Esperava-se que a ciência nos protegesse das piores doenças, mas a
humanidade foi apanhada de surpresa. Afinal, o que é que tem de tão
misterioso o coronavírus? Um ensaio de José Manuel Fernandes, publisher
do Observador:
1. Uma vala comum no Alasca
Em Agosto de 1997 um velho patologista reformado de origem sueca, Johan Hultin,
abriu pela segunda vez uma antiga vala comum na remota aldeia de Brevig
Mission, nos confins do Alasca, já quase no estreito de Bering. Não era
a primeira vez que Hultin ali estava: muitos anos antes, em 1951,
também tentara recuperar dos cadáveres congelados nessa vala comum o
agente patogénico que matara, em apenas cinco dias de 1918, 72 dos 80
esquimós que viviam nesse fim do mundo. Desta vez teria mais sorte, pois
encontrou os restos de uma mulher gorda com os pulmões ainda bem
conservados – o solo sempre gelado, o permafrost, em que fora sepultada
permitira esse milagre.
A segunda parte do milagre teria por palco o Instituto de Patologia
das Forças Armadas dos Estados Unidos, onde um ainda jovem virologista, Jeffery K. Taubenberger,
se lembrara de tentar encontrar restos do mesmo agente patogénico nos
tecidos de 77 soldados que tinham morrido de “gripe espanhola” na imensa
“biblioteca” de amostras que, desde os tempos do Presidente Lincoln, as
Forças Armadas americanas conservam. Com a ajuda do material que Johan
Hultin lhe levou e das tecnologias que entretanto a ciência
desenvolvera, Taubenberger pode finalmente revelar, em 2005, qual era o
genoma do vírus que, em 1918, matara entre 50 e 100 milhões de pessoas
em todo o mundo. Um vírus da família H1N1, que não tem deixado de andar
por aí e pregar alguns sustos nas últimas décadas, mas sem nunca voltar a
ser tão mortal.
Quando recordamos o tempo que a ciência levou até perceber que a
“gripe espanhola” tinha sido provocada por um vírus (primeiro atribuiu-a
a uma bactéria, pois pensava-se que era uma bactéria que causava a
gripe, a Hemophilus influenzae), depois que esse vírus tinha relação com
animais, a seguir que era da mesma família do responsável por outras
pandemias que afligiram a humanidade até que, finalmente, 87 anos
depois, o seu genoma foi decifrado, percebemos como são diferentes as
armas com que combatemos hoje a pandemia. Afinal o genoma do SARS-CoV-19
não levou senão uns dias a ser identificado, decifrado e partilhado com
cientistas de todo o mundo.
Contudo, continuamos todos fechados em casa, ou quase. Tal como em
1918 não conhecemos outra forma de limitar os estragos da doença para
além do mesmo isolamento social que há mais de um século permitiu evitar
danos ainda maiores. E das mesmas máscaras, agora um pouco mais
sofisticadas. Nessa altura, a pandemia quase desapareceu depois de uma
segunda vaga especialmente mortífera (ainda haveria mais duas vagas, mas
menores) por razões que ainda são objecto de controvérsia, mas hoje não
sabemos se vai haver segunda vaga, não sabemos se a primeira vaga vai
abrandar com o tempo mais quente, não sabemos quando chega a vacina, não
sabemos porque são os mais velhos os mais ameaçados, não sabemos, não
sabemos…
Sabemos tanto e ao mesmo tempo tão pouco. Que tem afinal este vírus e esta doença que desorienta os especialistas?
2. O “Homo Deus” em dúvida
Até esta pandemia a nossa confiança na ciência parecia quase
ilimitada. “Ninguém pode garantir que as pragas não regressarão, mas
temos boas razões para acreditar que na corrida entre os médicos e os
germes, os médicos correm mais depressa” escreve-se logo no primeiro
capítulo de um dos livros mais lidos em todo o mundo nos últimos anos, “Homo Deus: História Breve do Amanhã”,
de Yuval Noah Harari. Apesar de o autor alertar insistentemente contra
os que perseguem a imortalidade, e duvidar que fosse possível que a
esperança de vida duplicasse durante o século XXI, como duplicou no
século XX (passou de 38 para 75 anos, teria agora de chegar aos 150
anos…), a verdade é que vivíamos tempos de fé na omnisciência e na
inexistência de limites. A Covid-19 pode estar a trazer-nos de volta à
terra até por estar a flagelar sobretudo – pelo menos até agora – as
sociedades mais desenvolvidas e até as cidades que pareciam melhor
equipadas e preparadas.
É que às perguntas que toda a gente faz e derivam da mais básica de
todas – afinal, quando é que isto vai acabar? – juntam-se inúmeras
dúvidas cientificas. É verdade que conhecemos a sequência das quatro
bases diferentes da tira de RNA que está dentro de cada vírus. Também o
vimos bem ao microscópio electrónico e por isso sabemos que é um
coronavírus, que tem a forma de uma esfera em que as proteínas que usa
para entrar nas células são como que espinhos, ou espículas, à sua
superfície. Identificámos cada uma das suas proteínas e até já sabemos
como é que algumas delas actuam dentro do nosso organismo.
