Nosso Leviatã funciona como uma espécie de Dr. Jekyll e Mr. Hyde. Fernando Schüler para a revista Veja:
“O
que você realizou na semana passada?”, perguntava o e-mail enviado pelo
Departamento de Eficiência Governamental, o Doge, liderado por Elon
Musk, a 2,3 milhões de funcionários públicos americanos. Musk informou
pelo X que quem não respondesse estaria “renunciando” à sua posição, e
foi desmentido por Trump. The Economist definiu o episódio como um sinal
de que “a reforma de Musk corre o risco de se transformar em farsa”.
Exagero. Mas é bom sinal do choque de culturas que uma reforma desse
tipo envolve. Há uma enormidade de gastos bizarros sendo cortada. Coisas
como os “2 milhões de dólares para mudança de sexo na Guatemala”. O
ponto é avaliar linha por linha do desembolso de cada agência do
governo. Não só o custo com a agenda ideológica, mas saber se há
computadores a mais do que o necessário ou treinamentos inúteis. Na
outra semana, li algumas críticas ao Doge dizendo que 40% dos contratos
cancelados por Musk não geravam redução de custo. Achei sugestivo.
Significa que 60% dos cortes geram economia? Raramente vi uma taxa de
sucesso como essa. É cedo para avaliar isso tudo, há uma opinião pública
dividida (49% apoiam os cortes do Doge; 44%, não), e reformas são
assim. Tendem a ser positivas para a economia ao longo do tempo, mas no
curto prazo ferem interesses bem localizados, por vezes minúsculos, como
um grupo de funcionários que precisa voltar ao trabalho presencial. Ou
quem sabe responder a um e-mail. E por isso faz uma barulheira danada.
Não
me preocupo muito com Musk. Ele é o sujeito que fez o foguete dar
marcha a ré, a Tesla, e não duvido que, ao fim de tudo isso, deixará o
governo americano mais enxuto. Agora mesmo os republicanos aprovaram no
Congresso uma redução de mais de 4 trilhões de dólares em impostos, e
corte de 2 trilhões de dólares no gasto público na próxima década. O
caminho é claro: reduzir o custo do Estado para fazer crescer (ainda
mais) a competitividade do país. O que preocupa, nisso tudo, é nossa
inércia. Diria mais: nossa empáfia. Virou uma espécie de regra de
etiqueta fazer cara de deboche para os “excessos”, quando não o
“desastre”, da reforma americana. Pois digo: empáfia vazia, que escorre
por entre os dedos. Se observarmos o “índice de efetividade
governamental”, do Banco Mundial, temos que os EUA ocupam a 24ª posição,
um pouco acima da Alemanha. O Brasil amarga o 127º lugar, ao lado do
Peru. Resumo da ópera: podemos ficar por aqui brincando de xingar o Elon
Musk. Nós, os espertos, com nossa carga tributária quase 10 pontos do
PIB mais cara, e apenas um quarto da produtividade americana. Mas a
verdade é que somos nós, e não eles, que deveríamos estar preocupados em
fazer uma reforma estrutural na máquina estatal.
O
Brasil vai se convertendo em um imenso Leviatã assistencial. Caro,
ineficiente e gerador de dependência dos cidadãos ao Estado. Aumentamos o
Bolsa Família para uma média de 682 reais e nos orgulhamos com seus 21
milhões de beneficiários. O programa é necessário. Mas o que deveria nos
orgulhar é o número de brasileiros que alcançam sua emancipação,
vivendo do próprio trabalho. Agora criamos o Pé-de-Meia, que vai se
somando ao Auxílio Gás, ao Farmácia Popular, vamos generalizar o crédito
consignado com o FGTS
e dar isenção no IR para quem ganha até 5 000 reais. O governo
descobriu uma fórmula simples. Em vez de apostar na produtividade,
modernizar a economia, fazer reformas, o mais fácil é ir expandindo os
tentáculos do Estado. Sendo claro: o problema não são os programas de
transferência de renda. A questão é o modo como isso é feito.
Há
sustentabilidade fiscal para os programas? Eles são feitos à custa do
endividamento público? Geram perspectivas de emancipação das pessoas, ou
mais dependência? As respostas parecem evidentes. Apenas na atual
gestão, nossa dívida pública deve crescer acima de 12 pontos do PIB.
Isso somado à ausência de qualquer reforma crível na estrutura do gasto
público. Nosso Leviatã funciona como uma espécie de Dr. Jekyll e Mr.
Hyde. Médico e monstro. Não tanto pelo que ele faz, mas pelo que deixa
de fazer. O risco é o que costumo chamar de “armadilha argentina”. Isto
é: um Estado paternalista, que subsidia o gás, o transporte, o
combustível e o que mais se possa imaginar, sem cuidado fiscal. E pior:
sem porta de saída. O modelo é inviável, mas todos levam sua pequena
vantagem. E daí a armadilha. A Argentina viveu isso durante perto de
duas décadas, sob a batuta do peronismo. Até a chegada de Javier Milei e
sua motosserra.
Dias
atrás escutei uma amiga economista dizer que “não há muito o que cortar
no Brasil”. Sua visão era de que nossa carga tributária de 33% era uma
“escolha da sociedade”, e talvez com um aumento de mais 1,5%
resolveríamos o problema fiscal. Achei espantoso. O Brasil não apenas
gasta muito. É um país perdulário. Temos o Legislativo mais caro do
planeta, relativamente à renda média; nosso Judiciário custa 1,6% do
PIB, quatro vezes a média internacional, e mais de 42 000 funcionários
ganham acima do teto. Isso é apenas a ponta do iceberg. Na base, nossa
Previdência Social gerou um déficit de 416 bilhões de reais, ou 3,45% do
PIB, no ano passado. Isso em um país que, na canetada de um ministro,
reduz para 52 anos a idade para a aposentadoria de mulheres policiais. O
maior erro de minha amiga economista é acreditar que seja uma escolha
da sociedade. Quando nossos políticos decidem que mais de cinquenta
autoridades podem usar jatinhos da FAB, como uma espécie de Uber aéreo,
pago pelo contribuinte, ou que cada parlamentar tenha uma média de 80
milhões de reais em emendas para suas bases, ou ainda que precisamos
continuar sustentando estatais deficitárias, por gosto ideológico, o que
temos é um país tristemente vulnerável a grupos de pressão. Não deveria
ser assim.
O
Brasil já descobriu o caminho das pedras em termos de reformas. Fizemos
o novo marco do saneamento, e os investimentos vêm crescendo. Fizemos
as concessões de aeroportos, que melhoraram. Ainda nos anos 1990 abrimos
o mercado de telefonia, privatizamos empresas como a Embraer, que hoje
orgulham o país. Mas, por alguma razão, insistimos na lógica de
“aumentar impostos em mais 1,5% do PIB, se for a vontade da sociedade”.
Lógica de um país desigual, feito de mão de obra barata, vulnerável à
captura do Estado, que no fundo é confortável para uma vasta elite.
Ainda que isso custe caro para a imensa maioria. Maioria que até parece
estar ganhando com a expansão acelerada dos auxílios, gratuidades e
pequenos incentivos. Mas não está. O que ela faz é apenas ir bebendo, a
conta-gotas, o secreto veneno de nosso Leviatã assistencial: a
dependência dos cidadãos ao Estado. O sentido precisamente inverso do
caminho que, como país e como uma civilização, deveríamos seguir.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 28 de fevereiro de 2025, edição nº 2933
Postado há 1 hour ago por Orlando Tambosi
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