sábado, 1 de agosto de 2020
O STF quer editar o povo brasileiro
Onze indivíduos decidiram que 210 milhões de cidadãos estão sujeitos à obrigação de só tomar conhecimento daquilo que eles, os ministros do Supremo, decidem que é “verdade”. J. R. Guzzo, na edição da revista Oeste desta semana:
O Supremo Tribunal Federal é hoje o principal produtor do pensamento totalitário no Brasil. Como em geral acontece com forças políticas que, por uma causa ou por outra, adquirem a possibilidade de agir sem ter de respeitar nenhum limite, o STF passou rapidamente da ilegalidade para o disparate, e do disparate para o delírio — é onde estamos no momento. A má notícia, no caso, é que a elite pensante do Brasil, a mídia e os demais poderes da República aceitam essa degeneração do seu principal tribunal de Justiça com uma passividade sem precedentes na história nacional. A notícia pior é que vai continuar assim. Comportamentos de ditadura, como Roberto Campos dizia a respeito dos regimes “de esquerda”, não são biodegradáveis — quer dizer, não se desmancham naturalmente com o passar do tempo. Ao contrário: ditaduras, quando não encontram barreiras, ficam cada vez mais ditatoriais.
É o que está acontecendo na frente de todo o mundo, todos os dias, neste Brasil onde o STF deu a si próprio o direito de dizer que 2 + 2 são 22 — e onde é inconstitucional achar que são 4, porque quem diz que o certo é 22 são os ministros do STF, e, se eles estão dizendo que é assim, trate de calar a boca, obedecer e continuar pagando impostos. A Constituição, as “instituições” e a lógica são unicamente o que eles dizem que são — conversa encerrada. O STF só não revoga a tabuada, o ângulo reto ou o ovo frito porque os ministros não ganham nada com nenhuma dessas decisões; mas naquilo que eles consideram ser os seus interesses está valendo tudo. O resultado é que esse STF que está aí perdeu as características próprias da sua espécie biológica — a espécie das cortes de Justiça, cuja finalidade é fornecer aos cidadãos a segurança da lei. Já não se trata mais, a esta altura, de vinho que degenerou em vinagre. Agora é vinagre que está degenerando em veneno. Seu último surto de onipotência é a extraordinária pretensão de pensar, do ponto de vista legal, pelo povo brasileiro.
O portador dessa nova verdade é o presidente do STF, Antonio Dias Toffoli, que anunciou ao público, nesta última terça-feira, dia 28, que o tribunal decidiu (oficialmente, ao que parece), ser “o editor de um povo inteiro” — no caso, o povo do Brasil. Editor de um povo? Que raio quer dizer isso? Quer dizer o seguinte: é o STF quem decide as informações que você pode ou não pode receber. Toffoli estava tentando dar uma explicação para um dos empreendimentos mais inexplicáveis que o Supremo realiza no momento: o inquérito ilegal das “fake news”, que atribui a si mesmo a inédita ambição de só permitir que se diga “a verdade” em tudo o que aparece na internet. Como sempre acontece nesse tipo de tentativa, conseguiu elevar à potência N o que já é um desastre top de linha. Num português de ginásio, com sintaxe torturada, soluços entre verbo, sujeito e pronome, e compreensão confusa do vocabulário, Toffoli disse que o STF está violando a liberdade de expressão, conforme mostram os fatos objetivos do inquérito, porque tem de “dirimir conflitos”, como numa “briga de marido e mulher”. Heinnnnnn?
Não se alarme se você não entendeu, porque é duro mesmo de entender. O que o ministro quer dizer é que o Supremo tem o direito e o dever de proibir que um cidadão diga isso ou aquilo nas redes sociais quando achar que é mentira — afinal, alguém tem de resolver se alguma coisa é mentira ou verdade neste país, não é mesmo? Então: esse alguém, segundo Toffoli, é o STF. Não cabe ao público julgar por si mesmo o que é publicado na internet — e acreditar ou não naquilo que leu, viu ou ouviu. Quem tem de fazer isso por ele são os ministros. É a coisa mais normal do mundo, pelo que se pode deduzir do manifesto que o presidente da nossa Suprema Corte lançou sobre a questão. Seguem-se, exatamente como foram ditas, as palavras de Toffoli. Não é a Revista Oeste que está dizendo nada disso — é ele mesmo. Vamos lá.
