O presidente brasileiro quer projetar o Brasil internacionalmente e considera que a mediação na guerra da Ucrânia pode ser uma forma de o fazer. Lula tenta superar outros países emergentes e irrita EUA. José Carlos Duarte para o Observador:
China,
Emirados Árabes Unidos, Portugal, Espanha. Em cerca de uma semana e
meia, Lula da Silva cumpre uma maratona diplomática que atravessa
continentes e que ainda vai a meio. Mesmo quando esteve em Brasília, nos
dias entre a chegada de Abu Dhabi e a viagem para Lisboa (onde chegou
esta sexta-feira e ficará até ao dia 25 de abril), o Presidente
brasileiro recebeu o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia,
Sergei Lavrov, e o seu homólogo romeno, Klaus Iohannis. Em todos estes
momentos, o Chefe de Estado brasileiro aproveitou a oportunidade para
debater a guerra na Ucrânia, expondo os seus planos e realçando a
necessidade de terminar o conflito o mais cedo possível.
Se
o tema da guerra foi uma constante nos encontros com os líderes de
vários países, o mesmo não aconteceu nas posições que o Presidente
brasileiro foi assumindo em cada uma dessas etapas diplomáticas. O
discurso de Lula da Silva sobre o conflito sofreu, aliás, várias
alterações numa questão de dias.
Na
China, o Presidente brasileiro disse que está “unido” com Pequim na
forma como encaram a guerra. Em Abu Dhabi, o líder do Brasil acusou a
União Europeia e os Estados Unidos de contribuírem para a “continuidade”
do conflito. E na receção a Sergei Lavrov o governo brasileiro destacou
que se posicionava contra as sanções aplicadas à Rússia, frisando o
sentimento de “união” entre os dois países. A inversão do discurso — um
recuo em relação a algumas das posições assumidas durante esse périplo
diplomático — seguiu-se às reações que as palavras de Lula provocaram.
As
primeiras palavras de Lula da Silva não agradaram nem à Ucrânia nem ao
Ocidente. A União Europeia (UE) e os Estados Unidos (EUA) criticaram as
declarações do líder brasileiro — Washington chegou mesmo a acusá-lo de
“papaguear propaganda russa e chinesa” sem “olhar para o factos”. Por
sua vez, Kiev convidou o líder do Brasil a ir ao país para ver de perto,
com os próprios olhos, a realidade da guerra. E, em Portugal, António
Costa assinalou as “divergências” entre Brasília e Lisboa em relação à
guerra na Ucrânia, sublinhando que um e o outro assumiam “posições
radicalmente diversas” em relação ao conflito.
Depois
desta onda de condenações e distanciamentos, o Presidente brasileiro
retratou-se. E, num almoço com o Chefe de Estado da Roménia (líder de um
país da UE e da NATO), fez questão de condenar a “violação da
integridade territorial da Ucrânia” cometida pela Rússia em fevereiro do
ano passado.
Qual
é o motivo destas contradições no discurso? “Lula é um político hábil”,
começa por dizer ao Observador, Mariano Aguirre, membro associado do
think tank Chatham House e assessor da Rede Latinoamericana de Segurança
da Fundação Friedrich Ebert, salientando que a presidência brasileira
apoia-se numa rede diplomática “com grande experiência” — acumulada nos
outros mandatos da Lula da Silva — e que segue uma linha de política
externa bem definida para alcançar os objetivos do país na comunidade
internacional.
“Dá-se
bem com Washington, com Bruxelas e com os ecologistas na conferência da
Organização das Nações Unidas (ONU) no Cairo. Ao mesmo tempo, trata o
governo chinês e russo de igual para igual — e obtém bons contratos e
investimentos”, exemplifica Mariano Aguirre, acrescentando que, por
todos os sítios por que passa, Lula da Silva diz aos líderes mundiais “o
que eles querem ouvir” e não entra em “divergências de fundo com
ninguém”. “Sabe que todos, de alguma forma, necessitam de si, ou, pelo
menos, querem aparecer junto a ele.”
A
descrição do comportamento feita por Mariano Aguirre parece coincidir
com as declarações e as tomadas de posição de Lula da Silva nos últimos
dias. Em declarações ao Observador, Christopher Sabatini, professor
convidado na London School of Economics e membro sénior do think tank
Chatham House nos tópicos da América Latina, aponta “duas razões” para
justificar as ações do líder do Brasil — uma que está alinhada com a
história da política externa brasileira e outra com os reais objetivos
do Chefe de Estado brasileiro de se posicionar com uma figura válida
para mediar o conflito entre Rússia e Ucrânia.
