sábado, 1 de agosto de 2020
O Estado Islâmico da Turquia
Reconvertida em mesquita, a Santa Sofia passa a representar um país islamizado, autoritário e hostil ao Ocidente. Texto de Bruno Garschagen para a Oeste:
Reconverter em mesquita a histórica Basílica cristã de Santa Sofia (Hagia Sophia), localizada em Istambul, é parte do processo de instauração de uma teocracia nacionalista e autoritária na Turquia levada a cabo pelo presidente Recep Tayyip Erdogan.
A bela e imponente edificação, construída em 537 pelo imperador romano Justiniano I, foi a maior igreja cristã do Império Bizantino até 1453, quando os otomanos ocuparam Constantinopla, mudaram o nome da cidade para Istambul e transformaram o local numa mesquita muçulmana.
Assim foi até 1934, ano em que passou a funcionar como museu por ordem do presidente Mustafa Kemal Atatürk, fundador da república turca após a independência do Império Otomano, personagem político fundamental na construção da Turquia contemporânea e na separação entre Islã e Estado. Desde a ascensão política de Erdogan em 2003 como primeiro-ministro, entretanto, o legado de Atatürk vem sendo destruído.
Presidente eleito pela primeira vez em 2014, a tentativa de golpe que sofreu em 2016 tem servido como justificativa para Erdogan concentrar mais poderes, violar liberdades, calar a imprensa, prender opositores, dissuadir qualquer oposição, governar o país com mão de ferro e restituir o Islã na política.
Visitei Istambul em 2008 a convite da Associação de Amizade Luso-Turca. Fui com um grupo formado por jornalistas portugueses. Conheci diversos locais históricos e a redação do maior jornal do país, o Today’s Zaman. Tive reuniões com famílias turcas, com empresários, jornalistas, intelectuais, escritores. Naquele ano, a Turquia vivia certa normalidade institucional, reformas políticas e econômicas estavam em andamento e havia a expectativa de o país ser aceito na União Europeia.
Fiquei encantado com as pessoas, com a comida, com a cidade, tanto do lado ocidental quanto do lado asiático, onde conheci um bairro em que, no passado, igreja católica, sinagoga e mesquita eram vizinhas de muro. A Basílica de Santa Sofia foi uma das construções mais belas em que já pus os pés (e os olhos). Lá dentro havia turistas de várias partes do mundo, pessoas de nenhum e de vários credos.
Regressei a Portugal maravilhado com o que vi, mas sabedor de que a aparente normalidade institucional a que me referi só era possível graças aos militares, que serviam como obstáculo a uma teocracia na Turquia. A liberdade de expressão também era precária e opiniões críticas ao regime poderiam causar sérios problemas aos seus autores, segundo me alertaram os jornalistas e escritores com quem conversei.
E aqui reside um aspecto importante: o advento da república turca e as profundas reformas realizadas por Atatürk de cima para baixo, com base na sua visão de uma Turquia secularizada e ocidentalizada, não modificou a cultura religiosa e política do país fundada no Islã. A separação entre religião e Estado só perdurou pelo temor de uma reação militar, pois o Exército turco ainda se vê como guardião do legado do antigo líder. Com a ascensão política de Erdogan, representante da ala nacionalista-teocrática, o que não era sólido se desmanchou no ar. Isso explica a tentativa de golpe por militares em 2016. Mas o fracasso do levante fortaleceu o presidente e o projeto de submeter o Estado ao Islã.
Em 2015, aliás, a situação na Turquia já estava complicada. No lançamento do meu primeiro livro em São Paulo, reencontrei o colega turco que, em 2008, nos levou a Istambul. Ele me disse que, naquele momento, nossa viagem seria impossível de ser realizada. Meses depois dessa conversa, o editor-chefe da versão em inglês do jornal Zaman, o Today’s Zaman, Bülent Kenes, foi preso na redação do jornal por fazer críticas a Erdogan no Twitter. Em 2014, o editor-chefe do Zaman, Ekrem Dumanli, já havia sido preso.
A sanha de Erdogan contra a imprensa começou em 2013 quando foram publicadas denúncias de corrupção contra membros de seu governo. O presidente conseguia na Justiça, que já estava a seu serviço, a prisão de jornalistas que o criticavam sob a acusação de disseminação de propaganda terrorista e de abusos da liberdade de expressão.