Vimos o bicho, sabemos descrever o bicho. Mas desconhecemos quase
tudo o resto. De onde foi que ele veio? Como é que lá foram parar os
pedaços de código genético que o tornam tão perigoso? Porque é que
algumas pessoas ficam muito doentes e outras nem dão por estarem
infectadas? Há alguma explicação para ser tão perigoso para os mais
velhos e quase inofensivo para os mais novos? Qual o verdadeiro número
de infectados? Aquele que aparece nas estatísticas ou outro 5, 10, 50
vezes mais elevado? E se não conhecemos esse número, como é que podemos
saber a verdadeira taxa de mortalidade? Será que as pessoas desenvolvem
realmente imunidade? E quanto tempo dura essa imunidade? É mesmo
possível ter uma vacina ainda em 2020, ou nem sequer em 2021?
Ao mesmo tempo, nunca tantos recursos foram dedicados a estudar uma
só doença. Nunca tantos papers científicos foram publicados num tão
curto espaço de tempo. E mesmo assim o nevoeiro não se dissipa, por
vezes até se adensa. Uma das razões é precisamente a forma como a
ciência tem progredido nestas semanas.
Habitualmente a investigação científica evolui através de um processo
que passa pela publicação dos trabalhos em revistas sujeitas a peer
review. O sistema de peer reviews, ou revisão pelos pares, significa que
o trabalho foi enviado para outros cientistas que validaram os métodos e
consideraram relevantes as conclusões. É um processo exigente mas
lento. A publicação de um estudo, ou de uma descoberta, pode demorar
meses.
A urgência da pandemia virou este universo de pernas para o ar ao dar muito maior protagonismo a sites que aceitam publicar trabalhos sem essa revisão prévia. Um deles, por exemplo, é o bioRxiv,
que se deve ler “bio arquivo”, e onde todos podem partilhar os seus
trabalhos enquanto esperam por publicação numa revista com peer review. É
uma espécie de site de pré-publicações, preprint (não é o único, outro é
o medRxiv, mas há muito mais),
que nas últimas semanas foi literalmente submerso por milhares de
trabalhos de todo o tipo e também de muito diferente qualidade. Nestas
semanas a quantidade de downloads é 100 vezes superior à que era em
Dezembro, o que não surpreende se pensarmos que só nestes dois servers,
bioRxiv e medRxiv, já haverá quase dois mil papers preprint disponíveis,
sendo que só quatro foram despublicados.
A passagem directa do vírus de um morcego para o homem não é
impossível mas é pouco provável, porque a proteína dos “espigões”,
fundamental para que o vírus entre nas células, é diferente nos vírus
dos morcegos.
Um desses trabalhos entretanto retirados foi aquele que referia
falsamente que haveria no genoma do SARS-CoV-19 sequências do genoma do
HIV, uma alegação que alimentou teorias da conspiração. Ao mesmo tempo é
também desses sites que saem muitos dos estudos que alimentam os
noticiários, por vezes sem toda a necessária sustentação.
Contudo é também por aqui que passa muita investigação séria nestes
dias de corrida contra o tempo – uma corrida que na contabilidade da OMS
já levou à publicação de mais de 15 mil papers em todo o mundo, a
maioria sem peer review mas na sua maioria acrescentando sempre algum
conhecimento novo.
3. 4% de diferença é muito ou pouco?
A primeira grande dúvida sobre o vírus é de onde é que ele veio. E
não, não me refiro a saber se apareceu no mercado de Wuhan ou se
eventualmente deriva de uma fuga acidental do laboratório de microbiologia de alta segurança daquela cidade chinesa,
um tema que dificilmente será esclarecido enquanto a China mantiver a
sua falta de transparência. Refiro-me a como o SARS-CoV-19 se tornou
SARS-CoV-2.
Até agora havia algumas coisas que sabíamos. Uma era da existência de
coronavírus. Eles foram pela primeira vez identificados em 1966 por June Almeida,
uma virologista escocesa que era quase uma autodidata, e até 2002 as
estirpes conhecidas eram relativamente benignas e provocavam pouco mais
do que constipações. O SARS é o primeiro coronavírus realmente perigoso.
Apareceu no sul da China em 2002 e espalhou-se pelo mundo em poucos
meses, infectando oito mil pessoas e matando mais de 800. A sua taxa de
mortalidade era pois elevadíssima, mas mesmo assim menor do que a de um
outro coronavírus que surgiu no Médio Oriente, o MERS, que desde 2018 já
foi detectado em mais de 2.200 pessoas e matou também perto de 800.
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| Fátima, deserta. |
Nestes dois casos o caminho do vírus até ao homem foi identificado.
Estes coronavírus são apenas mais dois dos muitos agentes patogénicos
que passam do mundo animal para os humanos – estima-se, de resto, que
60% das nossas doenças tenham origem em zoonoses, isto é, em doenças que
saltaram de espécie, que passaram dos animais para a espécie humana.
Por regra é nos morcegos que encontramos mais variedade de
coronavírus. Os primeiros que foram identificados e só causam
constipações terão chegado até nós passando primeiro por ratos. O SARS
de 2002 terá chegado aos humanos através das civetas, ou
gatos-almiscarados, um dos muitos animais selvagens traficados na China e
vendidos sobretudo nos mercados de Guangdong, a antiga Cantão. Já o
MERS tem como hospedeiro intermediário o camelo.
O grande reservatório de coronavírus são aparentemente os morcegos, e
nos casos que nos interessam os morcegos que vivem nas províncias do
sul da China, onde alguns estudos em áreas rurais
encontraram nas populações anticorpos ao SARS, sinal de que já teria
havido algum tipo de infecção nessas áreas. Assim, há muito que
cientistas chineses, dirigidos por Shi Zhengli, procuram nas grutas
desta província vírus semelhantes ao que causou o grande susto de 2002.