As opções de política externa brasileira e o papel do país numa “nova ordem mundial”
Na
ótica de Christopher Sabatini, “o ADN da política externa” brasileira
sempre privilegiou a “neutralidade” e o não alinhamento em conflitos
estrangeiros. “O Brasil, em particular com os mandatos de Lula da Silva,
aposta numa política de diálogo e da promoção de negociações”,
esclarece o especialista, destacando igualmente que Brasília sempre
adotou uma postura defensora das “instituições que promovam o
multilateralismo”, como a ONU.
Daí
que Lula da Silva defenda uma resolução do conflito através de
negociações, e que as incentive. Recentemente, o Presidente brasileiro
reforçou, nas suas deslocações ao estrangeiro e na receção de líderes no
Brasil, a importância de formar um grupo de países neutrais que
convençam a Rússia e a Ucrânia a sentarem-se à mesa de negociações. “A
China quer paz, o Brasil quer paz, a Indonésia quer paz, a Índia quer
paz. Então, temos de juntar esses países e fazer uma proposta de paz”,
afirmou o Chefe de Estado numa entrevista a um canal estatal chinês.
Embora
Lula da Silva seja o rosto mais visível na América Latina a propor uma
resolução do conflito na Ucrânia, esta atitude não é exclusiva do
Presidente brasileiro. Ao Observador, Vladimir Rouvinski, professor de
nacionalidade russa, membro do departamento de Estudos Políticos na
Universidade da Colômbia Icesi, explica que as “declarações de Lula
refletem uma visão partilhada por vários outros líderes da esquerda dos
países da América Latina”.
Naquela
zona do globo existe, de acordo o mesmo especialista, uma “crescente
preocupação e incerteza” dos impactos que poderá ter a guerra na Ucrânia
no “futuro da ordem internacional”. Vladimir Rouvinski sinaliza que
crescem, na América Latina, as “dúvidas de que os Estados Unidos e
outros países ocidentais sejam capazes de manter o status quo quanto às
regras do jogo que existiam antes da guerra”.
Christopher
Sabatini concorda e elabora ainda mais o raciocínio. A guerra na
Ucrânia pode simbolizar o momento ideal para “construir uma nova ordem
mundial — de cariz multipolar —, que ouça as vozes do Sul Global e dos
países em desenvolvimento”. A diplomacia brasileira estará, nesta
lógica, a “usar” o conflito na Ucrânia para colocar em prática essa
“visão” da comunidade internacional, tendo como pano de fundo a ideia de
que a influência dos “Estados Unidos está a decair”.
Neste
contexto, e num cenário que implique uma possível derrota (mesmo que
parcial) da Ucrânia face à Rússia (o que levaria a um inevitável revés
para a política externa defendida pela esmagadora maioria dos países do
Ocidente), a leitura de Vladimir Rouvinski é a de que o “Brasil tenta
não ficar de fora do processo de aprovação de novas regras do jogo se as
velhas começarem a desaparecer”.
O
interesse em criar uma nova ordem mundial é partilhado com a Rússia,
que tem reiterado por várias vezes que considera o atual contexto
geopolítico mundial injusto, devido à posição hegemónica assumida pelos
Estados Unidos. Ainda na visita a Brasília, Sergei Lavrov destacou que
as visões russas e brasileiras são “únicas” no que concerne à comunidade
internacional, uma vez que implicam a construção de uma “ordem mundial
mais justa, correta, baseada no Direito”, tendo ainda em consideração a
“visão de mundo multipolar”.
O
chefe da diplomacia russa aproveitou para elogiar as diretrizes
seguidas pela política externa brasileira e, durante a conferência de
imprensa com o seu homólogo brasileiro, Mauro Vieira, Sergei Lavrov
trouxe para cima da mesa uma das principais ambições do Brasil na cena
internacional, sinalizando que era a “favor da participação do Brasil
como membro permanente” do Conselho de Segurança das Nações Unidas (do
qual fazem parte Rússia, China, Estados Unidos, Reino Unido e França).
A
integração de mais membros permanentes no Conselho de Segurança tem
sido alvo de debate nas últimas décadas, principalmente por parte dos
países do Sul Global — que reclamam um lugar naquele que é o órgão mais
importante da ONU. Sendo o maior país da América Latina, o Brasil tem
sido um dos nomes mais falados para se tornar membro fixo, um lugar que
se compatibiliza, segundo Christopher Sabatini, com as aspirações
brasileiras em desempenhar um “papel mais importante” na comunidade
internacional.
O interesse na mediação do Brasil
Lula
da Silva almeja participar na construção daquilo que considera que
seria uma ordem internacional mais justa e entende que a guerra na
Ucrânia é a oportunidade para repensar os alicerces do sistema atual. Na
mesma medida, o Presidente brasileiro acredita que a mediação do
conflito poderá tornar-se num dos seus principais trunfos para alcançar
esse objetivo.
