BLOG ORLANDO TAMBOSI
Muitas vezes não sabemos lidar com o sofrimento, com as derrotas da vida, com nossos próprios erros. E com isso deixamos de aprender. Fernando Schüler para a Veja:
O
ano vai terminando, tem o novo governo, a melancolia do pessoal que
perdeu, tem o verão abrindo seus braços. E muita coisa para pensar
nesses dias em que cada um faz o seu balanço. Então resolvi fazer uma
pergunta à simpática moça do café, no bar da faculdade: sobre o que eu
deveria escrever na minha primeira crônica do ano? Ela não pensou muito:
“Sobre a felicidade, professor, não tem coisa mais importante”. A
resposta me pareceu evidente. Não que o debate político não seja
importante. Mas, o.k., talvez seja uma boa hora para dar um tempo.
Topei.
Há
muitas teorias sobre a felicidade. Angus Deaton e Daniel Kahneman
trabalharam com uma montanha de dados e chegaram a uma interessante
conclusão: a partir de um ganho anual de 75 000 dólares, na média, não
há acréscimos significativos da felicidade, entendida como “bem-estar
subjetivo”. Tentei traduzir em termos brasileiros. Significa o seguinte:
você ganha mal, mas vai progredindo. Cresce na empresa ou abre um
negócio, e vai subindo. Em tese, sua felicidade vai aumentando. Algum
conforto, viagens, condições de dar uma boa vida à família. Quando chega
a 25 000 ou 30 000, a coisa estabiliza. Você não começa a entristecer,
não se preocupe. Só não há um ganho de felicidade apenas pelo fato de
você continuar engordando a sua conta bancária todos os meses.
Há
muitas explicações para isso. Uma delas é dada por Steven Pinker e se
chama “esteira hedônica”. As pessoas tendem a se adaptar ao progresso. E
as pessoas comparam. De modo que alguém pode melhorar de vida, mas se
os demais melhoram um pouco mais isso pode, ao menos em tese, reduzir
seu grau de contentamento. Pinker provoca dizendo que seria a maior
piada chegarmos à conclusão de que o “grande enriquecimento”, de que
fala Deirdre McCloskey, que multiplicou a renda e mais do que duplicou a
expectativa de vida no último século, não acrescentou nada muito
verificável à felicidade humana. Na verdade, acrescentou. O ponto é que o
ganho material faz apenas uma parte do serviço. Ele nos leva do térreo a
um andar intermediário, como sugeriram Kahneman e Deaton, mas a vida é
como um daqueles edifícios gigantes de Camboriú. Para chegar aos andares
mais altos, é preciso trocar o segredo. Substituir a busca da
felicidade pela produção do sentido. Trocar a obsessão do bem-estar pela
aventura da realização humana. E aí as coisas se complicam um pouco.
Quem
formulou isso bem foi Contardo Calligaris. Lembro de um texto dele
dizendo: a questão não é tanto ser feliz, mas viver uma vida
interessante. Uma vida que envolva risco e incerteza. E algum
sofrimento. E infinitas trocas entre a satisfação, no curto prazo, e a
realização de coisas maiores logo ali à frente. Jordan Peterson foi na
mesma batida. Ele busca a imagem do yin e yang, do tao chinês. Vê ali a
tensão entre o caos e a ordem. O caos como “aquelas coisas que não
conhecemos nem entendemos”; a ordem como “os trens que partem na hora, o
lugar em que o comportamento do mundo se iguala às nossas
expectativas”. Ambos podendo ser ótimos, mas também desesperadores.
Nossa melhor alternativa, diz, é percorrer o caminho estreito entre
esses dois universos. Uma tarefa nada trivial. Diria a “grande tarefa”
que não pode ser delegada e que só pode ser feita por tentativa e erro.
Algo que ele recomenda que as pessoas façam “de cabeça erguida, com as
costas eretas e os ombros para trás”. Seu ponto me pareceu o mesmo do
Contardo. A felicidade não tem fórmula e possivelmente seja o alvo
errado. O desafio é o significado. O tipo de “caráter”, diz Jordan, que
forjamos diante do sofrimento. E, para isso, algumas grandes histórias
do passado podem nos ajudar.