Tudo em nome de encontrar forma (vacinas, tratamentos) para o eventual
aparecimento de um vírus semelhante.
Entre os espécimes conhecidos que Shi Zhengli, a “mulher morcego”,
estudou no seu laboratório no Instituto de Microbiologia de Wuhan
conta-se uma variedade, baptizada ratg13, que partilha 96% do código
genético do SARS-CoV-2. Um valor de 4% de diferença parece pouco, mas
para que, por sucessivas mutações, um ratg13 pudesse transformar-se no
coronavírus que atormenta o mundo seriam necessários 50 anos, de acordo
com os cálculos dos cientistas. Ou então, se forem “primos” e tiverem um
antepassado comum, necessitariam de pelo menos duas décadas de evolução
divergente.
Por outras palavras: o nosso SARS-CoV-2 pode ser um parente do ratg13
que continua a circular entre os morcegos de Yunan e ainda não foi
detectado, mas também pode ser um parente que entretanto deu o salto
para uma qualquer espécie intermediária (um pangolim?) e foi aí que evolui para SARS-CoV-2.
A passagem directa do vírus de um morcego para o homem não é
impossível mas é pouco provável, porque a proteína dos “espigões”,
fundamental para que o vírus entre nas células, é diferente nos vírus
dos morcegos. Isto parece sugerir que o vírus passou por um processo de
recombinação numa espécie intermediária onde exista uma forma de
proteína mais eficaz para atacar as células humanas. Essa forma de
proteína existe por exemplo nos pangolins, e por isso esta espécie
surgiu como uma das hipóteses, mas também existe nos gatos ou nos visons
de cativeiro.
Mas e não seria possível manipular geneticamente um dos vírus
estudados no Instituto de Microbiologia de Wuhan para o tornar
especialmente patogénico? Esta é a versão preferida dos adeptos das
teorias da conspiração, mas sucede que há melhores explicações
para a evolução deste vírus para além de que a engenharia genética
deixa como que “cicatrizes”, isto é, deixa marcas no material genético
manipulado e os cientistas de todo o mundo que até agora analisaram o
genoma do SARS-CoV-2 não encontraram essas marcas. Mas encontraram outros mistérios.
4. A importância de 12 letras
Estas são as quatro bases de que se forma o ácido ribonucleico, ou
RNA, as letras a forma como as designámos para melhor explicitar um
código genético. No RNA essas bases dispõem-se numa única fita, ao
contrário da dupla hélice do mais complexo DNA. Tudo é de resto
aparentemente muito simples neste vírus que precisa apenas de 29.903
letras para ter todos as instruções necessárias ao fabrico das suas
perigosas proteínas. No meio dessa sequência os cientistas identificaram
um pequeno troço de apenas 12 letras que pode conter o segredo para a
eficácia e virulência do SARS-CoV-2.
Uma das razões porque este vírus é tão eficaz é porque ele consegue
ao mesmo tempo alojar-se nas vias respiratórias superiores – garganta e
nariz – e penetrar no organismo para infectar não só os pulmões como
outros órgãos como o fígado, os rins ou mesmo o coração. Habitualmente
os vírus que são eficazes nas vias respiratórias superiores são muito
contagiosos, pois é fácil espalhá-los quando tossimos, espirramos ou
mesmo simplesmente quando falamos ou respiramos, pois tudo leva
gotículas para o ar à nossa volta. Em contrapartida estes vírus
raramente são mortais – entre eles contam-se os coronavírus das
constipações comuns. Já os que penetram mais fundo no organismo, como o
SARS de 2002, têm uma menor taxa de contágio mas uma elevadíssima taxa
de mortalidade. É por reunir estas duas capacidades que o SARS-CoV-2 se
conseguiu espalhar tão depressa por todo o mundo e provocar tantas
mortes onde quer que chegasse. Só para se ter uma ideia, a capacidade
deste coronavírus se reproduzir e multiplicar nas nossas gargantas é mil
vezes superior às do SARS-CoV-1 de 2002.
Uma das explicações possíveis para esta sua ubiquidade é ter uma
capacidade fora do comum de penetrar nas nossas células. Fá-lo através
das tais proteínas em forma de espinho, ou de espícula, as proteínas S
que cobrem a sua superfície, e que funcionam como uma gazua para abrir a
porta das células. Para isso essas espículas têm de se encaixar numas
proteínas que existem nas membranas de muitas das nossas células, as
enzimas conversoras de angiotensina 2, conhecidas por ACE2. Essas
proteínas desempenham um papel regulador da tensão arterial, o que
explica porque é que pessoas com hipertensão ou diabetes correm maiores
riscos, pois nos seus organismos estas proteínas estão, por assim dizer,
mais presentes, ou mais disponíveis, e um vírus oportunista como este
tira partido dessa fragilidade. Aparentemente estas enzimas têm também uma maior concentração no sangue dos homens,
o que ajuda a explicar porque têm estes uma maior taxa de mortalidade
do que as mulheres. Voltaremos mais adiante a estes temas.
Uma vez realizado o “encaixe” – que se concretiza quando a “cabeça”,
ou a “garra”, da espícula se agarra à enzina – falta ainda romper, ou
cortar, a parede da célula. O SARS de 2002 usava para o fazer outras
duas enzimas presentes nas nossas células, a TMPRSS2 e as catepsinas.
Alguns estudos, nomeadamente os realizados por Stefan Pöhlmann no Centro de Primatas da Alemanha, indicam que o SARS-CoV-2 utiliza uma terceira enzina, a furina.