“Todo órgão de imprensa tem censura interna”, informa o ministro. “Em que sentido? O seu acionista ou o seu editor, se ele verifica ali uma matéria que não deve ir ao ar porque ela não é correta, ela não está devidamente checada, ele diz: ‘Não vai ao ar’. Aí o jornalista dele diz: ‘Mas eu tenho a liberdade de expressão de colocar isso ao ar?’ Entendeu? Não é à toa que todas as empresas de comunicação têm códigos de ética, códigos de conduta, de compromisso. Nós, enquanto Judiciário, enquanto Suprema Corte, somos editores de um país inteiro, de uma nação inteira, de um povo inteiro.” Segue-se uma salada mista com a história da “briga de marido e mulher”, a informação de que o juiz tem de “editar” os conflitos, a necessidade de fazer a “interpretação jurisprudencial hermenêutica” e coisas tão espantosas quanto essas. É cômico, mas não ajuda a entender coisa nenhuma. Melhor ficar por aqui mesmo.
Não é fácil encontrar tanto despropósito junto num espaço tão curto de sentenças. Toffoli acha que um órgão de imprensa, um ente da vida privada, é a mesma coisa que uma vara ou tribunal de Justiça. Um jornal, ou qualquer veículo de informação (ou “plataforma”, como se diz hoje), publica ou não publica o que acha que deve, como lhe assegura a lei; não obriga ninguém a fazer nada, ao contrário de uma decisão judicial, que tem de ser obedecida por todos. Nem vale a pena perder mais tempo com raciocínios que não seriam aprovados numa boa prova do Enem. O que importa é o tóxico de primeira grandeza que está contido na ambição de “editar um povo inteiro” — ou seja, de proibir ou de permitir o que as pessoas devem ler, ver ou ouvir nos meios de comunicação digitais. Tem de ser assim porque os onze indivíduos que despacham no STF decidiram que os 210 milhões de brasileiros, a partir de agora, estão sujeitos à obrigação de só tomar conhecimento daquilo que eles, ministros, decidem que é “verdade”. Talvez nem a Alemanha de Hitler tenha se metido a tanto. Tinha até um Ministério da Propaganda, que entrou na história como um grande clássico da depravação política universal, e uma polícia secreta que podia prender e matar quem o governo considerava subversivo. Mas, tanto quanto se saiba, nunca teve a ideia de dar ao professor Joseph Goebbels, um dos principais símbolos da alma nazista, o papel de “editor” do “povo inteiro” da Alemanha.
O pronunciamento do Supremo sobre a verdade, como se poderia esperar, veio logo depois do mais recente acesso de censura por parte do ministro Alexandre de Moraes e de seu inquérito anticonstitucional. Em mais uma violação direta ao que está escrito no artigo 5º da Constituição Federal — “é livre a manifestação do pensamento” — ele mandou bloquear 16 contas de aliados do presidente Jair Bolsonaro no Twitter e 12 perfis do Facebook, com multa diária de R$ 20 mil reais para as empresas que operam esses serviços, caso não obedecessem imediatamente ao seu decreto. Quando alguém tenta acessar um dos punidos, encontra o seguinte aviso: “Conta retida”. Segue-se, em inglês mesmo — que nenhum cidadão brasileiro é obrigado legalmente a entender —, a frase: “Account has been withheld in Brazil in response to a legal demand”. Ou seja, as contas e perfis estão suspensos em consequência de questões legais. Se isso não é censura, então o que é?
Nada está certo nessa aberração. É como na doutrina jurídica da “árvore envenenada”, tão importante no direito dos Estados Unidos — se uma árvore produz veneno, todos os seus frutos são venenosos. É simples. Se a polícia violou a lei ao obter uma prova qualquer, todas as acusações vão para o lixo. Um inquérito ilegal só pode produzir ilegalidades; em qualquer sociedade democrática do mundo as decisões do ministro Moraes já estariam sumariamente anuladas. A Constituição, no entender do direito público das sociedades livres, existe unicamente para defender a população das agressões que possa vir a sofrer por parte do Estado. No Brasil, o STF está fazendo justamente o contrário: os ministros usam a Constituição para defender a si próprios dos cidadãos de quem discordam.
Millôr Fernandes, numa das melhores definições já feitas até hoje de um regime político, diz que o comunismo é o contrário do trabalho dos alfaiates. Na hora da prova, se o terno não ficou bom, o alfaiate faz os ajustes na roupa. O comunismo faz os ajustes no cliente. É o nosso STF, exatamente: ajusta as pessoas ao Brasil que existe nas suas cabeças e nos seus desejos.
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