Quando se estudava o
regime político do Reino Unido e se queria acentuar o parlamentarismo
que o caracteriza, era habitual dizer: «O Parlamento pode fazer tudo,
exceto transformar um homem numa mulher». Para além do exagero da
afirmação, quanto à extensão dos poderes de qualquer legislador, o
exemplo já não serve hoje, desde que a “ideologia do género” foi
penetrando na ordem jurídica de vários países. Entre nós, desde a
entrada em vigor da Lei n.º 7/2011, de 15 de março, pode ser registado
como homem ou mulher quem não tenha as características biológicas
respetivas, mas que como tal se identifique pela sua auto-perceção
subjetiva.
Para a “ideologia do
género”, que o Papa emérito Bento XVI designou como “revolução
antropológica” contrária ao legado judaico-cristão e de outras culturas
tradicionais, o género será uma escolha independente do sexo de nascença
e não haverá modelos de família (homossexual ou heterossexual) de
referência, como não serão modelos de referência a paternidade e a
maternidade (antes, uma indistinta parentalidade). Para qualquer destes
âmbitos, os dados biológicos relativos à diferença e complementaridade
dos sexos serão irrelevantes.
Agora, pretende-se
dar mais uns passos no sentido da penetração dessa ideologia na ordem
jurídica portuguesa, através dos projetos em discussão na Assembleia da
República (uma proposta de lei do Governo e projectos de lei do Bloco de
Esquerda e do P.A.N.), relativos ao «direito de auto-determinação da
identidade de género». Todos eles dispensam, para a mudança de
identificação de género no registo civil, a apresentação, exigida pela
lei vigente, de um diagnóstico médico de transexualidade, bastando a
vontade do próprio. A proposta do Governo reduz para dezasseis anos a
idade mínima para requerer essa mudança. O projeto do Bloco de Esquerda
prevê a possibilidade de um menor (sem fixar qualquer idade mínima)
requerer essa mudança contra a vontade dos representantes legais (que
são quase sempre os pais) e com autorização judicial. O projeto do
P.A.N. permite que esse requerimento seja formulado por um menor (também
sem fixar idade mínima) através dos seus representantes legais ou do
Ministério Público. A proposta do Governo prevê, por outro lado, a
possibilidade de cirurgias de reatribuição de sexo em menores, em caso
de diagnóstico de transexualidade, com autorização dos representantes
legais.
O projeto do Bloco de
Esquerda segue a tendência norte-americana que tem dado origem à
chamada WC War, fonte de polémicas que inundam os tribunais. Determina
que serão «adotadas as medidas necessárias que permitam, em qualquer
situação que implique o alojamento ou a utilização de instalações
públicas destinadas a um determinado género, o acesso ao equipamento que
corresponda ao género autodeterminado da pessoa». As polémicas
norte-americanas surgem porque tal política pretende sobrepor um desejo
de afirmação da “identidade de género” à salvaguarda de privacidade e
segurança que justifica a separação por sexos de casas de banho,
balneários e dormitórios.
O projeto do Bloco de
Esquerda consagra o direito de qualquer pessoa ser tratada pelas
outras, em qualquer contexto, de acordo com o género com que se
identifica, para além do que conste do registo civil. E impõe (tal como a
proposta do Governo) diretrizes nesse sentido especialmente destinadas
às instituições de ensino, públicas e privadas. O que significa impor a
todos os ditames próprios da “ideologia do género”, com as consequentes
limitações da liberdade de expressão de um pensamento que possa ser
contrário a tais ditames.
O Conselho Nacional
de Ética para as Ciências da Vida emitiu três pareceres sobre estes
projetos. Com uma unanimidade pouco frequente neste tipo de questões,
este órgão de composição pluralista pronunciou-se pela reprovação ética
dos mesmos.
Afirma o parecer
relativo à proposta do Governo que esta (o que também se verifica em
relação aos restantes projetos), por dispensar qualquer atestado médico
para a mudança de identificação no registo civil, «ignora a existência
de pessoas afetadas por perturbações mentais, que se manifestam por
convicções delirantes de transformação sexual, nas quais a
autodeterminação está coartada ou mais ou menos comprometida. A questão
suscitada é tão-somente esta: quem distingue, quando e como, os
transexuais primários, detentores da plena convicção de pertencerem ao
sexo oposto, daqueles outros, reféns de uma crença delirante ou de uma
outra condição patológica (transexuais secundários), que procuram
alcançar o mesmo desiderato, ou seja, mudar de sexo e nome? Ora,
afigura-se inaceitável que esta questão, pelos riscos que envolve, possa
ser resolvida mediante a simples apreciação do Conservador do Registo
Civil (…). Tornar o registo civil um ato de natureza privada em que cada
um, no exercício de uma liberdade absoluta, registasse a sua identidade
de género quando entendesse, tornaria este registo como algo da esfera
privada de cada pessoa, afastado da natural vivência pública onde todos
estamos inseridos. Do mesmo modo, o estabelecimento de uma liberdade
absoluta do registo de género de cada pessoa tornaria impossível um
reconhecimento público da identidade de cada cidadão. Em diversos
setores da nossa sociedade, como no sistema de saúde, na educação, nos
sistemas da segurança e da defesa do Estado, a simples e imprescindível
identificação de uma pessoa poderia ficar comprometida.(…)»
Quanto à questão dos
menores, afirma esse parecer que «o adolescente de 16 anos não está
ainda em situação de exercer o direito de autodeterminação mas tão-só no
patamar da elaboração cognitiva e sensitiva que o levará a essa
compreensão, para posterior e oportuna decisão.»
