Políticos, celebridades e especialistas acabam entregando mais do que
queriam em falas ou performances feitas do confinamento das casas de
cada um. Vilma Gryzinski:
Joe Biden quer ser presidente dos Estados Unidos, mas não se dá bem
com tecnologia. Coisas banais, como fazer uma live, dar entrevista por
Skype ou, basicamente, controlar um celular.
Também pode ser pego por imprevistos impensáveis em tempos normais,
como os grasnidos estridentes de gansos selvagens que chegaram a abafar o
que discursava para um grupo de simpatizantes muito, muito longe de sua
casa.
Além dos gansos barulhentos, um iPhone começou a tocar no meio da
história e um agente do Serviço Secreto apareceu, hesitantemente, num
canto da tela, no jardim.
Aos 77 anos, Biden está em isolamento total. Quando resolveu trocar o
ambiente habitual, um porão transformado em estúdio que já estava
ficando sinistro, foi colocado numa sala, entre vasos de flores, com uma
janela ao fundo, dando para o jardim de sua casa em Wilmington,
Delaware.
Daí a coisa deu mais errado ainda com a agressiva interferência
sonora dos gansos, que latem como cachorros – e até são usados em alguns
lugares como cães de guarda (foram os gansos do templo de Juno que
deram o alarme e salvaram Roma da infiltração de gauleses, em 370 AC).
Os apuros do candidato democrata que quer varrer Donald Trump do mapa
são um retrato divertido da era de bisbilhotagem involuntária que o
novo vírus desencadeou.
Reuniões de trabalho, sessões ministeriais, entrevistas de televisão e
apresentações de artistas passaram a ser remotas. Com os envolvidos
trancafiados em suas casas ou escritórios.
Levantou-se assim o manto diáfano da fantasia.
Sem produção, refletores, câmeras profissionais, maquiadores e
cabeleireiros, as pessoas passaram a aparecer como são de verdade.
Como o ser humano é louco para saber da vida alheia, livros, fotos e
objetos passaram a ser escrutinados – claro que, tendo a opção, todos
preferem aparecer com estantes lotadas ao fundo, passando uma ideia de
seriedade.
Quando o príncipe Charles falou de seu estúdio – a palavra antiga
ainda é usada -, os livros da estante foram decifrados pelos tablóides.
O herdeiro do trono está em Birkhall, na Escócia, o seu refúgio
predileto. Como já teve Covid-19, poderia aparecer um pouco mais, embora
sob o risco de ofuscar a mãe (94 anos e muita boataria de que não vai
deixar a segurança do Palácio de Windsor tão cedo) ou até o próprio
filho.
Fora fotos de família – os pais, a avó querida, o netinho Archie -,
Charles tem livros realmente relacionados com seus interesses, como
botânica e um romance policial escrito por um ex-jóquei que virou
escritor.
A estante da mulher dele, Camila, um modelo idêntico, também expõe os
interesses da família: uma foto de cavalo e outra de cachorro, entre
momentos familiares.
Quem causou na era da bisbilhotagem virtual: o empresário que
esqueceu de desligar a câmera e foi tomar banho durante a rodada de zoom
com Jair Bolsonaro; o jornalista espanhol que falava de um quarto de
hotel quando uma beldade usando apenas top apareceu ao fundo, e não era a
sua namorada; a virologista que deu entrevista à Sky News com cara de
quem tinha saído do banho, com um lenço mal ajambrado na cabeça, com uma
infinidade de sacolas de pano penduradas atrás da porta.
Mas o confinamento que realmente pesa, em termos de consequências
políticas, é o do homem que está mais cotado pelas pesquisas – sim,
sabemos como não garantem nada – para ser o próximo presidente dos
Estados Unidos.
Logo no começo da quarentena, sua casa foi reforçada. Na sala de
ginástica, têm pesos, aparelhos e uma Peloton, a bicicleta dos sonhos
dos malhadores. No escritório do porão, que não existira, mais livros,
bandeira americana e luva de beisebol, fora um aparato de câmeras.
Quando não se atrapalha com a tecnologia, Biden se enrola com as
palavras: confunde fatos, números e pessoas, repete chavões que
funcionariam muito mal num debate com Trump.
Mas haverá debate? Pelo menos no sentido de um confronto em que os
adversários ficam bem próximos um do outro, provavelmente não.
O mais complicado, no momento, é se e quando Biden será realocado no
mundo real. Quanto mais precauções que venham a cercá-lo, mais aumenta a
imagem de um homem fragilizado pela idade justamente no meio de uma
epidemia que tem os idosos como alvos preferenciais.
A vulnerabilidade do candidato a presidente pode provocar empatia,
mas na hora de votar muitos eleitores certamente considerarão se é
seguro colocar na Casa Branca um homem de 77 anos, ainda mais com o
risco de novas ondas da epidemia.
Ironicamente, o impulsivo, imprevisível, explosivo e nada confiável
Donald Trump poderia se configurar como o candidato menos instável.
A pandemia está provocando grandes mudanças – e não foi só Madonna
que percebeu isso, deletando o vídeo em que aparece numa banheira de
espuma cercada de velas, falando baboseiras.
Uma pesquisa da OnePoll mostrou que a intervenção do governo está
sendo cada vez mais demandada, justamente no país com uma forte tradição
de repúdio ao estado-babá.
Com a preocupação primordial voltada para a doença, 84% dos eleitores
democratas e 74% dos republicanos se declararam a favor de um sistema
único de saúde.
E mais de 80% são favoráveis à perpetuação dos “cheques do governo”, a
ajuda emergencial que se transformaria, na prática, num programa de
renda mínima.
Provavelmente, é esta ajuda para a crise que faz com que 62% dos
entrevistados declare que o presidente Trump está conduzindo bem a crise
– para desespero dos antitrumpistas, certos de que o tamanho da crise,
indo proximamente para 100 mil mortos, e o comportamento errático de
Trump significavam seu fim.
Dinheiro no bolso é um ótimo influenciador de opinião. Em qualquer lugar do mundo.
Joe Biden tem mais problemas do que a vida em quarentena, gansos grasnando e os malditos botõezinhos do celular.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

Nenhum comentário:
Postar um comentário