“As
desgraças tinham sido escondidas tão fundo que eu não encontrava a
possibilidade de arrancá-las sem sofrimento. A gente não conversava,
ninguém ali sabia usar a boca para exprimir sentimentos, pelo menos não
os sentimentos importantes”
Trecho de “As luzes de dois cérebros anárquicos”
Em sua estreia na literatura, a paulista Ana Barros apresenta ao público o romance “As luzes de dois cérebros anárquicos” (editora Paraquedas, 208 pág.),
um livro potente e sensível sobre a dinâmica emocional complexa da
perda de um familiar e os efeitos perversos da depressão e do Alzheimer
nesse contexto. A trama envolve três gerações de mulheres de uma mesma
família e inicia a partir da morte repentina de uma delas. As que
ficaram precisam lidar com o luto mas também com remorso, medo e culpa
que permearam as relações familiares. O livro foi viabilizado via
Programa de Ação Cultural (ProAC) 2023, iniciativa do governo do estado
de São Paulo.
A
trama tem como protagonistas, Virginia, Simone e Angela, mãe, filha e
neta, respectivamente. O enredo se desenvolve em duas linhas narrativas:
uma subjetiva, em primeira pessoa a partir do olhar da jovem, e a
objetiva, em terceira pessoa. Enquanto Angela discorre sobre os 8 dias
vividos após a morte da mãe, a outra narrativa evidencia episódios do
passado para explicar atitudes e comportamentos das personagens. As
perspectivas se alternam entre um capítulo e outro.
Para
a autora, a obra trata do encontro de duas mulheres, avó e neta, em
suas solidões, no momento em que suas vidas estão mudando. “Uma precisa
compreender a tristeza que existe dentro de si, e a outra revive
memórias do passado que invadem o seu dia a dia”, argumenta Ana, e
acrescenta: “As duas sofrem de doenças que atingem o cérebro, por isso o
livro traz à luz a experiência sufocante vivida por cada personagem,
que se assemelham e se distanciam em determinados pontos”.
Uma das qualidades de “As luzes de dois cérebros anárquicos”
está justamente em ilustrar de forma eloquente e delicada os desafios
de lidar com a depressão e o Alzheimer, enfermidades que afetam as
protagonistas da trama. “O esvaziamento do contato social e o
enclausuramento dos pensamentos e da própria personalidade está presente
em ambos os processos”, aponta a autora. Habilidosamente ela vai a cada
página descortinando os efeitos desses males no cotidiano de cada
personagem. O leitor é levado a acompanhar juntamente com cada uma delas
esse percurso que perpassa sentimentos e emoções intensas.
Ana
compõe cenas e diálogos fluidos sem que pareçam forçados ou
inverossímeis. As tramas que orbitam o enredo, como as relações
conflituosas entre mães e filhas, relacionamento abusivo, abandono
parental e machismo ganham destaque sem que uma sobreponha a outra
criando assim uma obra coesa e madura. A autora presenteia o público com
um romance que retrata de forma precisa as mazelas que caracterizam o
nosso tempo.
A escolha pela literatura
Ana
Barros é Especialista em Produção de Textos Literários, formada pelo
Instituto Vera Cruz (São Paulo) em 2022. Coordena e ministra oficinas de
escrita criativa e desde 2021 atua no Clube do Livro Contemporâneas,
iniciativa encabeçada pela autora e que busca estimular a leitura de
obras produzidas por escritoras brasileiras. A autora paulista também
está nas redes sociais (Instagram e YouTube) promovendo formação de mulheres escritoras.
Até
fazer a transição recentemente para o universo das letras a jovem atuou
numa área que converge com as artes, seu interesse desde o ensino
médio. Formada em Design de Moda trabalhou como freelancer em produção
de moda e styling, vendedora e assistente comercial. Em 2018 resolveu
migrar de carreira depois de participar de uma Oficina de Escrita
Criativa ministrada pelo vencedor do Prêmio Sesc de Literatura,
Alexandre Marques Rodrigues. “Ali minha percepção sobre criatividade
mudou e desde então busco aperfeiçoamento através de estudos na área de
escrita e gramática”, revela.
No
mesmo ano decidiu dedicar-se à escrita de um romance e realizar o sonho
de publicar um livro. Começa então a se desenhar o rascunho do que
futuramente seria “As luzes de dois cérebros anárquicos”.
Ana iniciou o processo dissertando sobre a vida de uma mulher que nunca
foi mas que poderia ter sido. “Começou com uma investigação interna e
uma série de questionamentos. Foi um processo solitário de construção,
escrita e estruturação”, explica. A primeira versão desta história ficou
pronta em 2020, no entanto, a autora não conseguiu viabilizar a
publicação.
Nos
anos seguintes aprimorou o texto e foi contemplada no ProAC, programa
de incentivo cultural. Com a verba realizou mentoria com a escritora
cearense Jarid Arraes. “Joguei fora as 220 páginas do livro que tinha
terminado de escrever em 2020 e recomecei o processo, desta vez a
escrita foi bem rápida e em 3 meses terminei o que seria a segunda
versão do romance”, relata.
Ainda
que a obra tenha levado quase seis anos entre os primeiros rascunhos e a
publicação, a autora admite que esse tempo a ensinou a ser paciente.
“Em 2018 queria que tudo acontecesse com rapidez, queria ser publicada,
queria ser conhecida”, conta, mas reconhece que a escrita tem um tempo
próprio para amadurecer. “Por muitas vezes senti que não conseguiria,
mas continuei, não desisti, hoje sinto que sou capaz de fazer tudo que
quero, graças a esses anos de trabalho”.
Confira um trecho do livro “As luzes de dois cérebros anárquicos” (pág. 162):
“Eu
não estava bem, fazia tempo que lutava contra esse veneno que corroía
minhas falas e vontades. Parecia que minhas retinas estavam embaçadas
por conta do suor que evaporou da pele para se precipitar em um choro
que não caía. Seca, afundei em mim mesma sem saber transformar emoções
em lágrimas. Esse embotamento transformou meus movimentos em algo
automático, como uma máquina que nunca desligava. A vida tinha me levado
para caminhos de retornos impossíveis. Porque, como eu, a maioria das
pessoas não tinham o privilégio de viver a Depressão em sua completude.
Eu tinha que engolir a angústia por mais um dia, sempre por mais um dia,
apenas um dia, e mais um e mais um, até explodir em mil pedacinhos como
aquela garrafa de Velho Barreiro”
Conheça mais sobre a autora Ana Barros:
https://anabarros.co/
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