Outros vírus, como o ébola, o dengue ou o vírus da sida, também
utilizam a furina para “rasgar” as paredes celulares, pelo que aqui não
há grande novidade. A novidade está em que, como a furina está presente
nas células de muito mais tecidos e órgãos do que as outras duas
enzinas, esta nova variedade de coronavírus passou a poder também
infectar esses órgãos. É isso que explica que apareçam doentes de
Covid-19 com sintomas tão atípicos como simples diarreias ou que em
doentes já a serem tratados a infecções nos pulmões possa falhar o
fígado, os rins ou surgirem problemas cardiovasculares.
A análise do genoma do SARS-CoV-2 parece indicar que a famosa
espícula está codificada em apenas 3.381 letras (doze vezes menos que as
necessárias para escrever este artigo) e que a única sequência
substancialmente diferente do código para a espícula do SARS de 2002 são
mesmo aquelas 12 letras.
Uma das razões porque este vírus é tão eficaz é porque ele consegue
ao mesmo tempo alojar-se nas vias respiratórias superiores – garganta e
nariz – e penetrar no organismo para infectar não só os pulmões como
outros órgãos como o fígado, os rins ou mesmo o coração.
Regressamos assim ao mistério de como surgiu este vírus, agora com
esta variante: como é que aquelas 12 letras, ou aquelas 12 bases, foram
parar ao meio do RNA do vírus? Voltando atrás, e às hipóteses que já
tínhamos referido, uma das possibilidades é o vírus se ter recombinado
com um vírus diferente que possuísse esse código (e já vimos que existem
alguns), o que pode ter acontecido ainda no morcego de origem, na
espécie de transição ou até já num ser humano. Se houvesse outros sinais
de manipulação genética essa também seria outra das hipóteses, até
porque já houve quem tivesse tentado acrescentar ao SARS-CoV-1 a
capacidade de usar a furina (mas não na China, sim nos Estados Unidos:
fê-lo o virólogo Jack Nunberg, numa linha de investigação
polémica que terá abandonado). Ou seja, é possível, e por isso
continuará a haver matéria para teorias da conspiração, pelo menos
enquanto a China mantiver o seu secretismo e opacidade de processos.
5. Mas, afinal de contas, temos mesmo de ter medo?
Uma das coisas que tem baralhado os especialistas é que os números da
doença – a Covid-19 – variam imenso de país para país. E mesmo de
região para região. E há números para todos os gostos, mesmo sem
necessidade de os torturar.
A taxa de mortalidade varia muito porque variam muito os critérios
para realizar testes – e naturalmente os países onde se realizam mais
testes detectam mais casos assintomáticos – e também porque variam os
critérios para contar os óbitos – desde contabilizar apenas os que
ocorreram em hospitais até contabilizar apenas aqueles em que a Covid-19
foi comprovadamente a principal causa da morte, e não outra doença
pré-existente.
Mesmo assim, com tantas diferenças de critérios, dir-se-ia que está
estabelecido que esta é uma doença sobretudo perigosa para os mais
velhos, e para os mais velhos dos mais velhos, e que poupa quase por
completo os mais novos, sobretudo nas primeiras idades.
Mas há sobretudo um elemento que nos falta: saber se houve ou não
muito mais pessoas que já estiveram em contacto com o vírus e que, por
isso, já ganharam alguma forma de imunidade. É por isso que se fala dos
testes serológicos e de alguns estudos que parecem indicar que, afinal,
haverá já uma imunidade de grupo muito maior do que se pensa. Desde o
estudo no condado de Santa Clara, na Califórnia, ao realizado no distrito de Heinsberg,
na Alemanha, onde se celebrou um carnaval já em pleno surto da doença,
todos parecem mostrar que o número de pessoas que esteve em contacto com
o vírus é muito superior às que adoeceram mesmo. Ou seja, que há uma
maioria de casos assintomáticos. Continuando o raciocínio, que todos os
cálculos de mortalidade têm de ser revistos para concluir que, afinal, a
doença não é tão perigosa como isso – que até nem terá uma taxa de
mortalidade muito maior do que uma gripe.
Olhar para os gráficos do excesso de mortalidade em todas as regiões
mais atingidas pelo vírus, mesmo naquelas onde os sistemas de saúde não
colapsaram, mostra a fragilidade do raciocínio: está mesmo a morrer mais
gente, e mesmo que uma parte dos que estão a morrer seja por medo do
coronavírus (e por isso não vão aos hospitais quando deviam ir), a
maioria é mesmo de Covid-19.
Para além de que há outro problema: a fiabilidade dos testes aos anticorpos. Por enquanto ela não é muito grande.
Se parece certo que o vírus já se espalhou muito mais do que aquilo que
nos mostram os dados hospitalares e os casos registados nos testes, a
verdade é que a maioria dos testes serológicos existentes continua a ser
pouco fiável. Mesmo nos Estados Unidos, onde o rigor da agência
nacional – a Food and Drug Administration – é muito grande, os testes
disponíveis têm uma fiabilidade que varia entre os 82% e os 100%. Estes
valores podem parecer elevados, mas uma fiabilidade de apenas 82%, ou
mesmo de 90%, quando transposta para o estudo de uma população, pode
gerar erros de falsos negativos ou falsos positivos estatisticamente tão
grandes que anulam o valor das conclusões.
