O mundo virou uma nova caricatura marxista, com novos opressores e oprimidos. Coluna de João Pereira Coutinho, via FSP:
Toda unanimidade é burra, já dizia o filósofo Nelson Rodrigues. Mas
como resistir a modas que submergem a paisagem com violência
apocalíptica?
Décadas atrás, o grande poeta Czesław Miłosz (1911-2004) escreveu a
sua "Mente Cativa", uma meditação sobre a forma como os intelectuais
poloneses se entregaram nos braços das sereias marxistas.
Contava Miłosz, então no exílio, que essa rendição era voluntária. Só raramente, muito raramente, havia violência estatal.
Os intelectuais marchavam pelo materialismo histórico e engoliam todo
o jargão correspondente ("luta de classes", "falsa consciência",
"forças de produção" etc.) porque sentiam o medo da irrelevância. Não no
sentido mais prosaico de não terem como publicar os seus livros se
persistissem no erro do pensamento livre.
Esse medo da irrelevância era de outra ordem: se o marxismo, enquanto
teoria científica da história, representava a última palavra na
explicação dos assuntos humanos, ninguém queria ficar para trás. Ninguém
queria perder esse trem.
No fundo, ninguém queria devotar a vida inteira tentando provar que a
Terra era redonda quando Marx e Engels tinham garantido que ela era
plana.
Hoje, relendo a prosa que os "intelectuais orgânicos" nos deixaram,
percebemos que foram eles os verdadeiros perdedores da história: as suas
páginas são monumentos ao vazio, à irrelevância e à estupidez.
Mas é um erro pensar que as sereias da unanimidade burra
desapareceram depois da queda do Muro de Berlim. Que o digam Tyler Cowen
e Alex Tabarrok, dois professores da Universidade George Mason, que
partilharam no seu site Marginal Revolution vários estudos estatísticos
sobre as palavras ou expressões que passaram a dominar o New York Times
nos últimos anos.
Alguns dos termos são óbvios porque exprimem realidades geopolíticas
incontornáveis (ex.: China). Outros foram decrescendo de importância
porque a "destruição criativa" do capitalismo não perdoa (ex.: General
Motors).
Mas o que mais impressiona na contabilidade são palavras ou
expressões que literalmente não existiam --e que explodiram de um dia
para o outro, passando a deter uma importância hegemônica.
Anote, leitor: masculinidade tóxica; racismo sistêmico; transfobia;
ableísmo; islamofobia; discurso de ódio; "mansplaining"; apropriação
cultural; microagressões; "safe space"; "fat shaming"; identidade de
gênero; interseccionalidade.
À primeira vista, nada de anormal: novas realidades implicam novos
nomes para compreensão e estudo. Sempre assim foi: a história da ciência
é também a história da terminologia científica.
O que é anormal, porém, é a predominância de conceitos ou categorias
que remetem para fenômenos vitimários, como se o mundo se tivesse
transformado numa nova caricatura marxista, com novos opressores e novos
oprimidos.
Fato: o proletariado já não existe como sujeito histórico (mentira,
claro, o proletariado continua a existir, mas agora vota na extrema
direita porque foi abandonado pela esquerda tradicional).
Mas, no seu lugar, existem as mulheres, os negros, os muçulmanos, os
gordos, os trans —novas classes de vítimas que sofrem às mãos dos
homens, dos brancos, dos cristãos, dos belos, dos hétero.
O fato de essas palavras ou expressões aparecerem em força com o novo
milênio, ou seja, depois do colapso do comunismo, só reforça a velha
ideia de que nada se perde, nada se ganha, tudo se transforma. É o mesmo
roteiro maniqueísta interpretado por atores diferentes.
E quem fala em marxismo fala em "intelectuais orgânicos": como no
passado, e tendo o New York Times como cobaia, eles pensam e escrevem
com a cartilha ideológica do momento.
Um filme que não tenha um compromisso com a "inclusividade" é tão
herético como era o "sentimentalismo burguês" para os censores do
realismo socialista. Um livro com personagens sexistas ou misóginas é
tão intolerável como era o formalismo para os sacerdotes da estética
moscovita.
Sim, as notícias da morte do marxismo foram manifestamente
exageradas. Mas, se a história ensina alguma lição, é que aqueles que
marcham com o "espírito do tempo" acabam por desaparecer quando esse
espírito desaparece também.
Um dia, olharemos para os dogmas mentais do presente com o mesmo
espanto com que olhamos para os dogmas pseudocientíficos do passado.
E a pergunta, inevitável, será semelhante: "Como foi possível escrever e acreditar em tanto lixo?".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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