Não estando na origem desta crise, o capitalismo estará na gênese da sua
cura através da ciência, partilha de informação e cooperação entre
Estados, que só o capitalismo consegue eficazmente potenciar. Artigo de
José Miguel Campos Costa para o Observador:
Tido como desaparecido na Batalha de Alcácer-Quibir em 1578, D.
Sebastião deixou um legado profético aos portugueses, uma herança
destinada a perdurar mais do que a vida do jovem rei, a ir, também, além
dela em termos de simbolismo e significância no nosso imaginário
coletivo.
Como impacto de efeito imediato, emergiu a miragem de um regresso
nobre e salvador de D. Sebastião, irrompendo por uma ainda hoje famosa
manhã de opaco nevoeiro, qual panaceia não só para os problemas advindos
do seu desaparecimento, mas também para os defeitos do Reino, que na
segunda metade do século XVI já não se revestia da opulência e
grandiosidade das primeiras décadas desse século. O Reino perdera,
então, o paladino da sua esperança, o jovem líder de uma nova geração,
trilhando caminho para o que viria a ser uma nova panóplia de dívidas e o
domínio castelhano a partir de 1580, com a dinastia filipina, até 1640.
Esta imediata reação, expectante do regresso do Rei-Salvador, foi
sendo continua e misticamente nutrida até se transformar num messianismo
mirabolante e miraculoso, catapultado pelo Padre António Vieira e
genialmente reconstruído, ou recapturado pelo sempre genial Fernando
Pessoa na sua Mensagem. Ambos tenderam para uma interpretação
sebastiânica da História de Portugal, diferente em forma e conteúdo,
ainda que sob a mesma cúpula: a preconização do Quinto Império,
lusitanamente capitaneado. Fernando Pessoa, entre muitos outros, deu voz
a este Quinto Império teorizado pela Renascença Portuguesa, almejando
um patriotismo esquecido, perdido num campo de batalha numa praia
africana, um reinado além-material: um império espiritual e
civilizacional. “Grécia, Roma, Cristandade,/ Europa – os quatro se vão/
Para onde vai toda idade. Quem vem viver a verdade/ Que morreu D.
Sebastião?”, escreve Fernando Pessoa na Mensagem, no papel de estafeta
que nos vem apresentar um regenerado culto messiânico.
À semelhança do que aconteceu na passada crise financeira, vimos
reunirem-se, como consequência da pandemia que temos vivido, as
condições fundacionais – insatisfação com a situação política atual e um
desejo de mudança, de salvação face ao atual panorama sanitário – para
que o camaleónico sebastianismo português se metamorfoseie uma vez mais.
Metamorfose essa copiosamente defendida e proclamada pelas inúmeras
vozes que pressagiam o “fim do capitalismo” ou o “fim do
neoliberalismo”, derivado do surgimento e expansão da COVID-19.
O sebastianismo é, assim, incorporado no contemporâneo findoísmo. Os
sebásticos findoístas, que fitam “com olhar sphyngico e fatal,/ O
Occidente, futuro do passado (…)”, parecem ter como Quinto Império o
ressurgimento de um passado fausto, um passado heroico onde o
capitalismo não tivera espaço para se enraizar e crescer, e se desdobrar
nas suas consequências nefastas, como, por exemplo, o notório aumento
da qualidade de vida do ser humano, em termos gerais, e a promoção da
sua liberdade política, social, económica, de circulação, e tantas
outras. O sistema capitalista vigente tem bastantes falhas, conhecidas e
apontadas, mas certamente não terá sido a causa desta crise sanitária,
ainda que tenha acelerado a sua inevitável expansão através do seu
caráter globalista. Inevitável, entenda-se, para quem não tem em
especial apreço um regresso a um passado mais limitado às fronteiras do
país em que nascemos, mais limitado às restrições dos berços. Não
estando na origem desta crise, certamente o capitalismo estará na génese
da sua cura, através da ciência, partilha de informação e cooperação
entre Estados. Vetores que, dentro das atuais hipóteses, só o
capitalismo consegue eficazmente potenciar. Verificamos, portanto, o
findoísmo seguir a nuance patente em todos os mitos: a derrota do
racional perante o emocional, a adoção da crença em detrimento da razão.
Os findoístas repescam o Mostrengo, o tal “(…) mostrengo que está no
fim do mar/ Veio das trevas procurar/ A madrugada do novo dia/ Do novo
dia sem acabar.”. Com o fim do capitalismo, e que mar o é o
capitalismo!, excitam-se com a aurora desse novo dia eterno, anacrónico,
iniciado com as badaladas que indelevelmente comuniquem a morte do
neoliberalismo, a morte da possibilidade de uma liberdade plena, a morte
do píncaro da independência dos indivíduos face a um poder fortemente
centralizado. As badaladas têm vindo a ser anunciadas em vários momentos
da história moderna (e o seu apelo surgirá provavelmente em muitos
outros no futuro), mas não foram, felizmente, ainda cumpridas. Outras
distintas vozes têm tido, recentemente, um palco maior em Portugal:
vozes conscientes da imperfeição do sistema atual capitalista e das
desigualdades que inflige ainda a demasiada gente, em demasiados
lugares. Vozes que, não obstante, urgem a uma maior liberdade,
acreditando que “Deus ao mar o perigo e abysmo deu,/ Mas nelle é que
espelhou o céu.”. Mar esse que só poderá ser cruzado tendo como nau a
liberdade. A liberdade, a “voz da terra ansiando pelo mar.”.
Como é tradicional nos mitos, o sebastianismo, defronte de momentos
históricos pautados por uma crise substantiva, adapta-se a essa
realidade do presente e adquire a forma de uma esperança mapeada num
futuro menos sofrível, mais justo e abundante. Os findoístas justamente
construíram a sua visão. Eu desejo, na mesma onda, que “(…) outra vez
conquistemos a Distância (…)”, mas que vençamos esta Distância, o
confinamento, a pandemia e o momentâneo poder acrescido do Estado para a
combater sem a isso nos habituarmos, sem disso ficarmos dependentes.
“Que jaz no abysmo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.”
Desejar poder querer mais liberalismo. Desejar não o fim do capitalismo, mas o seu melhoramento.
BLOG ORLANDO TAMBSI
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