Basta pensar que no muito citado estudo realizado no condado de Santa
Clara, na Califórnia, que indicou que 2,8% da população teria já
anticorpos para o SARS-CoV-2, o teste utilizado pelos cientistas foi um
dos mais sofisticados, reivindicando uma especificidade de 99,5%.
Contudo se essa especificidade tiver sido de apenas 98,5% – o que está
dentro da margem de erro – no limite todos os resultados positivos
encontrados podiam ser “falsos positivos”. É o que acontece quando
trabalhamos com percentagens muito baixas, logo amostras muito pequenas:
a margem de erro começa a ser muito alta.
Tudo isto contribuiu para que seja ainda muito difícil conhecer não
só a real perigosidade da doença como perceber se realmente vale a pena
correr o risco de ir deixando a população ganhar imunidade, mesmo que à
custa de mais mortes no início da luta contra a Covid-19, como fez a
Suécia. Ou se se justifica toda a dor económica que estamos a ter para,
no fim, acabarmos todos, pelo menos na Europa, mais ou menos com o mesmo número de mortos por milhão de habitantes.
Os debates entre os epidemiologistas têm sido de resto dos mais
acesos, até porque todos olham para um alvo em movimento e para curvas
que não são iguais quando as comparamos país a país. As razões para as
diferenças ainda suscitarão muito debate e provavelmente por muito
tempo, até porque ainda não será amanhã que chegará a vacina.
6. Outro mistério com 100 anos
Comparado com um vírus, uma bactéria é um ser muito mais complexo – o
primeiro é apenas um tira de código genético num embrulho de proteínas,
a segunda é um microorganismo unicelular com vida própria. E a
Mycobacterium bovis é uma bactéria que os médicos e os cientistas
conhecem há mais de um século e que há quase um século usam para
prevenir a tuberculose, que é provocada por uma parente próxima, a
Mycobacterium tuberculosis. E é com efeito um micro-organismo derivado
da Mycobacterium bovis, uma bactéria comum no gado bovino, que é a base
da vacina que conhecemos por BCG, a abreviatura para Bacillus Calmette-Guérin.
Agora porque é que, numa altura destas, a Bill and Melinda Gates Foundation decidiram doar 10 milhões de dólares
para realizar testes com esta velha vacina, tão velha e tão barata que a
maior parte dos portugueses a receberam e até fazia parte dos planos de
vacinação do Estado Novo? Primeiro, porque parece existir alguma correlação estatística
entre os países onde a Covid-19 está a causar menos danos e aqueles
onde a BCG fazia parte dos planos obrigatórios de vacinação (como
Portugal até muito recentemente), uma hipótese que começou por ser
sugerida por uma professora da Escola de Saúde Pública de Sófia, na
Bulgária. Depois, e mais importante do que isso, porque existem estudos,
nomeadamente realizados na Guiné-Bissau,
que apontam para que as crianças vacinadas com BCG têm menos infecções
respiratórias (e não apenas menos tuberculoses) do que aquelas que não
recebem a vacina.
Como é que isto pode suceder? Então a imunidade não decorre de
existirem no corpo anticorpos específicos para as doenças? A função das
vacinas não é precisamente induzir a geração desses anticorpos?
Sim, é assim que funciona a maior parte das vacinas. Há no nosso
organismo a capacidade de ir criando uma memória imunitária através das
células B – que são uma variedade de linfócitos, os glóbulos brancos do
nosso sangue –, as que fabricam os anticorpos capazes de bloquear uma
infecção, e que guardam memória dos patógenes com quem estiveram em
contacto por muitos e muitos anos. Isso permite-lhes reagir rapidamente
quando a infecção surge de novo, controlando-a.
Do ponto de vista evolutivo – refiro-mo à evolução das espécies – a
memória imunitária é mais recente e mais sofisticada, mas os seres vivos
possuem outros sistemas imunitários, mais primitivos, mas que são
inatos. A imunidade inata não precisa de vacinas, já nasce connosco.
Até há pouco tempo pensava-se que células como os monócitos, outro
tipo de glóbulos brancos com um papel importante no sistema imunitário,
actuavam sempre da mesma forma ao longo da vida. Mais recentemente
surgiu a hipótese de essas células também poderem reagir ao conhecimento
prévio de certos micro-organismos. Não se trata de memorizarem o tipo
de inimigos que um dia podem ter de vir a combater – como fazem as
células B –, mas de poderem ser como que treinadas para reagirem mais
eficazmente quando na presença de algumas ameaças. É isso que se pensa
que a vacina da BCG consegue fazer: aumentar a eficácia da imunidade
inata. E foi para verificar essa hipótese que a Bill and Melinda Gates
Foundation decidiram canalizar uma parte dos seus fundos.
Mesmo assim, mais uma vez, estamos a andar à volta do problema: mesmo
que se comprovasse que a vacinação com a BCG aumentava as capacidades
do nosso sistema imunitário, apenas estaríamos a aumentar as nossas
defesas naturais. Continuaria a fazer falta uma verdadeira vacina
específica para a Covid-19 e essa talvez ainda demore mais tempo do que
gostaríamos – mas muito menos tempo do que alguma vez aconteceu na
história da Humanidade.
Pelo menos um ano, talvez 18 meses. Desde que se iniciou esta crise
que nos dizem que é esse o tempo que teremos de esperar por uma vacina.
“Uma eternidade”, pensarão todos os que estão confinados e ainda mais os
que sentem nas suas vidas sem perspectivas que “isto” não pode durar
tanto tempo. Mesmo sendo “isto” um semi-regresso à actividade, cheio de
medos e cuidados.
