Nélio Jacob
Na passagem de mais um 31 de Março, aniversário do golpe militar de 1964, vale a pena recordar este artigo escrito em 2004 pelo excelente jornalista e historiador Carlos Chagas, na antiga Tribuna da Imprensa, quando se completaram 40 anos do movimento que implantou uma ditadura no país, que durou 21 anos.
Chagas era um dos jornalistas que mais sabiam sobre golpe de 1964 e os meandros da ditadura, por ter sido testemunha de como tudo se passou.
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AS REFORMAS DE BASE E O GOLPE DE 1964
Carlos Chagas
Tribuna da Imprensa
De vez em quando é bom mergulhar no passado, quando nada para não repetir erros. porque sempre nos dirá o que evitar. Em 1964, vivia o Brasil uma situação de crise iminente. Depois da entusiástica reação nacional ao golpe , em 1961, liderada por Leonel Brizola, entramos em 1964 sob a égide da conflagração.
O então presidente João Goulart tivera sua posse assegurada e governava, por força da resistência do cunhado, então governador do Rio Grande do Sul, e logo depois se tornou o deputado federal mais votado da história do país, eleito pela Guanabara
GOLPE CONTRA JANGO – O problema maior estava na permanência ativa das forças que tentaram rasgar a Constituição e permaneciam no mesmo objetivo. Uns adversários, pela humilhação da derrota, outros por interesse; estes ingênuos, aqueles infensos a qualquer reformas sociais – todos se fortaleciam sob a perigosa tolerância de Goulart.
Conspirações germinavam sob a batuta do Ipes, singelo Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais, na verdade um milionário centro de desestabilização do governo trabalhista, erigido em cima de milhões de dólares.
Sua chefia era exercida pelo general Golbery do Coutto e Silva, na reserva arregimentando políticos, governadores, prefeitos, militares, fazendeiros, empresários aos montes, classe média e até operários e estudantes.
VÁRIOS TENTÁCULOS – O polvo tinha vários tentáculos como o CCC (Comando de Caça aos comunistas), o MAC (Movimento Anticomunista), a Camde (Campanha da Mulher pela Democracia), o Ibad (Instituo Brasileiro de Ação Democrática) e outros, todos bem subsidiados e que agiam nas ruas.
Claro que a maioria da imprensa dava cobertura a essas atividades, sempre escondidas sob a defesa da democracia “ameaçadas pelas Reformas de Base pretendidas pelo governo comunista de João Goulart”.
Publicidade e dinheiro vivo não faltavam, além, é claro, das inclinações dos barões da mídia.
REAÇÃO SOCIALISTA – Do outro lado, organizavam-se as forças que imaginavam que o Brasil estava marchado para o socialismo, especialmente o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), a Frente Nacionalista, o Grupo dos Onze, as Ligas Camponesas e outras associações.
Depois da ridícula experiência parlamentarista, o presidente retomara, através de um plebiscito, a plenitude de seus poderes,
Diante da resistência de o Congresso votar as reformas, Jango decidiu promovê-las ” na marra”. Abriu perigosamente o leque, em vez de realizá-las de per si, uma a uma.
MUITAS REFORMAS – Ao mesmo tempo, Jango pregava a reforma agrária pela a desapropriação de terras por títulos da dívida pública, a reforma bancária, com a estatização do sistema financeiro; a reforma educacional, com o fim do ensino privado; e a reforma urbana, para os proprietários não mais manterem casas e apartamentos fechados, sem alugar por preços menores.
Havia também a reforma da saúde, pela criação de um laboratório estatal capaz de produzir remédios baratos; a reforma da remessas de lucros, limitando o fluxo de dólares que as multinacionais enviavam para às suas matrizes; a reforma das empresas, impondo a participação dos empregados no lucro do patrões e a cogestão; e a reforma eleitoral, concedendo o voto aos analfabetos, ao soldados e cabos, entre outras.
Entram em cena o embaixador americano Lincoln Gordon, o general Wernon Walters e o cabo Anselmo dos Santos. Contava-se até, como piada, , haver um túnel secreto ligando as instalações do Ipes à embaixada dos EUA , no Rio.
PRESSÃO DOS EUA – Verdade ou mentira, os americanos estavam enfiados até o pescoço na conspiração, por meio do embaixador Lincoln Gordon e do adido militar. coronel Wernon Walters, antigo oficial de ligação do exército americano com as Força Expedicionária Brasileira, na Itália.
Linguista exímio, sabendo falar até mesmo o português do Brasil e o de Portugal, tornara-se amigo dos majores e coronéis que lutaram na Itália, agora generais importantes, E em grande parte conspiradores.
A estratégia principal era impedir as reformas de base e deixar o governo Goulart exaurir-se, desmoralizado, até o final do mandato. Mas tudo mudou quando o presidente deixou-se envolver por outra reforma. a militar.
QUEBRA DE HIERARQUIA – Partindo de um inexplicável artigo da Constituição que limitava a possibilidade dos sargentos se candidatarem postos eletivos, bem como as dificuldades pela Marinha para organização sindical dos subalternos, tudo transbordou. Pregava a quebra da hierarquia entre os militares.
Acusada de estar criando um soviete, a Associação do Marinheiros e Fuzileiro rebelou-se, instalando-se na sede do Sindicato dos Metalúrgicos do Rio de Janeiro. Mais de mil marinheiros e fuzileiros recusaram-se a voltar a seus navios e quarteis, tendo o governo preferido a conciliação em vez da punição.
A ironia estava em que o chefe da revolta , o cabo Anselmo, o mais inflamado dos insurretos, era um agente provocador a serviço do golpe. Quanto mais gasolina no fogo, melhor.
COMÍCIOS POPULARES – Justificava-se isso a decisão de Goulart realizar monumentais comícios populares, onde assinaria por decreto, as reformas negadas pelos deputados e senadores.
Mas só fez um deles, na sexta-feira 13 de março, no Rio, quando desapropriou terras ao longo das rodovias e ferrovias federais, encampando também as refinarias particulares de petróleo.
Naquela noite, na Central do Brasil. e ironicamente diante do prédio do Ministério da Guerra. discursaram revolucionariamente os principais líderes de esquerda: José Serra, presidente da União Nacional dos Estudantes, Dante Pellacani, dirigente do CGT, Miguel Arraes, governador de Pernambuco, Leonel Brizola, deputado federal, e outros.
DISCURSO HISTÓRICO – Cada orador sentia necessidade de ir além do que pregara seu o antecessor. Quando chegou a vez do presidente Goulart, não lhe restou alternativa senão superar os companheiros.
Fez um discurso que os historiadores precisam resgatar. Uma espécie de grito de revolta diante das elites, com a pregação da independência para os humildes e explorados,
O desfecho estava próximo. demonstrando que, do lado de cá do planeta, enquanto a esquerda faz barulho, a direita age.
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