Terceira parte: a sociedade portuguesa.
Como o salazarismo foi a face política da hierarquia social
A
primeira pergunta que se faz em relação à ditadura salazarista tem a
ver com a sua longa duração. Salazar foi chefe do governo durante 36
anos. Hoje, em democracia, é algo inimaginável. É como se, em 2012,
Mário Soares tivesse sido primeiro-ministro ininterruptamente desde
1976. Como é óbvio, a primeira explicação está na ditadura. Outros
autocratas, aliás, conseguiram no século XX longos períodos de poder: em
Espanha, o general Francisco Franco chefiou o governo durante 39 anos,
entre 1936 e 1975; em Cuba, o ditador comunista Fidel Castro manteve-se
no poder quase cinquenta anos, entre 1959 e 2008, e só o deixou para ser
dinasticamente sucedido pelo seu irmão mais novo.
A
compressão da vida pública, através da censura à imprensa e do
banimento de qualquer oposição, facilitou esses longos domínios
políticos. Mas a repressão nem sempre foi suficiente para manter
ditaduras. Viu-se, por exemplo, na Europa de leste em 1989 ou durante a
“Primavera” Árabe em 2011: em ambos os casos, ditaduras muito mais
brutais do que a de Salazar caíram perante mudanças das relações
internacionais, dificuldades económicas e grandes manifestações
populares. É preciso, por isso, examinar outro aspecto da ditadura
salazarista: a sua relação com a sociedade portuguesa.
O
salazarismo assentou sempre na ditadura. Essa ditadura pareceu por
vezes “moderada”, porque, como explicou Manuel de Lucena, era
meticulosamente “preventiva”. O Estado Novo era, como Salazar gostava de
dizer, um regime suficientemente “forte” para não precisar de ser
violento. Todos em Portugal estavam à mercê do poder. Num país pequeno e
pobre, com um Estado centralizado e dirigista e uma sociedade civil
fraca, não era difícil fomentar o respeito pelos “poderes constituídos”
sem grandes dispêndios repressivos. Até porque Salazar não se propôs
fundar, como outros ditadores, uma nova sociedade, sem classes sociais
ou racialmente pura.
Salazar
pôde assim aproveitar o efeito disciplinador tradicional da Igreja, do
Estado e das hierarquias estabelecidas, que a repressão política
respeitou. Como lembrou um inspector da PIDE, que serviu também na GNR,
as grandes sevícias a que assistiu não aconteceram na PIDE, mas nos
postos rurais da GNR. A pior violência não recaiu sobre estudantes de
Direito por motivos políticos, mas, como em outros regimes portugueses,
antes e depois do Estado Novo, sobre gente pobre.
Muita
gente colaborou, independentemente das suas preferências ideológicas. É
verdade que a decisão do regime de se manter pela força fazia dele a
via única para quem queria exercer influência ou fazer carreira, fosse
na política, na administração, na magistratura ou nas forças armadas.
Mas com a guerra civil de Espanha (1936-1939) ao lado, e depois a II
Guerra Mundial (1939-1945) em todo o continente, Salazar pareceu a muita
gente, até entre a oposição de esquerda, preferível a outras
alternativas.
Em
1940, com a França derrotada, a Inglaterra isolada, e a União Soviética
colaborando com Hitler, alguns dos antigos republicanos de esquerda
chegaram a propor um pacto a Salazar. Até aos militantes comunistas
presos na “colónia penal” do Tarrafal, em Cabo Verde, ocorreu a mesma
coisa. Em 1945-1949, a quantidade de militantes oposicionistas afastados
do professorado universitário, se revela a intolerância desses anos do
pós-guerra, mostra também as acomodações que tinham sido possíveis nos
anos anteriores.
Não
por acaso, o Estado Novo proporcionou pessoal a todos os partidos da
nova democracia depois de 1974. Até o V Governo Provisório de Vasco
Gonçalves, em Agosto de 1975, teve direito a um representante do Estado
Novo, na pessoa do professor José Joaquim Teixeira Ribeiro,
vice-primeiro ministro e antigo teórico do corporativismo salazarista.