Contudo quem pode garantir que teremos uma vacina tão depressa? O
tempo médio de desenvolvimento de uma nova vacina é de 10,7 anos e de
todas as que se candidatam só 6% são aprovadas para uso público. Não
estamos a ser optimistas?
E depois há outra dúvida que se pode colocar: se há quase 40 anos
andamos à procura de uma vacina para o HIV e ainda não encontrámos, o
que é que nos garante que podemos encontrar uma para o SARS-CoV-2?
Esta segunda dúvida é mais fácil de esclarecer do que a primeira. Na
verdade a forma como o vírus da sida actua é muito diferente: o HIV
consegue embeber o seu genoma no nosso e reproduzir-se dessa forma,
assim iludindo o sistema imunitário. Já o nosso coronavírus limita-se a
fazer cópias do seu próprio RNA, pelo que a doença pode curar-se, o
vírus pode ser eliminado do nosso corpo e também sabemos que nos doentes
infectados surgem não só anticorpos específicos como respostas específicas das células-T, as mais especializadas na destruição de intrusos.
Já para perceber em que ponto estamos na corrida para ter uma vacina
não basta saber que há muitas companhias e laboratórios que mobilizaram
exércitos de cientistas e também saber que nunca tantos recursos
estiveram à disposição de um só objectivo neste campo da ciência. É
necessário conhecer o tipo de vacinas que estão a ser desenvolvidas e
por que etapas tem de passar o seu desenvolvimento.
Há basicamente vários tipos diferentes de vacinas a serem tentadas:
as mais tradicionais, que procurarão criar mecanismos para matar o
vírus a partir do próprio vírus (ou de uma parte do vírus); as vacinas
com base nas proteínas do vírus; e as vacinas com base nos seus genes.
Das oito vacinas que se encontravam em fase mais adiantada de
desenvolvimento e já foram inoculadas em voluntários (haverá mais 94 a
ser estudadas…), três são do primeiro tipo, o que significa que utilizam
como base o vírus morto ou inactivado ou enfraquecido. Duas outras usam
um vírus diferente, inofensivo, mas capaz de segregar uma das proteínas
do SARS-CoV-2, assim induzindo a reacção imunitária. As três últimas
pegam num bocado do RNA do vírus, sendo que o pedaço que estão a
utilizar é aquele pedaço de 3.381 aminoácidos que codifica a proteína
que forma a perigosa espícula que é usada para “abrir” as nossas
células.
De todas estas aproximações, a possibilidade de conseguir uma vacina baseada unicamente em material genético é a que entusiasma mais alguns cientistas,
pois seria a mais fácil de produzir rapidamente – e provavelmente
também a mais barata. Tem sobretudo a vantagem de não usar material
vivo. Qual o problema? Ainda não existe no mundo nenhuma vacina deste
tipo aprovada para uso humano. É um terreno novo, se bem que já existam
vacinas destas para animais e que já se estivesse em fase de testes para
uma vacina de base genética para o vírus Zica.
O tempo médio de desenvolvimento de uma nova vacina é de 10,7 anos e
de todas as que se candidatam só 6% são aprovadas para uso público. Não
estamos a ser optimistas quando falamos de 12 a 18 meses para ter uma
vacina para a Covid-19?
Nesta corrida este grupo que vai à frente chegou, na melhor das
hipóteses, à Fase 2 do processo de testes que precedem a aprovação de
uma vacina. Todas as restantes ainda nem sequer entraram em testes, o
que significa que não saíram dos laboratórios e dos testes em animais. A
saída dos laboratórios só acontece na Fase 1, que é quando os
investigadores testam pequenas doses em pequenos grupos de voluntários. É
nessa fase que se verifica se a vacina cumpre o seu objectivo – isto é,
se gera a criação de anticorpos – e, ao mesmo tempo, também se vê se
não há problemas médicos associados.
Algumas das vacinas que vão neste pelotão da frente já passaram à
Fase 2, que é quando se passa para a inoculação de centenas de
voluntários e os testes clínicos começam a ter alguma solidez. Nenhuma
passou ainda desta etapa.
Falta portanto a todas a Fase 3, em que se tem de dar o salto das
centenas para os milhares de testes clínicos e verificar se a vacina não
tem efeitos secundários, nomeadamente em pessoas que possuam as mais
diversas patologias. Tipicamente só esta Fase 3 costuma demorar um ano
(pode demorar quatro anos…) e só depois de completada uma nova vacina
fica pronta para ser aprovada pelas autoridades do medicamento e entrar
em produção industrial.
Com tantas vacinas a serem desenvolvidas ao mesmo tempo, devemos ter
esperança que pelo menos algumas delas consigam superar o teste da
efectividade e da não perigosidade para podermos contar com ela o mais
depressa possível. Mas esse “o mais depressa possível” é sempre
relativo, pois uma vacina mal desenvolvida pode causar ainda mais danos
do que a própria doença, tendo havido proto-vacinas que nunca chegaram
ao mercado porque agravavam ainda mais os sintomas da doença. E não nos esqueçamos que a maioria das infecções Covid-19 são relativamente benignas.
Sendo que depois ainda sobra outro mistério: ninguém sabe por quanto
tempo os anticorpos desenvolvidos contra o SARS-CoV-2 são realmente
efectivos. Sabemos que na Coreia do Sul 160 pessoas que já tinham estado
infectadas e tinham sido dadas como curadas apareceram de novo com o vírus.
