O que mais se tem visto é a falta de um diagnóstico padrão e um
protocolo crível e reconhecido internacionalmente, inclusive como base
para a formulação de políticas e tomada de decisões. Editorial da Gazeta do Povo:
A pandemia do coronavírus, o fato de ela ter atingido o mundo inteiro
ao mesmo tempo e o isolamento social a que a população foi submetida,
além das consequências econômicas e psicológicas, levaram a discussões,
interpretações conflitantes, discordâncias por vezes histéricas e
opiniões para todos os gostos. A pandemia em si tem, por óbvio, um
essencial componente médico e de saúde pública que, pelos aspectos
peculiares da doença, em especial sua enorme capacidade de transmissão
entre humanos e o desconhecimento anterior a respeito, prestou-se às
mais divergentes opiniões entre profissionais da medicina e
especialistas em epidemiologia.
Somente as divergências de ordem médico-científica já seriam gatilhos
para a disseminação de informações conflitantes, opiniões assimétricas e
difusão de medo. No entanto, o que mais se tem visto é a falta de um
diagnóstico padrão e um protocolo crível e reconhecido
internacionalmente, inclusive como base para a formulação de políticas e
tomada de decisões. Assim, é compreensível que a balbúrdia e o
pandemônio tenham se espalhado pelo mundo, e medidas não padronizadas
tenham sido executadas nos países afetados. A própria novidade trazida
pelo coronavírus, que leva a uma corrida desesperada para entender como
ele age no organismo e como se espalha entre a população, já basta para
criar esse escuro no qual transitam especialistas médicos e
sanitaristas. Além disso, dois outros elementos contribuem para a
confusão em termos de crenças e soluções adequadas: a realidade atual da
comunidade científica e a lógica da política.
Merece registro e surpresa a enorme divergência de opiniões
especializadas sobre o isolamento social, de modo que grande parte da
população mundial se viu desprovida de análises e informações sólidas,
resultando na ausência de padrão, ordem e método no comportamento das
autoridades e da população, no Brasil e no mundo. Cidades, estados e
países experimentam modelos à base de tentativa e erro, replicando as
iniciativas que funcionam e rejeitando as que terminam em tragédia.
Nesse contexto, entra em cena de forma destacada a atuação da comunidade
científica. É inegável o fantástico progresso tornado possível pela
comunidade científica, bem como a gigantesca evolução do conhecimento,
as maravilhas feitas pelas teorias e os tratamentos para o sofrimento
humano resultantes da pesquisa e da experiência no âmbito das ciências.
O domínio das leis da natureza, as tecnologias de transformação dos
recursos naturais, as máquinas, os satélites, os robôs inteligentes, a
revolução na biotecnologia, a inteligência artificial e os milhões de
bens e serviços para alimentar, curar, evitar doenças e tornar a vida
mais longa e mais confortável elevaram a ciência e a comunidade
científica a um panteão de glória tão alto que a ciência é um grande
deus e os cientistas, seus grandes sacerdotes. A credibilidade da
ciência é imensa – e com toda a razão, pois o mundo deve muito ao
conhecimento.
Mas é da própria natureza da ciência não deter todas as verdades.
Pelo contrário: ela evolui justamente porque suas teorias e dogmas são
contestados o tempo todo. A essência do método científico é o confronto
de hipóteses e a busca por falhas nas leis e teorias. Sem o confronto de
hipóteses não há ciência, regra que é normal entre os pesquisadores e
faz parte do processo de investigação científica, como bem propôs o
filósofo Karl Popper ao dizer que, em uma pesquisa, em vez da
verificação de experiências empíricas que confirmem uma teoria, o
pesquisador deve buscar fatos particulares que, uma vez verificados,
refutem a hipótese. A preocupação deve ser não provar que uma teoria é
verdadeira, mas que ela é falsa. Se a teoria resiste às tentativas de
refutá-la, então ela pode ser considerada comprovada.
Infelizmente, a comunidade científica não está livre dos vícios e
imperfeições humanas, nem está imune às impurezas das instituições.
Plágios, falsidades, mentiras, brigas e outras interesses também
existem, como em qualquer instituição humana. As imperfeições, no
entanto, não devem desqualificar as conquistas e o progresso da ciência,
cujos benefícios estão aí, são reais e provados. Em resumo, como toda
instituição humana, a comunidade científica deve ser aplaudida e
respeitada, mas não amada incondicionalmente nem julgada infalível.
Em segundo lugar, no meio da crise de saúde pública e da devastação
que a pandemia está impondo sobre a economia e o padrão de bem-estar
social, surge a política. A ciência política, que como ciência tem suas
leis e teorias, na prática mostra que não existe evento social ou
fenômeno coletivo desprovido de conotações políticas e imunes à ação da
política e do jogo de poder. Desde os expurgos do império soviético sob
Stálin, a fome na Ucrânia de 1932-1933, a devastadora grande fome
chinesa de 1958-1961 sob Mao Tsé-tung, o desastre nuclear de Chernobyl
em 1986, a gripe espanhola de 1918-1920, até os dados sobre as mortes
durante a ditadura de Pinochet no Chile, as informações, as versões, os
dados e os fatos podem ser manipulados e submetidos a interesses
políticos e ao sabor dos donos do poder.
Agora mesmo, por exemplo, há considerável descrença no mundo
ocidental sobre a verdadeira realidade do coronavírus na China e os
números de seus infectados e mortos. Em todas as ditaduras, de esquerda
ou direita, a informação é aquela que o poder central permite com os
dados que o governo quer. O debate é vetado, a investigação não é livre
e, mesmo quando a informação é correta, o público não tem como saber se é
verdade ou não. Não existe pandemia ou catástrofe natural que escape às
interferências do poder político e seus interesses, principalmente em
ditaduras, onde não há imprensa livre nem liberdade de expressão. Mesmo
nos países livres, os órgãos de imprensa têm suas linhas de atuação e
opiniões divergentes. Mas a vantagem, neste caso, é que a competição dos
órgãos de imprensa e suas tendências são abertas e conhecidas, o que dá
ao público certa margem de escolha.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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