BLOG ORLANDO TAMBOSI
Os primeiros passos do governo Lula sinalizam que ideologia e conveniência política falarão mais alto que a competência para resolver a criminalidade no país. Artigo de José Vicente da Silva Filho para a revista Crusoé:
Pouca
gente sabe mas, ao passar a faixa presidencial a Lula, em 2003,
Fernando Henrique Cardoso disse ao seu substituto: “Eu consegui acabar
com a inflação e deixo para você cuidar da violência no país“. Essa
história me foi contada pelo próprio FHC, em um evento na Universidade
Harvard.
Tardiamente,
no ano 2000, FHC tinha formulado e iniciado a implantação do Plano
Nacional da Segurança Pública, um conjunto de boas ideias que foi
descontinuado em 2003. O Instituto Cidadania, entidade vinculada ao PT,
tinha produzido ao longo de 2001 um conjunto de propostas, transformadas
no Projeto Segurança Pública para o Brasil, para um eventual governo do
PT, já que Lula se preparava para a candidatura presidencial. Ao
apresentar esse projeto em fevereiro de 2002 Lula fez a seguinte
referência:
“O
país mergulhou na insegurança e no medo. Ninguém está protegido contra a
violência. O problema ocupa o centro das preocupações de todos nós e
atravessa a sociedade de alto a baixo…documento aqui sintetizado contém
um profundo diagnóstico sobre o problema e uma série de propostas
concretas, consistentes e plenamente viáveis para serem implantadas já
no curto prazo.”
Era
só retórica para o distinto público em tempos de eleição. Em um de seus
primeiros decretos no início de 2003, Lula reduziu de 92 para 59 os
cargos da vital Secretaria Nacional da Segurança Pública, enquanto
criava 236 cargos para a Secretaria Especial da Pesca, com status de
ministério.
Nada
estruturante e duradouro foi produzido para alterar a situação da
segurança pública no país, com exceção da aprovação da Lei 10.826 de 22
de dezembro de 2003, batizada de Estatuto do Desarmamento. A proposta
vinha tramitando desde o governo FHC e teve impacto na evolução dos
homicídios no país. A ideia principal era a criação de um sistema único
de segurança pública (SUSP) para integrar os três níveis de governo.
Municípios, estados e a estrutura federal seriam coordenados para um
conjunto de ações de maior alcance preventivo. Mas as tentativas
canhestras de intelectuais com influências ideológicas, o desapreço
atávico do PT por assuntos policiais e a forte autonomia dos
governadores no comando das polícias anularam os potenciais avanços.
No
segundo mandato de Lula, entrou no Ministério da Justiça o político
Tarso Genro. Ele tinha um forte comprometimento ideológico e montou um
projeto tipicamente de esquerda, alinhado ao pensamento de que a
violência seria decorrência direta de fatores como a pobreza, a
desigualdade e a exclusão social. Com essa premissa, o sistema de
Justiça criminal – polícia, Ministério Público, Judiciário e setor
prisional – foi colocado de lado para enfatizar programas e ações
sociais destinados a agir sobre as “raízes sócio-culturais do crime”,
como afirmou Tarso Genro ao lançar o Programa de Segurança Pública com
Cidadania, o Pronasci, em 2007. Será que depois do SUSP do primeiro
mandato, o Pronasci, do segundo, funcionaria? Ao ser lançado o ministro
disse que o objetivo era chegar a 2017 com 12 assassinatos por 100 mil
habitantes, como taxa nacional. Um fracasso: a taxa foi de 27,8 mortes
em 2017, 130% maior.
Tarso Genro: atrás das “raízes sócio-culturais do crime”
O
tumultuado governo de Dilma Rousseff nada fez de relevante no campo da
segurança pública, exemplificando o distanciamento dos governos de
esquerda das medidas de intervenção efetiva na realidade, apesar dos
discursos habituais de seus colaboradores progressistas. A entrada de
Michel Temer na Presidência, em 2016, marcou uma significativa alteração
no sistema de governança da segurança, com a edição da lei do Sistema
Único da Segurança Pública, em 2018. Ao rever o conceito do SUSP do
primeiro governo de Lula, criou um modelo de governança federal da
segurança pública para coordenar a eficiência de um sistema complexo de
polícias, Judiciário, Legislativo e outros participantes, como as
prefeituras. Para isso, criou o Ministério da Segurança Pública e
montou, com o auxílio de estudiosos e especialistas, o Plano Nacional de
Segurança Pública, que estruturou importantes instrumentos para
melhorar a desigual segurança do país. O plano, baixado por decreto
ainda em vigor, foi descontinuado ao término da gestão de seu mandato.