Isso não significa que tenham ficado doentes, mas mostra que não
sabemos quanto tempo as protecções naturais duram no nosso corpo. Para
outros patógenes, como o sarampo, quando se ganha imunidade ela dura
toda a vida. Mas a gripe sazonal é diferente: os vírus sofrem tantas
mutações que todos os anos temos de tomar vacinas novas. Este
coronavírus parece ser mais estável que os vírus da gripe, sofrer menos mutações, e essa será uma das poucas boas notícias neste processo.
Quando no dia 30 de Dezembro do ano passado, Li Wenliang, o médico
oftalmologista de Wuhan, enviou uma mensagem a um grupo de amigos a
avisá-los que, no hospital onde trabalhava, tinham aparecido sete casos
de pessoas com sintomas de pneumonia, ele só falava de semelhanças com a
Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS). Como todos sabemos Li
Wenliang foi repreendido pelas autoridades chinesas por nessa mensagem
alertar os seus amigos para terem cuidado e ele mesmo morreria vítima
dessa doença que, ao contrário do ele próprio pensou inicialmente, está
longe de se limitar a ser uma “síndrome respiratória”.
Agora que médicos de todo o mundo começam a conhecer melhor os
milhares de casos que muitas vezes fizeram colapsar mesmo sólidas
infraestruturas de saúde – como as do norte de Itália, as de Madrid ou
as de Nova Iorque – percebe-se também que o SARS-CoV-2 não ataca apenas
os pulmões. A falta de olfato e de paladar, entre os primeiros sintomas a
serem identificados, é apenas um dos sinais de que pode atacar o
sistema nervoso. Se havia notícia de que podia deixar marcas no coração,
é difícil explicar como aparece ligado à formação de coágulos de sangue
que, depois, entopem os vasos sanguíneos e provocam tromboses. Nalguns
doentes internados os rins também deixam de funcionar e é quase
impossível mantê-los vivos se necessitarem simultaneamente de
hemodiálise e de estarem ligados a um ventilador. O fígado é outro órgão
sensível e, para além de se conhecer desde as primeiras semanas que a
doença era sobretudo mais perigosa para os mais velhos, hoje também se
sabe que ela é também mais perigosa nos homens e sobretudo entre quem
tem excesso de peso. Mesmo a ideia de que poupava as crianças sofreu um
abalo quando surgiram casos em que a Covid-19 surgiu associada a uma rara doença inflamatória do coração, a doença de Kawasaki.
De certa forma é natural que os médicos estejam surpreendidos, mesmo
desorientados, com a forma com o coronavírus ataca o corpo humano. Como
já referi, os coronavírus que já conhecíamos ou eram quase inócuos – os
das constipações – ou tinham sido controlados tão depressa – o SARS e o
MERS – que nunca se percebeu que fizessem estragos além dos pulmões.
Isto significa que médicos e virologistas estão a lidar com um patógene
de um tipo muito pouco estudado – quase ninguém se interessava por
coronavírus – e que ainda há seis meses nunca infectara o ser humano.
Portanto, tudo ou quase tudo é novo.
Novo para os médicos e cientistas e novo para nós, seres humanos, que
por nunca termos estado em contacto com este vírus não desenvolvemos
nenhumas defesas. Estamos como os povos do Novo Mundo quando os
espanhóis lá desembarcaram levando com eles os germes do Velho Mundo
(como a varíola e a febre tifóide) que chegaram para matar 80% da
população que vivia no que é hoje o México – ou seja, estamos
desprotegidos. O SARS-CoV-2 não é felizmente tão letal como eram
originalmente alguns desses micro-organismos e sobretudo nós estamos
clinicamente melhor preparados para nos defendermos.
Toda a humanidade está para este coronavírus novo como os povos do
Novo Mundo quando os espanhóis lá desembarcaram e levando com eles os
germes do Velho Mundo (como a varíola e a febre tifóide) que chegaram
para matar 80% da população que vivia no que é hoje o México – ou seja,
está desprotegida.
Aquilo que se tem vindo a aprender sobre a forma como o vírus
funciona permite perceber que as primeiras explicações, mais centradas
na sua acção sobre os pulmões e na forma como provocava uma resposta
imunitária tão exagerada do nosso organismo que ele começava a
auto-destruir-se (um fenómeno conhecido por “tempestade de citocinas”), não permitem compreender tudo.
Mas algumas correlações têm vindo a ser estabelecidas. A eficácia com
que a espícula deste vírus se agarra às proteínas que lhe permitem
abrir as portas das células, as ACE2, faz com que todos os pontos do
organismo onde estas proteínas estejam mais presentes sejam vulneráveis.
E se os pulmões são os que estão mais próximos da porta de entrada do
vírus, que se introduz no nosso organismo sobretudo pelas vias
respiratórias superiores, aquela proteína também é abundante no fígado e
nos intestinos, por exemplo. Como é uma reguladora da pressão arterial,
encontra-se em maior número nos hipertensos. Também parece estar mais
presente nos homens do que nas mulheres, como já referimos,
o que ajuda a perceber que num país como Espanha, onde 57% das pessoas
infectadas tinham sido mulheres, 57% dos óbitos foram de homens. Os
obesos correrão mais riscos porque as células gordas contribuem para
acentuar as reacções inflamatórias, e uma das formas que o organismo tem
de reagir ao coronavírus é precisamente através das tais reacções
inflamatórias que podem ser excessivas.