Todos
temos nossas histórias preferidas. Escolhi duas. Uma delas fala sobre o
caos: é a história de Oscar Wilde. Ele era o grande dramaturgo irlandês
e a celebridade mais vistosa do mundo cultural londrino naquele fim de
século XIX. Em um dado momento, foi condenado por sua relação com Bosie,
o jovem aristocrata, numa época em que a homossexualidade era crime.
Terminou na prisão de Reading, posto para empurrar a roda de um moinho,
como um animal. Ele vai ao fundo do inferno, e em um momento ele ensaia
uma virada. Ela vem na forma de uma longa e dolorida carta a Bosie: o De
Profundis. Ele não acreditava na justiça de sua condenação, e tinha a
consciência do absurdo que vivia. Era esse o sentimento insuportável. Se
vivemos vidas absurdas, malogramos no único ponto em que não poderíamos
malograr: a incapacidade de viver uma vida que faça sentido. Foi aí que
Wilde decidiu domar o caos. Reconheceu a própria perda de controle, sua
relação doentia com Bosie, a vergonha de Constance, sua arrogância no
tribunal, a perda dos filhos. Tudo isso parecia oferecer um estranho
sentido a sua punição. Ele aceita, então, o seu destino, e de algum modo
reconhece que mesmo a prisão de Reading era uma decorrência da vida que
ele próprio decidiu viver. E que agora, em meio ao abandono e ao
sofrimento, lhe abria novas possibilidades. A partir daí ele é o herói
de Jordan Peterson e pode, reconciliado consigo mesmo, seguir em frente.
A
segunda história diz respeito à ordem. E sobre como ela pode nos
esmagar. Seu herói é Nietzsche, que havia lido Montaigne logo após o
Festival de Bayreuth, em 1876, andava com a saúde abalada, cansado da
vida universitária, na Basileia, e recebe o convite sedutor de Malwida
von Meysenbug para passar o inverno em Sorrento, na costa do
Mediterrâneo. O convite era para formar uma pequena comunidade
filosófica, que ele vê como a chance de “tirar umas férias da própria
vida”. Ele topa. Troca uma posição razoavelmente estável, que envolvia
uma posição, na instituição, pela vida incerta do pensador errante. A
partir daí, ele também é o herói de Jordan Peterson. Aquele que decide
“barganhar com o tempo”. Isto é, trocar a segurança de hoje pela
incerteza e sua “potência”. Nietzsche, de certo modo, ganhou sua aposta.
Foi o seu próprio profeta Zaratustra, que viria muitos anos depois, e
aceitou o risco de caminhar em uma “corda estendida sobre um abismo”.
Com isso se tornou Nietzsche. Em seu primeiro entardecer em Nápoles, diz
lhe ter escapado uma lágrima “por ter começado a vida sendo velho”, e
porque soube salvar a si mesmo, “no último instante”.
Wilde
e Nietzsche não são modelos para nada. Hoje eles são heróis de nossa
cultura, mas no momento dessas histórias estavam na pior. Nietzsche
doente, exaurido da vida acadêmica; Wilde no quinto dos infernos. Talvez
por isso suas histórias nos dizem algumas coisas. Dizem que muitas
vezes não sabemos lidar com o sofrimento, com as derrotas da vida, com
nossos próprios erros. E com isso deixamos de aprender. E que em outros
momentos simplesmente afundamos lentamente pelo medo de arriscar um
pouco na corda bamba. No fundo é disso que é feito o herói de Jordan
Peterson. O herói democrático, que qualquer um pode encarnar. Aquele que
não transfere. Que simplesmente assume o risco da decisão e aceita suas
consequências. Que anda nesse território incerto que é a vida com as
“costas eretas e os ombros para trás”. O melhor jeito, não tenho
dúvidas, que temos para encarar este 2023 novinho em folha que temos
pela frente.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 4 de janeiro de 2023, edição nº 2822
Postado há 6 hours ago por Orlando Tambosi
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