“O
Presidente brasileiro sabe, e os seus diplomatas sabem, que a guerra na
Ucrânia terminará em algum momento com uma negociação complexa que
incluirá Kiev, Moscovo, Washington, Bruxelas, Pequim e possivelmente um
país emergente“, aclara Mariano Aguirre. Ora, é essa última vaga que o
Brasil quer disputar — e, evidentemente, agarrar.
No
lote de países emergentes que podem desempenhar um papel na mediação,
poderão estar, de acordo com Mariano Aguirre, a Turquia, a Índia, a
África do Sul, um país do Médio Oriente ou então uma “combinação desses
Estados”. No entanto, o especialista nota que, à exceção de Brasília,
“nenhum daqueles atores está a planear um plano de paz”. “O Brasil
distancia-se daqueles que dizem que ‘não é o momento de negociar’ e vai
um passo mais à frente daqueles que querem pedir a paz ou um
cessar-fogo, mas não o expressam”, clarifica Mariano Aguirre.
Por
seu turno, Vladimir Rouvinski corrobora e diz que Lula da Silva tem
interesse em formar um grupo de países neutrais. “Tendo em conta a sua
aposta em ser um ator global com mais relevo, uma hipotética — pelo
menos por agora — plataforma de vários países [para mediar o conflito] é
o que mais convém ao Brasil que, com certeza, sozinho não pode ser um
mediador central, mas sim parte de um grupo de países.”
“A preocupação” dos Estados Unidos e do Ocidente
As
intenções brasileiras em resolver o conflito agradam a Pequim e a
Moscovo. Aliás, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, já mostrou
disponibilidade para ouvir as propostas de paz do Brasil, que “merece
atenção”, desde que “tenham em consideração os interesses da Rússia, as
preocupações da Rússia”. Adicionalmente, em Brasília, Sergei Lavrov
sublinhou que Moscovo quer que a guerra na Ucrânia acabe o mais cedo
possível, permitindo ao líder brasileiro sonhar com um papel de
mediador.
No
entanto, os Estados Unidos e a Europa olham com desconfiança para a
estratégia brasileira. A porta-voz da Casa Branca, Karine Jean-Pierre,
afirmou, esta terça-feira, que o Brasil não assume uma posição de
“neutralidade” no conflito — beneficiando a Rússia — e demonstrou a sua
insatisfação com as recentes declarações de Lula e do ministro Mauro
Vieira.
Karine Jean-Pierre e John Kirby criticaram declarações de Lula
Esta
não foi, ainda assim, a única crítica de Washington dirigida a
Brasília. Na segunda-feira, John Kirby atacou o Presidente do Brasil,
classificando como “profundamente problemática” a forma como Lula da
Silva está a lidar com a guerra na Ucrânia. “Sugeriu que os Estados
Unidos e a Europa de alguma forma não estão interessados na paz ou que
partilham a responsabilidade na guerra”, algo que não faz sentido para
os Estados Unidos, que culpam a Rússia por não estar disposta a aceitar
um cessar-fogo.
Diplomatas norte-americanos ouvidos pelo G1
demonstram frustração com as críticas de Lula da Silva. “Onde estavam a
China e Rússia quando a democracia brasileira estava em perigo?”,
desabafou uma fonte da diplomacia americana, ressaltando que os Estados
Unidos defenderam “o sistema eleitoral brasileiro, as instituições
democráticas e o resultado das eleições”, condenando em toda a linha a
invasão à Praça dos Três Poderes, no início de janeiro.
Ao
Observador, Christopher Sabatini assume que as autoridades
norte-americanas veem com “preocupação” as declarações de Lula da Silva.
O Presidente brasileiro parece estar a abandonar uma posição neutral,
alinhando-se com a Rússia e a China. Isso faz com que o posicionamento
sobre a guerra colida contra o que defendem os Estados Unidos. O
especialista sugere que a “neutralidade” do Brasil implica alguma
“amoralidade”, o que é “profundamente problemático” para os EUA, que
consideram existir “uma parte culpada e um agressor” — o Kremlin.
Diplomata dos EUA à G1
Os
Estados Unidos, acredita Christopher Sabatini, estão a “perder a
confiança” no Brasil na cena internacional, vendo-o cada vez mais
distante e cada vez menos como um aliado. “Francamente, essa é uma opção
de Lula da Silva, que não quer seguir o manual de regras
norte-americano. Prefere tomar uma posição no mundo e ganhar
preponderância na comunidade internacional, mesmo que isso implique
retirar poder a Washington.”