A oposição ao projeto
do Bloco de Esquerda é sintetizada, no parecer a ele relativo, nestes
termos (nalguma medida também aplicáveis aos restantes projetos): « a)
interpreta o “reconhecimento da identidade e/ou expressão de género”
como “livre autodeterminação do género”, autonomizando esse conceito do
conceito de sexo, e a essa interpretação atribui, sem sustentação
jurídico-constitucional suficiente, valor de “direito humano
fundamental”; b) remete para um exercício simples de vontade individual o
ato de identificação pessoal no registo civil, desconsiderando a sua
natureza pública, com todas as consequências daí advenientes, em termos
de certeza e de segurança jurídicas; c) confere aos menores de 16 anos o
acesso universal à autodeterminação de género, como expressão de
vontade autónoma, sem acautelar ponderadamente questões associadas ao
seu próprio processo de maturação e desenvolvimento neuro-psíquico e
advogando a possibilidade de litígio judicial contra os progenitores, no
exercício das responsabilidades parentais; d) garante o direito ao
livre acesso ao SNS para efeitos de tratamentos farmacológicos e para
realização de procedimentos cirúrgicos que têm efeitos irreversíveis,
sem a existência de um quadro clínico que configure apropriadamente as
condições da intervenção terapêutica a realizar.»
As alterações
propostas inserem-se, assim, numa agenda de afirmação ideológica. Uma
ideologia que se afirma contra a realidade mais evidente, como se o
legislador, na sua arbitrária omnipotência, pudesse contrariar essa
realidade (se os factos contrariam a ideologia, «tanto pior para os
factos»). Afirma o filósofo francês François-Xavier Bellamy a propósito
de questão análoga: «Já não existe natureza, abre-se o reino do desejo».
Sobre a “ideologia do género” afirma a carta pastoral da Conferência Episcopal portuguesa de 14 de março de 2013:
«Reflete um subjetivismo relativista levado ao extremo, negando o significado da realidade objetiva. Nega a verdade como algo que não pode ser construído, mas nos é dado e por nós descoberto e recebido. Recusa a moral como uma ordem objetiva de que não podemos dispor. Rejeita o significado do corpo: a pessoa não seria uma unidade incindível, espiritual e corpórea, mas um espírito que tem um corpo a ela extrínseco, disponível e manipulável. Contradiz a natureza como dado a acolher e respeitar. Contraria uma certa forma de ecologia humana, chocante numa época em que tanto se exalta a necessidade de respeito pela harmonia pré-estabelecida subjacente ao equilíbrio ecológico ambiental. Dissocia a procriação da união entre um homem e uma mulher e, portanto, da relacionalidade pessoal, em que o filho é acolhido como um dom, tornando-a objeto de um direito de afirmação individual: o “direito” à parentalidade. (…) É certo que a pessoa humana não é só natureza, mas é também cultura. E também é certo que a lei natural não se confunde com a lei biológica. Mas os dados biológicos objetivos contêm um sentido e apontam para um desígnio da criação que a inteligência pode descobrir como algo que a antecede e se lhe impõe e não como algo que se pode manipular arbitrariamente. A pessoa humana é um espírito encarnado numa unidade bio-psico-social. Não é só corpo, mas é também corpo. As dimensões corporal e espiritual devem harmonizar-se, sem oposição. Do mesmo modo, também as dimensões natural e cultural. A cultura vai para além da natureza, mas não se lhe deve opor, como se dela tivesse que se libertar.»
Dir-se-á que todas
estas considerações revelam insensibilidade perante o sofrimento das
pessoas que se sentem de um género diferente do sexo de nascença e que
poderão ver minorado esse seu sofrimento se forem reconhecidas pelo
género com que se identificam. Mas não é frutuoso o amor que sacrifica a
verdade, mascarando ilusoriamente a realidade. São muitos os casos de
pessoas que se arrependem de cirurgias de reatribuição do sexo (veja-se o
sítio www.sexchangeregret.com),
uma mudança com consequências irreversíveis e que acaba por ser
ilusória, dada a dimensão genética do sexo, que é obviamente
inalterável. O psiquiatra Paul Mc Hugh afirma que essas práticas
mascaram e exacerbam o problema da “disforia de género”, sem o resolver,
e que delas resultam apenas homens efeminados e mulheres
masculinizadas, e não quaisquer verdadeiras mudanças de sexo. Via mais
sensata será a da psicoterapia que conduza à harmonia entre a perceção
subjetiva e as características biológicas (porque a pessoa nunca deixará
de ser uma unidade que integra um corpo na sua integridade). Uma via
que, também por razões ideológicas, se pretende proibir, como se proíbem
terapias tendentes à mudança de orientação sexual não desejada.
Quanto às crianças e adolescentes, o American College of Pediatricians(ver www.acpeds.org)
considera que práticas como cirurgias de reatribuição de sexo, ou o
bloqueio da evolução pubertária (que também se advoga em nome do
respeito pela “identidade de género”) constituem uma «perigosa
experiência de engenharia social», «baseada na ideologia e não na
ciência», salientando que a grande maioria de casos de “disforia de
género” em menores são superados com o normal crescimento, sendo que o
bloqueio da evolução pubertária acarreta graves e irreversíveis danos.
O amor na verdade (caritas in veritate) – é o que se deve exigir para enfrentar estas situações.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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