2022 pode ser contado como o ano em que a democracia liberal manifestou sinais vitais e as autocracias expuseram suas patologias. Editorial do Estadão:
Autocratas
ao redor do mundo esmeram-se em alardear uma versão às avessas da tese
de Francis Fukuyama de que não há alternativa séria à democracia
liberal. O “liberalismo” seria só a mal disfarçada fachada de um
individualismo niilista, e a “democracia”, um sistema decisório
disfuncional e conflitivo. Antes que a apoteose da democracia liberal, o
século 21 revelaria sua natureza caótica e seu destino decadente.
O
próprio Ocidente abasteceu as máquinas de propaganda autocráticas.
Intelectuais multiplicam lamentos pela “morte da democracia”; políticos
flertam com o autoritarismo – à direita, com o reacionarismo
nacionalista de Vladimir Putin; à esquerda, com a tecnocracia
centralizadora do “modelo chinês”.
De
fato, indicadores da vitalidade das democracias e das liberdades
fundamentais – como os da Freedom House, do V-Dem ou da Economist
Intelligence Unit – registram uma recessão na última década: o número de
democracias declinou; há menos pessoas vivendo em democracias; pessoas e
países têm menos liberdades; mais nações estão se autocratizando e mais
pessoas vivem sob regimes autoritários.
Mas
2022 pode ser contado como o ano em que a democracia liberal manifestou
sinais vitais e as autocracias expuseram suas patologias.
Na
França, o centrista Emmanuel Macron venceu a reacionária Marine Le Pen.
No Reino Unido, a rejeição ao amoralismo político de Boris Johnson e ao
voluntarismo econômico de Liz Truss vindicaram instituições
democráticas, como o Parlamento e o Tesouro, e os impactos econômicos do
Brexit estão derretendo o capital político dos “brexiteers”. Nos EUA, o
eleitorado impôs perdas ao trumpismo nas eleições de meio de mandato. A
agressão à Ucrânia uniu o Ocidente. A Otan ganhou um novo senso de
propósito e novos membros.
Enquanto
isso, a teocracia iraniana sofre há meses pressão das ruas. As
aventuras de Putin empobrecem e isolam ainda mais a Rússia e
desmoralizam o último legado da URSS, o seu poderio militar. Na China,
uma elite política paranoica e controladora submete a população a
políticas sanitárias draconianas e reverte a liberalização econômica que
garantiu décadas de crescimento e inovação.
Isso
não significa que os regimes autoritários não tenham condições de se
perpetuar no poder nem que o iliberalismo no Ocidente esteja com os dias
contados, como mostram os surtos populistas na Itália ou Israel e a
multiplicação de trincheiras protecionistas nas economias desenvolvidas.
O tempo dirá se 2022 foi um ano de inflexão das democracias liberais ou
só um sobressalto em uma trajetória de deterioração.
O
Brasil ilustra esse suspense. Na década passada, farto da degradação
econômica, política e moral promovida pela demagogia lulopetista, o povo
foi às ruas; o Judiciário escrutinou os crimes e o Parlamento depôs um
governo irresponsável. Mas a Justiça cometeu abusos, e humores
antipolíticos elevaram o populismo reacionário ao poder. Jair Bolsonaro
se elegeu como candidato antissistema, mas seu pior legado foi o
empoderamento do fisiologismo. Toda a sua truculência golpista, contudo,
não foi capaz de normatizar nenhuma distorção substancial das
instituições republicanas. O Judiciário cumpriu seu papel, a imprensa
resistiu a intimidações e o eleitorado lhe negou um novo mandato. Mas
não encontrou alternativa senão resgatar o lulopetismo, que agora
promete remediar os estragos de Bolsonaro com mais populismo fiscal,
enquanto a Suprema Corte lida com franjas antidemocráticas flertando com
novas arbitrariedades.
Há
200 anos ninguém gozava dos direitos democráticos que hoje abrigam
bilhões de pessoas. A democracia já passou por outras crises, nos anos
30 e depois nos anos 60 e 70 do século passado. Isso não significa que a
atual recessão seja só um ciclo “natural” e que a democracia esteja
predestinada a um inexorável triunfo. Mas a história mostra que as
populações foram capazes de reverter ondas autocráticas para governar a
si mesmas e ampliar suas liberdades, e podem fazê-lo de novo. Hoje as
batalhas são diferentes, as armas são novas, mas a guerra continua.
Postado há 6 hours ago por Orlando Tambosi
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