Jair
Bolsonaro, ao assumir a presidência em 2019 nomeou o ex-juiz Sergio
Moro para o Ministério da Justiça, incluindo na pasta a segurança
pública, compondo sua equipe com policiais federais e oficiais do
Exército. Todos tinham escasso entendimento da segurança pública, uma
área de competência de policiais estaduais, que não foram convidados. O
resultado, dois ministros depois, foi abaixo de pífio. Bolsonaro não
cansou de mostrar apreço às polícias, especialmente aos “irmãos de
armas” das polícias militares, e tentou ajuste na legislação para evitar
embaraços ao uso excessivo da força pelos policiais em suas ações. Mas a
mais marcante decisão do governo Bolsonaro na segurança foi a liberação
– e põe liberação nisso – da aquisição de armas e munições, sob a
justificativa do direito à autodefesa. Estimam-se 2 milhões de armas,
inclusive de combate, adquiridas durante seu governo, principalmente
para categorias sem relevância social, os atiradores esportivos,
caçadores proibidos de caçar e colecionadores. Certamente uma medida que
irá piorar a segurança pública. O recuo das taxas de homicídios em sua
gestão não teve relação com suas ações de governo, mas com a mudança
demográfica, que vai tornando o Brasil um país menos jovem, e com a ação
de alguns governos estaduais.
Com
Lula preparando-se para assumir o seu terceiro mandato, é preciso
questionar se a segurança pública terá um tratamento diferente do que
recebeu em governos petistas anteriores. Haverá uma preocupação maior em
reduzir a violência e a variada gama de crimes que aflige os cidadãos?
Será melhor desta vez, contrariando a deficiência dos 14 anos de gestão
petista na segurança, que produziu o assassinato de 696.753 pessoas, um
genocídio majoritariamente de jovens e pobres? Se o argumento da
tranquilidade da sociedade não for convincente, que tal abordar o
problema pelo lado econômico? A violência também tem custo, além da
perda de vidas e do enorme sofrimento humano. O Ipea calculou em 2019
que o custo da violência equivaleria a 5,9% do PIB, cerca de 500 bilhões
de reais neste ano, ou 2 trilhões ao longo do próximo mandato de Lula. É
um valor que fura o teto do compromisso político com direitos
fundamentais cuidados pela segurança pública, a começar pelo direito à
vida.
Mas
quais seriam os planos do Lula III para a segurança pública? Ao assumir
o governo, em 2003, havia um projeto para a segurança pública,
longamente trabalhado por comissões temáticas. Agora, só há o afogadilho
da equipe da transição e a forte influência dos ex-governadores
progressistas do Nordeste alinhados a Lula, como Jaques Wagner e Rui
Costa da Bahia, Camilo Santana do Ceará, Paulo Câmara de Pernambuco,
Flávio Dino do Maranhão.
Como
ficou a região Nordeste no teste de governos progressistas no setor da
segurança pública? Se seus políticos influenciarem a política nacional
para essa área, será um desastre. Só nos dois últimos mandatos, Bahia e
Ceará acumularam mais de 80 mil assassinatos. São Paulo, com o dobro das
populações somadas desses estados, não chegou a 32 mil. A taxa de
mortes por 100 mil habitantes do Nordeste (35,5) é mais que o dobro da
taxa do Sudeste (13,4) e do Sul (16,4).
Policiais civis em SP: baixa taxa de homicídios
A
pretensão de se criar um ministério próprio para dar conta da
complexidade dos problemas da segurança logo subiu no telhado. O próximo
ministro da Justiça, Flávio Dino, batalhou e ganhou o ministério
turbinado, com justiça e segurança. Com um bilionário conjunto de
recursos de fácil concessão — Fundo Nacional de Segurança Pública e
Fundo Penitenciário Nacional — o ministro pode azeitar políticas com os
governadores e prefeitos, e isso conta pontos na corrida da sucessão
presidencial que começa já no dia 1º de janeiro.
Esperava-se
algum expert para cuidar da importante área da segurança pública, mas
não se ouve falar dos verdadeiros experts – especialistas com
conhecimento e experiência – no setor de segurança pública que são os
profissionais das polícias estaduais. Ou mesmo dos reconhecidos
especialistas que pesquisam temas da segurança há décadas. Flávio Dino
preferiu o alinhamento ideológico, nomeando um especialista em
comunicação para o posto 2 do ministério e uma política petista para
coordenadora do Pronasci. Pronasci? Alguma coisa está muito errada nessa
largada da segurança pública no novo governo Lula, pois o Pronasci de
2007 foi praticamente substituído pelo Sistema Único de Segurança
Pública, SUSP, implantado por lei em 2018, com um bom e detalhado Plano
Nacional de Segurança Pública, baixado por decreto do presidente Temer.
Será que esse plano de Temer vai entrar no revogaço geral do novo
governo? E o que será colocado no lugar? Pelo visto, o futuro governo
não tem a menor ideia.
Os
primeiros movimentos do governo Lula, através do seu futuro ministro da
Justiça e Segurança Pública, sinalizam que ideologia e conveniência
política falarão mais alto que a competência para resolver os dramáticos
problemas do setor da segurança. Pode-se apostar as fichas que a
segurança pública do Brasil continuará a ser, pela direita ou pela
esquerda, a tragédia de sempre.
José
Vicente da Silva Filho é coronel reformado e professor do Centro de
Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo. Foi
secretário nacional de Segurança Pública no governo FHC e consultor do
Banco Mundial. É membro do conselho da Escola de Segurança
Multidimensional do Instituto de Relações Internacionais da USP. Também é
mestre em psicologia social pela USP.
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