalistas do Intercept. O
mesmo Eustáquio que Greenwald poderia muito bem querer ver mofando na
cadeia. O mesmo Eustáquio que apoia o governo de Jair Bolsonaro – do
qual Greenwald e os seus são opositores virulentos.
O que mostra que defender Oswaldo Eustáquio neste caso específico não
significa concordar com suas (dele) visões políticas ou com seus
métodos de fazer jornalismo. Não significa nem mesmo endossar o caráter
dele. Não significa, de jeito nenhum!, engrossar o coro daqueles que
pedem que o STF seja fechado. Tampouco significa se juntar à turba
jacobiníssima que pede guilhotina para este ou aquele membro do
Judiciário.
Significa apenas constatar que, numa Democracia digna do “d”
maiúsculo, com tribunais respeitáveis e ministros da Suprema Corte acima
de qualquer suspeita, todos, independentemente do registro profissional
e do diploma cafona na moldura igualmente cafona, têm o direito de
falar/escrever o que bem entender. E, se incorrer nos crimes de injúria,
calúnia e difamação, responder por isso se submetendo ao devido
processo legal. E, uma vez condenado, pagar pelo erro – o que geralmente
significa, pelo baixo potencial ofensivo do crime, algumas cestas
básicas e algumas horas de trabalho comunitário.
Qualquer prisão ou persecução criminal fora disso é expressão de um
autoritarismo temeroso, digno da alcunha que tanto incomoda aqueles que
constitucionalmente detêm o monopólio da tomada de decisão: “Ditadura de
Toga”.
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BLOG ORLANDO TAMBOSI

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