Essa
atitude terá consequências diplomáticas? Os especialistas ouvidos pelo
Observador têm dúvidas de que esse seja o resultado. Apesar de os
Estados Unidos terem ficado “incomodados” com os recentes comentários de
Lula, Mariano Aguirre esclarece que Washington não se pode dar ao luxo
de “perder a relação que mantém” com o Brasil.
“O
problema é que os Estados Unidos precisam do Brasil, precisam de um
parceiro no hemisfério sul para tratar de questões como a Venezuela e as
relacionadas com o ambiente”, confirma Christopher Sabatini. Washington
terá, assim, de reconhecer que o Brasil trata a guerra na Ucrânia “nos
seus próprios termos”.
“Os
Estados Unidos não podem simplesmente desmerecer o papel do Brasil, têm
de tentar balancear as críticas mantendo boas relações noutros
assuntos”, reforça o especialista. Prova disso é que, esta quinta-feira,
o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, vai pedir ao Congresso
norte-americano a aprovação de um desembolso de 500 milhões de dólares
(455,7 milhões de euros) para o Fundo Amazónia, do Brasil.
A
porta-voz da Casa Branca já tinha assinalado, na terça-feira, que,
apesar das posições divergentes no conflito ucraniano, o Brasil e os
Estados Unidos mantêm uma boa relação. Mas, reforça Christopher
Sabatini, terá de haver um “equilíbrio difícil” na diplomacia dos dois
países no que concerne à guerra da Ucrânia, para não afetar “a histórica
aliança” que mantêm.
Lula tenta recuperar confiança perdida do Ocidente
Embora
tendo noção de que os Estados Unidos e a União Europeia nunca vão
hostilizar por completo o Brasil, Lula da Silva não está completamente
satisfeito com as críticas do Ocidente. A insatisfação dos EUA e da UE
coloca em causa o que defendeu no discurso de vitória das últimas
eleições, em que prometeu que o “Brasil estava de volta ao mundo”, numa
clara alusão aos quatro anos de isolamento internacional promovido pelo
governo de Jair Bolsonaro.
De
acordo com Christopher Sabatini, a presidência brasileira está mesmo a
tentar “recuperar a ambição e o perfil” da política externa brasileira,
apostando na neutralidade e no reforço da relevância do Brasil na cena
internacional. Ao mesmo tempo, a nova Administração brasileira quer
virar costas à herança de Bolsonaro, que seguia uma agenda
“anticomunista e antisocialista”, alinhando-se com líderes como o antigo
Presidente dos EUA, Donald Trump, ou o primeiro-ministro da Hungria,
Viktor Órban.
Ficar
mal visto aos olhos do Ocidente não agrada, por isso, à presidência
brasileira. E, depois de as suas declarações serem interpretadas como um
ataque ao eixo Bruxelas-Washington, Lula da Silva clarificou, na
terça-feira, a sua posição, garantindo que condena a “violação
territorial” da Ucrânia — uma ideia que se aproxima (e aproxima o
Brasil) do Ocidente. Mas a equipa que o acompanha terá traçado um plano
ainda mais ambicioso para tentar suavizar ainda mais as críticas.
A
deslocação de Lula da Silva a Lisboa e a Madrid, entre o final desta
semana e o início da próxima, poderá ser já uma estratégia para que o
Ocidente acredite que Lula da Silva não está alinhado com a Rússia e a
China. Mas não é a única iniciativa diplomática para ensaiar uma
reaproximação do Ocidente. De acordo com o que a CNN Brasil
apurou junto de fontes do governo, o Presidente brasileiro deverá
participar na coroação do Rei Carlos III, em Londres, tendo esse
objetivo em mente.
Além
disso, o Chefe de Estado brasileiro deverá aceitar o convite para
participar, enquanto convidado, na próxima cimeira do G7 (que inclui as
sete economias mais fortes do mundo que se assumem enquanto aliados da
Ucrânia — Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão, Reino
Unido e União Europeia), que se realizará em meados de maio, em
Hiroshima, no Japão.
Durante
o encontro em Hiroshima, revelaram fontes do governo à CNN Brasil, Lula
da Silva tentará tranquilizar os líderes ocidentais da sua posição
sobre a guerra na Ucrânia, insistindo na importância da paz e
apresentando-se como um mediador credível — e não alinhado com a Rússia
ou com a China.
Estes
encontros planeados mostram que Lula da Silva vai continuar a adaptar o
discurso conforme o interlocutor, jogando em vários tabuleiros e
procurando nunca hostilizar diretamente nenhuma potência. Tornar o
Brasil uma voz importante no seio da comunidade internacional após os
quatro anos de isolamento do antecessor parece ser o principal objetivo
do Presidente brasileiro. Resta saber se, ao tentar agradar gregos e
troianos, o líder do Brasil não vai acabar por perder a confiança de
alguns dos seus principais parceiros.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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