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| Tabata Amaral: progressismo autoritário. |
Os deputados socialistas Felipe Rigoni e Tabata Amaral apresentaram
projeto com o nome-fantasia de Lei Brasileira de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência na Internet, mas que poderia se chamar,
mais acertadamente, de Lei de Garantia do Monopólio da Verdade. Paulo
Polzonoff Jr., via Gazeta do Povo:
Todo estudante do ensino médio sabe disso: foi Max Weber quem, no
começo do século XX, definiu o Estado como o ente que detém o monopólio
do uso legítimo da força. Apesar de jovens, os deputados Felipe Rigoni
(PSB) e Tabata Amaral (PDT), ambos em partidos socialistas, devem ter
aprendido isso. Devem ter aprendido ainda que, desde que Weber cunhou a
expressão “monopólio da violência”, o Estado ganhou um legislativo cada
vez mais atuante, o que na prática se traduz em novas leis que servem
como garantias morais (questionáveis) para o uso do poder de coerção.
Foi, portanto, querendo incrementar a elegante definição de Weber que
os deputados apresentaram, ainda em abril, o Projeto de Lei 1429 de
2020. O projeto é daqueles que já vêm com nome-fantasia: Lei Brasileira
de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Mas que
também poderia se chamar Lei de Garantia do Monopólio da Verdade. Ou da
Mentira. Ele usa a linguagem propositadamente vaga, típica das
legislações autoritárias, e até a pandemia de coronavírus como
justificativas para regulamentar o uso das redes sociais.
Não parece ser um projeto com um destino muito auspicioso. Afinal,
apesar do tom sentimental do texto legislativo, quem o lê com um mínimo
de atenção percebe que se trata de um projeto que, na prática, apenas
cria uma reserva de mercado para os jornalistas que atuam das agências
de verificação (há no texto uma parte toda dedicada a isso), além de
expressar toda a virtude democrática de seus autores.
Mas nem tudo é ruim no Projeto de Lei. Porque ao longo de dezesseis
páginas que exibem orgulhosas o carimbo do protocolo, Tabata Amaral e
Felipe Rigoni conseguem a proeza de expor toda uma visão de mundo
marcada pela linguagem sentimental e vazia, pela crença na eficiência do
Estado para mediar conflitos de ordem moral (a despeito das incontáveis
provas em contrário) e pela certeza de que o homem é puro e o
capitalismo o corrompe, mas ainda bem que existem os políticos para
corrigir isso.
A aleatoriedade burocrática
O texto começa com algumas diretrizes aleatórias e uma expressão de
deixar até o nacionalista idiomático Aldo Rebelo escandalizado. As
diretrizes tentam definir o que são os “provedores de aplicação” de
grande porte. Para tanto, os deputados estabeleceram como sarrafo a
receita anual bruta de mais de R$78 milhões. Por que não 80 ou 75 é um
mistério. Mas a burocracia tem disso: ela estabelece parâmetros
subjetivos disfarçados de números, na esperança de que isso confira à
decisão alguma credibilidade.
Logo em seguida, temos o primeiro exemplo do bom-mocismo que permeia
todo o texto do projeto de lei. “Os provedores de aplicação com receita
bruta inferior ao disposto no caput devem considerar as disposições
desta Lei como boas práticas a serem seguidas, buscando utilizar medidas
adequadas e proporcionais no combate à desinformação e na transparência
sobre conteúdos pagos”. Ou seja, se você for “peixe pequeno” ou
conseguir provar que sua receita bruta no ano foi de R$77.999.999,00, o
projeto não tem força de lei. Trata-se apenas de um conselho
bem-intencionado.
Essas diretrizes antecedem o momento em que os autores anunciam o
nome fantasia da lei proposta: Lei Brasileira de Liberdade,
Responsabilidade e Transparência Digital. Não há, em nenhum só trecho do
projeto, algo que garanta de fato a liberdade. Mas é importante manter a
palavra no nome fantasia. Afinal, não se pode esquecer que um projeto
de lei, mesmo que venha a ser derrubado logo nas primeiras etapas do
processo, tem caráter “educativo”.
“Pluralidade de informações” e outros termos vagos
Mas quais são os objetivos declarados, explícitos da Lei Brasileira
de Liberdade, Responsabilidade e Transparência Digital? Aqui os autores
utilizam habilmente a linguagem vaga, marcada por um subjetivismo quase
infantil, para novamente exaltar as virtudes do raciocínio autoritário
disfarçado de defesa da liberdade.
O primeiro objetivo da lei é “o fortalecimento do processo
democrático por meio do combate à desinformação e do fomento à
pluralidade de informações na Internet no Brasil”. E aí o leitor
experiente já percebe o uso de alguns truques semânticos. O que
significa, afinal, “fortalecimento do processo democrático”? E quem pode
dizer que não há “pluralidade de informações na Internet”? Há tanta
pluralidade que diariamente nos deparamos com informações verdadeiras e
falsas. Nada poderia ser mais plural do que isso.
O segundo objetivo é “a busca por maior transparência sobre conteúdos
pagos disponibilizados para o usuário”. Aqui o problema gira em torno
da palavra “transparência”. Não só porque ela é de difícil definição
fora das ciências óticas, mas também porque a ideia de uma “maior
transparência” sugere que a transparência existe, só que os legisladores
não estão satisfeitos com o tamanho dela. Como mensurar, contudo, a
transparência ideal?
Por fim, o bom-mocismo retorna ao terceiro objetivo da lei:
“desencorajar o uso de contas inautênticas para disseminar desinformação
nas aplicações de Internet”. “Desencorajar”, neste caso, pode ser tudo,
desde um eufemismo para “proibir” até um tapinha nas costas do cidadão e
uma voz oficial lhe dizendo “não crie uma conta falsa, não, não vale a
pena, cara”.
