MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 25 de dezembro de 2022

Segurança pública: da direita para a esquerda.

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI


Os primeiros passos do governo Lula sinalizam que ideologia e conveniência política falarão mais alto que a competência para resolver a criminalidade no país. Artigo de José Vicente da Silva Filho para a revista Crusoé:


Pouca gente sabe mas, ao passar a faixa presidencial a Lula, em 2003, Fernando Henrique Cardoso disse ao seu substituto: “Eu consegui acabar com a inflação e deixo para você cuidar da violência no país“. Essa história me foi contada pelo próprio FHC, em um evento na Universidade Harvard.

Tardiamente, no ano 2000, FHC tinha formulado e iniciado a implantação do Plano Nacional da Segurança Pública, um conjunto de boas ideias que foi descontinuado em 2003. O Instituto Cidadania, entidade vinculada ao PT, tinha produzido ao longo de 2001 um conjunto de propostas, transformadas no Projeto Segurança Pública para o Brasil, para um eventual governo do PT, já que Lula se preparava para a candidatura presidencial. Ao apresentar esse projeto em fevereiro de 2002 Lula fez a seguinte referência:

“O país mergulhou na insegurança e no medo. Ninguém está protegido contra a violência. O problema ocupa o centro das preocupações de todos nós e atravessa a sociedade de alto a baixo…documento aqui sintetizado contém um profundo diagnóstico sobre o problema e uma série de propostas concretas, consistentes e plenamente viáveis para serem implantadas já no curto prazo.”

Era só retórica para o distinto público em tempos de eleição. Em um de seus primeiros decretos no início de 2003, Lula reduziu de 92 para 59 os cargos da vital Secretaria Nacional da Segurança Pública, enquanto criava 236 cargos para a Secretaria Especial da Pesca, com status de ministério.

Nada estruturante e duradouro foi produzido para alterar a situação da segurança pública no país, com exceção da aprovação da Lei 10.826 de 22 de dezembro de 2003, batizada de Estatuto do Desarmamento. A proposta vinha tramitando desde o governo FHC e teve impacto na evolução dos homicídios no país. A ideia principal era a criação de um sistema único de segurança pública (SUSP) para integrar os três níveis de governo. Municípios, estados e a estrutura federal seriam coordenados para um conjunto de ações de maior alcance preventivo. Mas as tentativas canhestras de intelectuais com influências ideológicas, o desapreço atávico do PT por assuntos policiais e a forte autonomia dos governadores no comando das polícias anularam os potenciais avanços.

No segundo mandato de Lula, entrou no Ministério da Justiça o político Tarso Genro. Ele tinha um forte comprometimento ideológico e montou um projeto tipicamente de esquerda, alinhado ao pensamento de que a violência seria decorrência direta de fatores como a pobreza, a desigualdade e a exclusão social. Com essa premissa, o sistema de Justiça criminal – polícia, Ministério Público, Judiciário e setor prisional – foi colocado de lado para enfatizar programas e ações sociais destinados a agir sobre as “raízes sócio-culturais do crime”, como afirmou Tarso Genro ao lançar o Programa de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci, em 2007. Será que depois do SUSP do primeiro mandato, o Pronasci, do segundo, funcionaria? Ao ser lançado o ministro disse que o objetivo era chegar a 2017 com 12 assassinatos por 100 mil habitantes, como taxa nacional. Um fracasso: a taxa foi de 27,8 mortes em 2017, 130% maior.


Tarso Genro: atrás das “raízes sócio-culturais do crime”

O tumultuado governo de Dilma Rousseff nada fez de relevante no campo da segurança pública, exemplificando o distanciamento dos governos de esquerda das medidas de intervenção efetiva na realidade, apesar dos discursos habituais de seus colaboradores progressistas. A entrada de Michel Temer na Presidência, em 2016, marcou uma significativa alteração no sistema de governança da segurança, com a edição da lei do Sistema Único da Segurança Pública, em 2018. Ao rever o conceito do SUSP do primeiro governo de Lula, criou um modelo de governança federal da segurança pública para coordenar a eficiência de um sistema complexo de polícias, Judiciário, Legislativo e outros participantes, como as prefeituras. Para isso, criou o Ministério da Segurança Pública e montou, com o auxílio de estudiosos e especialistas, o Plano Nacional de Segurança Pública, que estruturou importantes instrumentos para melhorar a desigual segurança do país. O plano, baixado por decreto ainda em vigor, foi descontinuado ao término da gestão de seu mandato.