Salazar não ignorava as preferências políticas do pessoal que o rodeava.
Sobre o ministro Duarte Pacheco, comentou na década de 1960 a Franco
Nogueira: “Bastante das esquerdas, mas como tinha grande ambição de
poder, adaptou-se com facilidade”. Tudo isso permitiu a Marcello
Caetano, quando lhe deu jeito na década de 1950, insistir na ideia da
heterogeneidade das “correntes políticas” dentro do Estado Novo: haveria
de tudo no regime – “liberais” e “nacionalistas”, “republicanos” e
“monárquicos” – todos abrigados debaixo de uma liderança salazarista
caracterizada pelo “eclectismo e empirismo” (na sua correspondência,
Salazar também usa “eclectismo” para definir o regime).
Hoje,
a quem vive numa democracia, a ditadura de Salazar pode afigurar-se
monstruosa. Mas o salazarismo conseguiu parecer, em vários épocas,
simplesmente a organização das elites sociais e intelectuais portuguesas
– baseadas numa administração autocrática e centralizada, secundada
pela Igreja Católica e pelas Forças Armadas, e na subalternização
política da população, já praticada por todos os regimes anteriores –
para administrar e desenvolver o país.
A
ditadura tentou e pôde parecer um regime de notáveis, onde o poder
pertencia aos mais educados e de boas famílias, e correspondia à
hierarquia de mérito técnico e de prestígio social, num sistema em que
se cooptavam entre si. A União Nacional servia para manter actualizadas
as listas de notáveis destinados a preencher os imensos lugares de
nomeação governamental na administração (presidentes de câmara, de
juntas de freguesia), na justiça, e na rede corporativa (Grémios, Casas
do Povo, etc.).
Perante
a classe dirigente, estava uma sociedade ainda não industrializada e
pouco escolarizada, muito segmentada entre regiões e entre actividades,
onde só as classes médias estavam mais ou menos unificadas pelo ensino, e
onde a Igreja Católica era a única organização de massas. Em 1960, os
trabalhadores manuais ainda constituíam 71,2% da população activa
(trabalhadores agrícolas eram 41,1% e os trabalhadores industriais,
31,3%). A classe média alta representava 11,4% e a classe média baixa,
15,5%. Era nestas classes médias que se recrutava a elite do
salazarismo.
Salazar
pôde assim esperar que não se visse em Portugal, como “noutros países”
era “evidente”, uma “separação entre a classe governante e a sociedade
em geral”. Isto é, a elite política da ditadura era também a elite
social do país. Durante a I República, isso não fora claro. É verdade
que os líderes do Partido Republicano Português (PRP) também tinham
vindo das classes médias, e dispunham das credenciais académicas que se
haviam tornado requerimentos do poder político. Mas a sua hostilidade ao
catolicismo, num país católico, e a recusa da “boa sociedade” de lhes
reconhecer qualquer autoridade, tinham feito deles uma espécie de
intrusos.
Ao
contrário dos líderes do PRP, os salazaristas conseguiram durante
bastante tempo fazer o seu poder parecer simplesmente a face política da
hierarquia social. Por isso, a atitude da maioria população foi, como
talvez se pudesse esperar, menos a de resistência, e mais a da
“clientelização”: perante aqueles que tinha sido habituada a ver como os
seus superiores naturais – pelos seus patrimónios e genealogias, pelas
suas qualificações académicas e recursos intelectuais, ou pelas posições
ocupadas em instituições –, tratou de arranjar contactos e explorar
relações para obter protecção e conseguir favores. Até em relação à
polícia política, como recentemente sugeriu o historiador Duncan
Simpson, fez isso.
Na
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Miguel Tavares sobre o homem que mais vidas salvou em toda a História,
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