“Entre outros”
Nesta parte, o texto começa a ficar enfadonho até mesmo para quem
gosta de, às vezes, só às vezes, analisar o raciocínio da nossa
tecnocracia semiesclarecida. O “Artigo 4” do projeto de lei, por
exemplo, nada mais é do que um minidicionário de termos mais ou menos
tecnológicos, destinado a esclarecer um leitor do futuro. Um leitor do
futuro que, creio, terá dificuldades em entender o que significa
“provedor de aplicação na Internet”, por exemplo.
E aí o projeto de lei escancara seu caráter vago e meramente
publicitário, uma forma de exaltar a virtude dos proponentes. Sobre as
obrigações dos “provedores de aplicação”, por exemplo, diz o projeto que
eles “devem desenvolver procedimentos de acompanhamento para melhorar
as proteções do usuário contra comportamentos ilícitos”. Quais são esses
procedimentos: “A proteção contra o uso de imagens manipuladas para
imitar a realidade (‘deep fake’), entre outros”.
Com assim “entre outros”? Cabe absolutamente tudo em “entre outros”.
Até mesmo o nada. Se um “provedor de aplicação” colocar um funcionário
ganhando salário mínimo para ficar “acompanhando” o procedimento o dia
todo e se a empresa acredita que isso melhorará “a proteção do usuário”,
quem sou eu, quem é você e quem são os autores do projeto de lei para
dizer que a empresa não está fazendo o seu melhor?
Para os autores do projeto de lei, este “entre outros” inclui um
relatório periódico que permitiria a “inter relação (sic) entre bots,
contas e conteúdos desinformativos disseminados, de modo que seja
possível a identificação de rede produtoras e disseminadoras de
desinformação”. Mas não só isso. Diz o texto ainda que os “provedores de
aplicação de que trata esta Lei devem tomar medidas proativas para
proteger seus serviços contra a disseminação de desinformação através
(sic) de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e
pelo estímulo ao uso de boas práticas”. Ganha um obrigado quem explicar o
que são “medidas proativas” e “boas práticas”, quais são os tais
“padrões internacionais” e por que eu deveria escolher este padrão e não
outro.
Reserva de mercado
No final das contas, o Projeto de Lei 1429 nada mais é do que uma
tentativa de criar uma reserva de mercado para os jornalistas empregados
nas agências de checagem – cujos serviços, aliás, já são usados pelas
redes sociais. E não sem prejuízo da liberdade do usuário. Há todo um
capítulo destinado a falar sobre a “atuação dos verificadores de fatos
independentes”. E aqui talvez valha a pena explicar que o redator pouco
afeito as sutilezas do idioma quis dizer que os verificadores é que são
independentes, não os fatos.
O trecho é novamente marcado por palavras vazias e conceitos
abstratíssimos. O texto menciona novamente as tais “práticas
internacionais”, sem especificar o país, embora se possa deduzir com
alguma segurança que os deputados têm em mente sempre um Canadá e nunca
um Turcomenistão. E fala ainda num místico Código de Ética dos
Jornalistas.
Em alguns momentos, o projeto é tão ousado em seu autoritarismo
velado que é impossível não ler nas entrelinhas algo da ingenuidade
juvenil dos nobres deputados que o apresentaram. Ainda sobre as agências
de checagem, diz o texto que “o provedor de aplicação pode escolher de
qual verificador de fatos independentes irá emitir a correção para os
usuários”. Mas com uma ressalva, porque deve-se “levar em consideração a
reputação da entidade, bem como sua capacidade de corrigir de maneira
mais eficiente a desinformação”.
É sempre bom quando precisamos de políticos para nos dizer que ainda
temos escolhas, embora logo em seguida crie parâmetros para que eu faça
essa escolha baseada numa escolha prévia deles, os legisladores.
Efeito colateral e coronavírus
Um dos efeitos colaterais do projeto de lei, se aprovado na sua
integralidade, seria o fim do humor nas redes sociais e nos “serviços de
mensagens instantâneas”. Afinal, em tese seria identificado e punido o
pobre cidadão que compartilhasse uma piada que as empresas
identificassem como “desinformação”.
Aí o texto chega no “monopólio da violência” propriamente dito, que
neste caso se manifesta na capacidade de cobrar multas e até expulsar do
Brasil as empresas que infringirem a lei.
E era de se esperar que o texto se encerrasse aí. Mas não. Como a
redação burocrática é obscura e como se os termos vagos dos artigos e
incisos não bastassem, Felipe Rigoni e Tabata Amaral acharam por bem
redigir algumas páginas justificando o projeto. A justificativa começa
com “a internet continua transformando o modo que consumimos e
transmitimos informações” e segue neste tom de redação escolar para
falar de coronavírus e até vacinação, sem deixar de lado os
especialistas de alguma universidade estrangeira (padrões
internacionais, lembra?) que calculam com exatidão (61%) a quantidade de
usuários afetados pela correção de uma notícia falsa.
Não há por que se preocupar com censura. Está claro que a Lei
Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet
está destinada a desaparecer em alguma gaveta de uma comissão qualquer
do Congresso ou a ser contestada no Supremo Tribunal Federal. O que
preocupa mesmo é que PL 1429 de 2020 possa ser lido como uma síntese da
renovação política do nosso Legislativo: saem aquelas figuras
folclóricas e os assessores cheios de mesóclises e entram os deputados
cheios de boas intenções trazendo o cala-boca tecnológico com cara de
virtude a tiracolo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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