Jair Bolsonaro, ao assumir a presidência em 2019 nomeou o ex-juiz Sergio Moro para o Ministério da Justiça, incluindo na pasta a segurança pública, compondo sua equipe com policiais federais e oficiais do Exército. Todos tinham escasso entendimento da segurança pública, uma área de competência de policiais estaduais, que não foram convidados. O resultado, dois ministros depois, foi abaixo de pífio. Bolsonaro não cansou de mostrar apreço às polícias, especialmente aos “irmãos de armas” das polícias militares, e tentou ajuste na legislação para evitar embaraços ao uso excessivo da força pelos policiais em suas ações. Mas a mais marcante decisão do governo Bolsonaro na segurança foi a liberação – e põe liberação nisso – da aquisição de armas e munições, sob a justificativa do direito à autodefesa. Estimam-se 2 milhões de armas, inclusive de combate, adquiridas durante seu governo, principalmente para categorias sem relevância social, os atiradores esportivos, caçadores proibidos de caçar e colecionadores. Certamente uma medida que irá piorar a segurança pública. O recuo das taxas de homicídios em sua gestão não teve relação com suas ações de governo, mas com a mudança demográfica, que vai tornando o Brasil um país menos jovem, e com a ação de alguns governos estaduais.

Com Lula preparando-se para assumir o seu terceiro mandato, é preciso questionar se a segurança pública terá um tratamento diferente do que recebeu em governos petistas anteriores. Haverá uma preocupação maior em reduzir a violência e a variada gama de crimes que aflige os cidadãos? Será melhor desta vez, contrariando a deficiência dos 14 anos de gestão petista na segurança, que produziu o assassinato de 696.753 pessoas, um genocídio majoritariamente de jovens e pobres? Se o argumento da tranquilidade da sociedade não for convincente, que tal abordar o problema pelo lado econômico? A violência também tem custo, além da perda de vidas e do enorme sofrimento humano. O Ipea calculou em 2019 que o custo da violência equivaleria a 5,9% do PIB, cerca de 500 bilhões de reais neste ano, ou 2 trilhões ao longo do próximo mandato de Lula. É um valor que fura o teto do compromisso político com direitos fundamentais cuidados pela segurança pública, a começar pelo direito à vida.

Mas quais seriam os planos do Lula III para a segurança pública? Ao assumir o governo, em 2003, havia um projeto para a segurança pública, longamente trabalhado por comissões temáticas. Agora, só há o afogadilho da equipe da transição e a forte influência dos ex-governadores progressistas do Nordeste alinhados a Lula, como Jaques Wagner e Rui Costa da Bahia, Camilo Santana do Ceará, Paulo Câmara de Pernambuco, Flávio Dino do Maranhão.

Como ficou a região Nordeste no teste de governos progressistas no setor da segurança pública? Se seus políticos influenciarem a política nacional para essa área, será um desastre. Só nos dois últimos mandatos, Bahia e Ceará acumularam mais de 80 mil assassinatos. São Paulo, com o dobro das populações somadas desses estados, não chegou a 32 mil. A taxa de mortes por 100 mil habitantes do Nordeste (35,5) é mais que o dobro da taxa do Sudeste (13,4) e do Sul (16,4).


Policiais civis em SP: baixa taxa de homicídios

A pretensão de se criar um ministério próprio para dar conta da complexidade dos problemas da segurança logo subiu no telhado. O próximo ministro da Justiça, Flávio Dino, batalhou e ganhou o ministério turbinado, com justiça e segurança. Com um bilionário conjunto de recursos de fácil concessão — Fundo Nacional de Segurança Pública e Fundo Penitenciário Nacional — o ministro pode azeitar políticas com os governadores e prefeitos, e isso conta pontos na corrida da sucessão presidencial que começa já no dia 1º de janeiro.

Esperava-se algum expert para cuidar da importante área da segurança pública, mas não se ouve falar dos verdadeiros experts – especialistas com conhecimento e experiência – no setor de segurança pública que são os profissionais das polícias estaduais. Ou mesmo dos reconhecidos especialistas que pesquisam temas da segurança há décadas. Flávio Dino preferiu o alinhamento ideológico, nomeando um especialista em comunicação para o posto 2 do ministério e uma política petista para coordenadora do Pronasci. Pronasci? Alguma coisa está muito errada nessa largada da segurança pública no novo governo Lula, pois o Pronasci de 2007 foi praticamente substituído pelo Sistema Único de Segurança Pública, SUSP, implantado por lei em 2018, com um bom e detalhado Plano Nacional de Segurança Pública, baixado por decreto do presidente Temer. Será que esse plano de Temer vai entrar no revogaço geral do novo governo? E o que será colocado no lugar? Pelo visto, o futuro governo não tem a menor ideia.

Os primeiros movimentos do governo Lula, através do seu futuro ministro da Justiça e Segurança Pública, sinalizam que ideologia e conveniência política falarão mais alto que a competência para resolver os dramáticos problemas do setor da segurança. Pode-se apostar as fichas que a segurança pública do Brasil continuará a ser, pela direita ou pela esquerda, a tragédia de sempre.

José Vicente da Silva Filho é coronel reformado e professor do Centro de Altos Estudos de Segurança da Polícia Militar de São Paulo. Foi secretário nacional de Segurança Pública no governo FHC e consultor do Banco Mundial. É membro do conselho da Escola de Segurança Multidimensional do Instituto de Relações Internacionais da USP. Também é mestre em psicologia social pela USP.

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