Como é que é, o MPF e a
PF perderam as chaves para abrir os segredos da Odebrecht? Nesse caso,
como fica o acordo de leniência feito com a empresa? Acompanhem o texto
de Carlos Andreazza, via O Globo:
O ótimo repórter
Thiago Herdy, neste O GLOBO, publicou — no último 29 de janeiro —
matéria cujo teor, importantíssimo e escandaloso, é tão eloquente sobre o
estado de coisas no Brasil quanto o fato de haver pouco repercutido é
representativo do espírito do tempo em que vivemos. Chama-se “Chaves
para abrir segredos da Odebrecht estão perdidas” e dá conta de que o
cidadão brasileiro provavelmente jamais saberá o que abriga um dos
sistemas usados pelo setor de Operações Estruturadas da empreiteira para
organizar a distribuição de propina. A trama se complica quando somos
lembrados de que a entrega dos dados reunidos no programa — Mywebday é o
nome do troço — compõe o acordo de leniência firmado pela empresa.
Há seis meses, cinco
discos rígidos com cópia das informações — e dois pen drives que
deveriam dar acesso ao software — chegaram ao Ministério Público
Federal. Desde então, porém, nada. Nem MPF nem Polícia Federal
conseguiram restaurar-lhe o conteúdo. De consistente mesmo, a respeito,
apenas o movimento — em curso — para abafar a história e deixar tudo
como está, e a desconfiança de que o trabalho por quebrar os códigos do
programa foi deliberadamente negligenciado. Um exemplo, na melhor das
hipóteses, da profundidade da incompetência em questão: o MPF
simplesmente não testou as chaves de acesso no momento da entrega do
material. Hoje, suspeita-se — tudo, claro, sob investigação — de que os
dispositivos tenham sido apagados e reescritos.
Que tal?
Respire fundo,
leitor, para lidar com a declaração a seguir: “O sistema está
criptografado, com duas chaves perdidas. Não houve meio de recuperar.
Nem sei se haverá. Não houve qualquer avanço nisso.”
Oi? O quê? Como é? A
coisa fica especialmente confusa quando revelado o autor dessa fala —
que seria blasé não fosse irresponsável: Carlos Fernando dos Santos, um
dos coordenadores da Lava-Jato em Curitiba, cujo tom francamente
despreocupado com o interesse público é inconsistente com o histórico
sempre tão indignado do doutor, embora exato em expressar o modelo de
atuação escolhido pelos procuradores da força-tarefa.
São muitas as
dúvidas. Todas derivam da falta de transparência acerca do conteúdo do
Mywebday. O Ministério Público Federal recebeu o material — extraído de
servidor na Suíça — em agosto de 2017. Nunca se falou sobre a
impossibilidade de ser lido. Desde então, conforme noticiado, a única
restrição de acesso — muito problemática — tinha origem contratual:
segundo uma das cláusulas estabelecidas no acordo com a Odebrecht, só os
procuradores poderiam analisar os dados — em detrimento, claro, da
Polícia Federal, o órgão investigador por excelência. Algumas
reportagens, entre agosto e novembro do ano passado, registraram o
motivo da seletividade: o MPF zelava pela exclusividade — e aqui o
colunista tenta não rir — para evitar que os documentos vazassem.
Paralelamente, fontes
da PF faziam circular na imprensa a avaliação de que o Ministério
Público Federal — também como componente da briga corporativa por poder
entre as duas instituições — impunha-se como único a custodiar as
informações porque desejava o monopólio para manuseá-las, e porque a
empreiteira teria receio de que temas não abordados nas colaborações
premiadas de seus executivos pudessem ser explorados pelos policiais. Em
setembro, em resposta a pedido da defesa do ex-presidente Lula, o juiz
Sergio Moro determinou que o sistema fosse periciado pela Polícia
Federal — mas também sobre os desdobramentos dessa decisão prevaleceu a
desinformação.
Não daria outra. A
falta de clareza a respeito do Mywebday e as legítimas desconfianças
decorrentes do que é obscuro criaram as condições para a ascensão
influente de narrativas falaciosas como a do petismo — e ofereceram
elementos para que a defesa de Lula acusasse o MPF de tratar o software
como inviolável para esconder a ausência de provas, nos documentos, que
sustentassem a palavra de delatores da Odebrecht contra o ex-presidente.
Incontroverso é que o
episódio — o descaso para com a substância do sistema — evidencia mais
uma vez a distorção no modo como o Ministério Público Federal compreende
e usa o instituto da colaboração premiada. Essa deturpação de
finalidade autoriza algumas reflexões. Por exemplo: se o MPF tivesse
priorizado o ingresso ao programa, talvez encontrasse conjunto de
informações capaz de tornar prescindíveis os acordos de delação (ou boa
parte deles) firmados com quase 80 executivos da Odebrecht. Se tivesse
se dedicado, antes de tudo, a decifrar o sistema (ou a comprovar a
impossibilidade de fazê-lo), quem sabe o Estado brasileiro se livrasse
de ter de oferecer tantos benefícios a tanta gente; e quem sabe a
colaboração premiada deixasse de ser muleta para investigadores
incompetentes (e/ou apaixonados pelo palanque) e se tornasse o que é:
recurso complementar. Nesse caso, é provável, teríamos mais provas e
menos heróis.
Uma pergunta final e
urgente: se a entrega do conteúdo codificado no Mywebday integra o
acordo de leniência da empresa, e se, afinal, sua leitura for mesmo
inexpugnável, isso não significará comprometer gravemente o contrato
firmado entre empreiteira e Estado brasileiro? Ficará por isso mesmo?
Tem caroço a ser pescado nesse angu.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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