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Não são princípios confessionais, cristãos ou católicos, que estão em causa. Estão em causa princípios civilizacionais que fundam a ordem jurídica que nos rege. Pedro Vaz Patto para o Observador:
A
propósito do posicionamento, passado e futuro, do atual Presidente da
República perante a legalização da eutanásia e do suicídio assistido,
tem sido salientada a sua fé cristã católica, o contraste entre tal
legalização e a doutrina da Igreja Católica que ele professa, mas
também, de forma mais ou menos implícita, que não poderia ele guiar-se
por essa sua convicção pessoal, de índole confessional, num Estado laico
como o nosso e numa sociedade pluralista como a nossa.
Este
raciocínio justifica um esclarecimento. Não são princípios
confessionais, cristãos ou católicos, que estão em causa. Estão em causa
princípios civilizacionais que fundam a ordem jurídica que nos rege,
princípios partilhados por católicos, cristãos de outras denominações,
crentes de outras religiões e pessoas de convicções não religiosas.
É
certo que a doutrina da Igreja Católica é muito clara na rejeição da
legalização da eutanásia e do suicídio assistido. Mas fá-lo com
justificações que se baseiam na reta razão e no direito natural; assenta
essa rejeição nos princípios da inviolabilidade da vida humana (que a
Constituição portuguesa acolhe de forma lapidar no seu artigo 24.º) e na
dignidade dessa vida em todas as suas fases (dignidade que não se
perde, pois, com a doença ou a deficiência), princípios que não são,
obviamente, exclusivos da doutrina católica. Isso é evidente em todos os
documentos papais que abordam a questão, o mais autorizado e completo
dos quais será a encíclica de São João Paulo II Evangelium vitae. É
nessa ótica que se tem pronunciado, de forma recorrente, a Conferência
Episcopal portuguesa. E assim também as associações profissionais
católicas portuguesas, como na recente nota conjunta de juristas e
médicos A morte provocada continua a não ser resposta.
Vem
a propósito a forma como São Paulo VI, num discurso de 9 de dezembro de
1972, aos juristas católicos italianos, qualificou o valor da defesa da
vida humana: um valor que está «nas raízes da civilização não apenas
cristã, mas simplesmente e universalmente humana».
Um
eloquente testemunho de que não estão em causa nesta questão valores
exclusivos da doutrina católica, vemo-lo nas posições que em Portugal
vêm sendo assumidas por representantes de várias religiões (numa
iniciativa que tem algo de inédito entre nós e é, por isso, histórica).
São conhecidas as declarações do Grupo de Trabalho Interreligioso –
Religiões/Saúde, composto por representantes da Aliança Evangélica
Portuguesa, da Comunidade Hindu, da Comunidade Islâmica de Lisboa, da
Comunidade Israelita de Lisboa, da Igreja Católica, da Igreja de Jesus
Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), da Igreja Ortodoxa da
Sérvia, da União Budista Portuguesa e da União Portuguesa dos
Adventistas do Sétimo Dia. Em maio de 2018, desse Grupo surgiu a
declaração Cuidar até ao fim com compaixão. Recentemente, depois da
aprovação parlamentar da última versão do projeto de legalização da
eutanásia e do suicídio assistido, por tal Grupo foi reafirmada a
oposição a tal legalização; na base da convicção de que «a vida humana é
inviolável e indisponível» porque «é um dom de Deus», mas também
«porque é humana e, por isso, é digna»; sendo que a resposta ao
sofrimento dos doentes passa pelos cuidados paliativos, não pela morte
provocada.
Noutros
países também tem sido essa a posição de representantes de várias
religiões. Muito recentemente, em França, onde se discute a eventual
legalização da eutanásia e do suicídio assistido, no âmbito da, assim
designada, Convenção Cidadã sobre o Fim da Vida, foi essa a posição
assumida, por unanimidade, por representantes das maiores comunidades
religiosas desse país: cristãs (católica, protestante e ortodoxa),
muçulmana, judaica e budista (ver www.famillechrétienne,
19/12/2022). Todos eles salientaram como essa legalização quebra o
interdito de matar que tem sido partilhado por muitas sociedades e em
muitas épocas, interdito que é indispensável para uma convivência
pacífica. E salientaram também que essa legalização contraria o
princípio de que a dignidade da pessoa é a mesma em todas as fases da
vida, não se perde com a doença e mantêm-se mesmo quando a pessoa
experimenta uma sensação de perda desse dignidade. Também para esses
representantes de várias comunidades religiosas, a resposta a essas
situações de sofrimento passa pelos cuidados paliativos, não pela morte
provocada.
Não
se pense, porém, que estes valores da inviolabilidade da vida humana e
da sua igual dignidade em todas as suas fases são exclusivo de várias
religiões.
Desde
logo, porque a oposição à legalização da eutanásia e do suicídio
assistido tem sido a posição mais comum das ordens profissionais de
médicos e de enfermeiros, oposição baseada em ancestrais e estruturantes
normas deontológicas que não se confundem com alguma opção
confessional. É essa a posição atual da Ordem dos Médicos portugueses e
de todos os anteriores bastonários dessa Ordem, na linha da que continua
a ser posição da Associação Médica Mundial. É essa também a posição da
Ordem dos Enfermeiros portugueses.
A
propósito desta questão, várias vezes tenho evocado uma afirmação de um
conceituado intelectual italiano que com propriedade poderíamos
qualificar como “socialista, republicano e laico”: Norberto Bobbio. Essa
afirmação foi proferida a propósito da legalização do aborto, mas
poderá também reportar-se à legalização da eutanásia e do suicídio
assistido. É a seguinte: «Gostaria de perguntar porque é que será
surpreendente que um laico considere válido em sentido absoluto, como um
imperativo categórico, o “não matarás”. E, por outro lado, espanta-me
que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que
não se deve matar».
“O
privilégio e a honra “ de defender os valores da inviolabilidade da
vida humana e da sua igual dignidade em todas as suas fases não são,
pois, exclusivo de católicos, de cristãos ou de crentes de várias
religiões. Estão em jogo princípios civilizacionais que estão na base da
nossa ordem jurídica.
Por
tudo isto, o atual Presidente da República tem toda a legitimidade para
se guiar pelas suas convicções pessoais ao intervir no processo
legislativo relativo à eutanásia e suicídio assistido, convicções que
são conhecidas de quem o elegeu. Não tem, certamente, menos legitimidade
do que os deputados que aprovaram essa legalização, muitos dos quais
guiados por convicções pessoais desconhecidas de quem os elegeu. Não tem
menos legitimidade para se guiar por tais convicções nesta matéria do
que terá noutras de muito menor relevância sobre que muitas vezes toma
posição.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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