7. À procura de uma “bala de prata”
Mesmo assim continua a ser muito difícil perceber porque é que
algumas pessoas ficam extremamente doentes e outras nem sintomas
apresentam ou as razões de uma diferença tão marcante na forma como o
vírus poupa os mais novos e é tão perigoso para os mais velhos.
Entretanto, nas enfermarias e nas unidades de cuidados intensivos,
vão-se testando todo o tipo de tratamentos na tentativa de encontrar um
medicamento com alguma eficácia. Tem sido um processo cheio de
controvérsias porque todos procuram a “bala de prata” que possa dar
esperança no meio do desespero – e quando falamos de todos, falamos
tanto de cientistas como de políticos.
Um antiviral derivado de um velho medicamento contra a malária, a
hidroxicloroquina, ganhou protagonismo depois de ser promovido por um
médico francês: o Presidente Macron ordenou encomendas gigantescas,
Trump viu nele a solução de todos os problemas e no Brasil foi uma das
razões da demissão do ministro da Saúde, que não aceitou as directivas
“clínicas” do Presidente Bolsonaro. Em Portugal faz parte do arsenal
terapêutico mas é administrado com cuidado e não há notícia de reações adversas, já que é conhecida a toxicidade deste medicamento.
Outro fármaco renascido das cinzas foi o remdesivir, pouco eficaz
contra outras doenças virais, mas que nos primeiros ensaios com doentes
de Covid-19 permitiu recuperações mais rápidas (uma redução de 30% do tempo), mesmo sendo cedo para dizer que é o medicamento que vai fazer a diferença.
O mais provável é que, tal como sucede com outras doenças provocadas por vírus, como a sida, a Covid-19 tenha de ser combatida com um cocktail de drogas (nomeadamente o lopinavir/ritonavir, um medicamento para o HIV, o favipiravir, uma droga usada em certas gripes, ou o tocilizumab,
usado em doentes com artrite reumatoide e que tem efeito no controle da
“tempestade inflamatória”), até porque desenvolver um medicamento
específico pode ser ainda mais demorado do que desenvolver uma vacina.
Com efeito, a quase desconcertante simplicidade do mecanismo dos
vírus – de todos os vírus – faz com que sempre tenha sido difícil
desenvolver drogas antivirais. É fácil perceber porquê: os vírus não
chegam bem a ser seres vivos e utilizam para se reproduzir material que
existe nas nossas células. Para impedir que se reproduzam é difícil não
ter de actuar sobre esses materiais, que são por regra proteínas que nos
fazem falta para outras funções. Daí que os vírus ofereçam muito poucas
fraquezas.
Um medicamento como o remdesivir, por exemplo, tenta jogar o jogo do
próprio vírus, fornecendo-lhe o “alimento” de que ele necessita para se
multiplicar, mas um alimento errado que, ao bloquear a enzima que o
vírus necessita para replicar o seu RNA, o anula – isto é, fá-lo ficar
sem capacidade para continuar a multiplicar-se. É um processo
sofisticado e que até agora não tinha provado muito bem em doenças como o
dengue, a sida ou o ébola, mas que não deixa de ser engenhoso.
Mas, repito, dificilmente a solução estará num único medicamento.
8. Há 100 anos a gripe chegou e partiu
O coronel Victor C. Vaughan, que tinha sido presidente da American
Medical Association, foi um dos quatro médicos que em Setembro de 1918
foi enviado pelo governo de Washington a um dos campos militares que
estava a ser devastado pela “gripe espanhola”. Na altura ele escreveu
que nunca mais se esqueceria do que aí vira, o “dia mais triste da sua vida”
– mas a verdade é que parece ter esquecido. Anos depois, quando
escreveu as suas memórias, um tomo de quase 500 páginas, não dedicou
senão dois parágrafos à mais devastadora pandemia do século XX,
seguramente uma das mais devastadoras da história da Humanidade.
A “gripe espanhola”, que teve quatro vagas – a primeira,
relativamente benigna, na Primavera de 1918; a segunda, a mais
devastadora, no Outono de 1918; a terceira em 1919; e a última no
Inverno de 1920 —, terá atingido um quarto da humanidade mas desapareceu
quase tão misteriosamente como tinha aparecido. Por isso esteve muitos
anos esquecida e foi porventura menos estudada do que devia.
Um dos mistérios dessa gripe tem a ver com ela ter vitimado sobretudo
jovens, ao contrário do que está a suceder com a actual pandemia.
Jovens na força da vida, saudáveis, sem qualquer outra doença conhecida.
Porquê?
Recentemente surgiu uma hipótese explicativa
que pode também fazer alguma luz sobre a Covid-19. Um demógrafo da
Universidade de Montreal, Alain Gagnon, fez o levantamento da idade dos
que morreram com a “espanhola” e notou que havia um número anormalmente
alto de pessoas com 28 anos. Ao procurar motivos para essa anomalia
estatística reparou que essas pessoas tinham nascido em 1890, ano em que
o mundo conhecera outra pandemia, que ficou conhecida como “gripe russa”.
Formulou então a hipótese de que, nos seus primeiros meses de vida,
período muito importante no desenvolvimento do sistema imunológico, essa
geração pode ter estado em contacto com o vírus e desenvolvido mais
defesas do que as gerações mais velhas.
Os números dos epidemiologistas ajudam a interpretar a realidade, mas
a realidade deste vírus continua a ser elusiva, a guardar os seus
segredos e mistérios. O que, bem vistas as coisas, não nos devia
surpreender: é um recém-chegado ao nosso mundo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI



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