Kenes não foi o primeiro nem o último jornalista a ser preso naquilo que foi chamado de “zelo despótico” por sua substituta, a jornalista Sevgi Akarcesme, num artigo publicado em 10 de março de 2016. No texto, ela fazia sérias objeções ao governo, que já havia conseguido assumir judicialmente o controle do jornal, e dizia que aquele talvez fosse seu último artigo como editora. O temor do que lhe poderia acontecer levou a jornalista a fugir para Bruxelas e, depois, a se exilar nos Estados Unidos. E, no dia 30 de março, foi anunciado o novo editor-chefe do Zaman: Kenan Kiran, que era diretor de redação do jornal pró-governo Yeni Akit.
O novo ataque contra as liberdades foi desferido na última quarta-feira, dia 29. O Legislativo turco aprovou uma lei que permite ao governo controlar o conteúdo publicado em redes sociais. Empresas como Youtube, Facebook e Twitter serão obrigadas a abrir escritórios no país somente para, em até 48 horas, bloquear ou remover conteúdo considerado ofensivo pelo governo. Caso não o façam, serão penalizadas, inclusive com multas de mais de US$ 700 mil. A lei passa a vigorar em 1º de outubro.
Desde 2019, segundo reportagem do The New York Times, as autoridades turcas conseguiram bloquear o acesso a mais de 400 mil sites, excluir 40 mil posts no Twitter, remover 10 mil vídeos no Youtube e retirar 6,2 mil posts no Facebook. Quando estive em Istambul em 2008, não era possível acessar o Youtube.
À Europa também cabe parte da culpa pelo que está acontecendo na Turquia. Durante anos, a União Europeia ludibriou os turcos com exigências de reformas baseadas na promessa, nunca cumprida, de entrada no bloco europeu. Aos olhos de um povo majoritariamente muçulmano, o processo de secularização e de reformas talvez tenha representado tão somente um rebaixamento intolerável diante de um Ocidente considerado moralmente degradado. O mesmo Ocidente que tem se deixado rebaixar pelos seus inimigos internos.
Num artigo publicado em 2009 na revista Azure [https://bit.ly/33av9Jp], ao analisar a relação entre o Ocidente e o Islã, Roger Scruton afirmou que os ocidentais estavam “à beira de um perigoso período de concessão, em que as conquistas legítimas de nossa própria cultura e herança serão ignoradas ou subestimadas numa tentativa de provar nossas intenções pacíficas”.
Caracterizado pela ausência de “confiança em seu modo de vida” e pela falta de certeza a respeito das “exigências desse modo de vida”, o problema apontado pelo filósofo ganhava dimensão ainda mais sombria quando o Ocidente enfrentava um oponente, o islamismo, “que acredita que o modo de vida Ocidental é profundamente degradado e que talvez seja mesmo uma ofensa contra Deus”.
A secularização imposta por Atatürk era, aliás, um elemento frágil que — acreditava-se — poderia suprir o chão comum que faltava para estabelecer a confiança necessária à entrada da Turquia na União Europeia. Os europeus, entretanto, parecem que jamais confiaram no delicado arranjo institucional turco. E, se tivessem aceitado o país, enfrentariam um problema sério com o governo de Erdogan.
A reconversão da Basílica de Santa Sofia em mesquita é questão mais ampla do que parece: simboliza o que a Turquia se transformou sob Erdogan e a mensagem política que passa ao mundo. De complicada aliada geopolítica estratégica do Ocidente, outrora símbolo de país muçulmano que desenvolveu sua democracia, a Turquia vem se transformando numa unha encravada numa região delicada. Num editorial publicado na capa do jornal francês Le Figaro [https://bit.ly/3fd2HZx] em 24 de julho, o jornalista Patrick Saint-Paul foi enfático: Erdogan provocou uma divisão irreparável com o Ocidente. Pergunto-me: já não o tinha feito?
Uma das muitas questões políticas que se colocam é como serão firmadas alianças internacionais após a fase mais aguda dos efeitos negativos do novo coronavírus mundo afora. No momento posterior, de necessidade de recuperação econômica e de rearranjo geopolítico, o governo turco pode ser um parceiro importante ou um antagonista relevante.
Sendo museu, a Basílica de Santa Sofia era espaço ecumênico, de tolerância religiosa, que ligava o passado ao presente, que atraía visitantes pela história e pela beleza, imagem que a Turquia tentava projetar para si mesma internacionalmente. Reconvertida em mesquita, mesmo aberta a turistas, passa a representar um país islamizado, autoritário e hostil ao Ocidente: o Estado Islâmico da Turquia.
Bruno Garschagen é cientista político, mestre e doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Lisboa) e autor dos best-sellers Pare de Acreditar no Governo e Direitos Máximos, Deveres Mínimos (Editora
Record).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário