Donald Trump mudou de
patamar durante os seis dias entre o estonteante encontro que teve com
os líderes da oposição do Partido Democrata e o discurso que fez hoje na
ONU – talvez o mais subversivo já proferido numa Assembleia Geral desde
a estreia de Fidel Castro, em 1960.
A esta altura, todo
mundo já sabe que ele anunciou perante o mundo, em termos que não
poderiam ser mais claros, qual o futuro do “rocket man”, a designação
vexatória de Kim Jong-Un: os Estados Unidos podem “não ter outra opção”,
para defender a si mesmos e a seus aliados, a não ser a destruição
total da Coreia do Norte.
Precisa desenhar? Devido à clareza sem precedentes das palavras de Trump, outros pontos do discurso ficaram ofuscados.
Todos merecem ser
destacados, mas vamos ficar com alguns dos trechos mais impactantes pois
equivalem a uma declaração de princípios do governo Trump como nunca
tinha sido feita antes.
“Queremos harmonia e
amizade, não conflito e disputa. Somos guiados por resultados, não por
ideologias. Temos uma política de realismo com princípios, baseada em
objetivos, interesses e valores em comum.”
O conceito-chave,
explicitado em outros trechos, é a saída de cena da palavra
“ideologias”. Tradução: os Estados Unidos de Trump, representados
toscamente como a encarnação do mal e da guerra, não querem impor o
modelo americano ao mundo.
Uma obviedade
necessária seguida de um puxão de orelhas também bem óbvio: “Este
realismo nos obriga a enfrentar a questão que está diante de cada um dos
líderes e das nações presentes nesta sala, e é uma questão que não
podemos fugir ou evitar”.
A questão,
obviamente, é o que fazer com os nanicos que “violam todos os princípios
nos quais as Nações Unidas são baseadas”, a começar pelo “regime
depravado da Coreia do Norte”.
MORDE E ASSOPRA
Como os papas, no
Natal e na Páscoa, Trump falou “urbi et orbi”. Ao público interno, como
fazem todos os participantes do teatro da Assembleia Geral, e ao
externo, como exigem o pódio e a condição de superpotência.
A franqueza bruta e o
tom catastrofista são típicos de Stephen Miller, o assessor
presidencial de 32 anos que escreve seus principais discursos. Mas a
tática do morde e assopra tem sido típica de Trump nessa nova fase.
Ontem, ele assoprou,
elogiando o secretário-geral, António Guterrez, pelas propostas de
reforma “ousadas” – praticamente uma piada quando se trata de um leviatã
burocrático como a ONU. Hoje, ele mordeu.
Na política interna,
Trump tem usado do mesmo recurso. Fez uma limpa no governo, tirando o
mais ideológico de seus assessores, Stephen Bannon, que prometeu amá-lo
até a morte no site Breitbart News.
Quando os puristas
entraram em surto, Trump anunciou que ia enviar ao Congresso, como é
devido, a decisão sobre o decreto de Barack Obama sobre imigrantes
ilegais levados aos Estados Unidos quando eram crianças, um projeto
conhecido pelas iniciais, DACA.
Mal tiveram tempo de
comemorar e Trump levou para a Casa Branca os dois líderes da oposição
democrata, Chuck Schummer, do Senado, e Nancy Pelosi, da Câmara.
Concordaram em “começar a discutir a possibilidade” de um acordo
envolvendo a regularização dos envolvidos no DACA e a “segurança de
fronteiras”.
Bateu o desespero nos
trumpistas do “comentariado”, os nomões da televisão ou das redes, que
são poucos mas poderosos. Se Trump tivesse levado o assassino Charles
Manson para um café na Casa Branca não provocaria ojeriza maior. “Cadê o
muro?”, gritaram em furioso uníssono.
Os antitrumpistas
entusiasmaram-se com a chance de trolar os eleitores de Trump,
colocando-os na categoria de traídos e abandonados.
No mundo real, a base
mais fiel a Trump ficou menos impressionada: pesquisas e entrevistas,
para frustração da imprensa antitrumpista, mostraram muitos eleitores
dispostos a tolerar as heterodoxias presidenciais.
Ou a até a
considerá-las necessárias, especialmente no caso das cerca de 800 mil
pessoas beneficiadas pelo DACA. Fazer o quê? Deportá-las?
TRAIU, E DAÍ?
Em outras
circunstâncias e com outros personagens, a abertura de Trump para
acordos com a oposição seria considerada uma negociação política
legítima e até astuta.
Como ainda não
redundaram em nenhum resultado prático, ainda é impossível dizer se
fazem parte de uma estratégia sofisticada ou são apenas uma manobra
desesperada de um presidente que não conseguiu fazer o Congresso, onde o
Partido Republicano, nominalmente o seu, é maioria, votar nenhuma das
propostas mais importantes que defende.
Deixar a esquerda
perplexa e a direita estupefata é aspiração de alguns e realização de
quase nenhum. Não vamos nem falar no precedente brasileiro.
A discussão sobre
fazer um muro, ou algum equivalente para controlar a imigração ilegal
por terra, tem importância real zero, apesar do grande peso na esfera da
simbologia política.
Trump depende
muitíssimo mais da abolição do sistema obamista de saúde, empacada no
Congresso, e da reforma fiscal, que nem chegou lá, para bombar a
economia, aumentar o crescimento e criar mais empregos.
Nada disso vai mal,
de forma alguma. Mas também não vai tão bem que dê alguma margem de
segurança para Trump negociar acordos com a oposição e fazer concessões.
Ou dizer, como certas atrizes: traí, sim, e daí?
Eleitores
economicamente satisfeitos tendem a ser muito mais condescendentes. A
maior prova é Bill Clinton, perdoado pela maioria dos americanos pelas
escapadas literais.
Sobre o discurso de
Fidel em 1960: apesar de já comprovadamente mortífero, ele ainda tinha o
frescor da novidade, a silhueta de guerrilheiro e a aura de vencedor
improvável. A melhor parte é quando fala de como a delegação cubana
acabou banida para um pequeno hotel no Harlem.
“Começaram a espalhar
pelo mundo a notícia de que a delegação cubana havia se hospedado num
bordel. Para alguns senhores, um hotel humilde do Harlem, um hotel dos
negros dos Estados Unidos, tinha que ser um bordel”, dramatizou Fidel.
Outro trecho, muito
aplaudido: “Nós não temos que pedir desculpas a ninguém. O que fizemos,
fizemos muito conscientes e sobretudo muito convencidos de nossos
direitos a fazê-lo”.
“Está ao nosso
alcance, se assim quisermos, tirar milhões da pobreza, ajudar nossos
cidadãos a realizar seus sonhos e garantir que novas gerações de
crianças sejam criadas sem medo, sem ódio e sem violência.”
Quem disse isso, Fidel ou Trump?
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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