BLOG ORLANDO TAMBOSI
O ateísmo não está contido na teoria da evolução, mas é uma de várias interpretações teológicas possíveis do que a teoria significa a respeito da natureza última do mundo. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Mais
de 165 anos depois de publicar suas ideias principais, “Gás” continua
atraindo grande interesse nas livrarias. Este era o apelido jocoso que o
naturalista inglês Charles Darwin recebeu na escola quando menino,
tanto dos colegas quanto do diretor, por seu grande interesse por
experimentos químicos (que às vezes liberavam gases) e ciência em geral.
O
belamente ilustrado volume “Darwin no Brasil”, publicado pela editora
Duas Aspas no ano passado, é uma das provas do interesse incansável pelo
evolucionista. O tradutor e organizador Pedro Alencastro fez o serviço
de colecionar as já conhecidas passagens do diário de Darwin quando o
cientista visitou Pernambuco, a Bahia e o Rio de Janeiro na década de
1830, na qualidade de naturalista a bordo do navio Beagle; e juntá-las a
mais menções ao Brasil (e outras localidades da América do Sul) no
resto de sua obra e correspondência.
O livro demonstra, para quem ainda duvidava, que “Gás” era sobretudo um grande curioso sobre os seres vivos; não, como alguns insistem, alguém em busca de estremecer crenças tradicionais sobre a origem do ser humano e seu lugar no Universo por motivações antirreligiosas, racistas (sua família era abolicionista há duas gerações) ou de alguma outra forma nocivas. Prova disso foi que Darwin esperou tanto para publicar a teoria da evolução que acabou tendo de compartilhar a autoria com o colega mais jovem Alfred Russel Wallace em 1858.
Outra
obra recente, On The Origin of Evolution (“Sobre a origem da evolução”,
em trad. livre, publicado em 2022 pela Prometheus, sem edição no
Brasil), do casal inglês John e Mary Gribbin, trata do longo
desenvolvimento da ideia da evolução desde as especulações do filósofo
grego Empédocles (~490-430 a.C.). Segundo o pensador de dois milênios e
meio atrás, os animais surgiram de uma seleção de afinidade entre órgãos
e partes de corpo que vagavam pelo caos e se encontravam ao acaso,
criando monstros “com face de homem e corpo bovino”, por exemplo, mas
também as espécies viáveis.
Como
é comum no ramo das leituras populares sobre o assunto, o casal Gribbin
diz provocativamente que era “difícil estabelecer uma teoria completa
da evolução até que os grilhões religiosos fossem descartados”.
Mas
a ideia segundo a qual o debate sobre a evolução e o parentesco entre
humanos e outros primatas se dividiu, por um lado, entre pessoas
pró-ciência menos inclinadas à fé e, por outro, pessoas religiosas
relutantes a aceitar fatos científicos é no mínimo uma simplificação
grosseira, como mostra a própria obra do casal inglês.
Exemplos históricos escapam aos estereótipos de ciência vs. religião
Em
1772, ofendido por um livro do aristocrata e diplomata francês Benoît
de Maillet (1656-1738) que sugeria que a Terra tinha bilhões de anos e
que o ser humano descendia de peixes, um famoso pensador replicou que o
autor era um “charlatão” que “queria imitar a Deus e criar um mundo com
as palavras”. O crítico era o iluminista Voltaire, que escreveu em uma
carta ao rei Frederico II da Prússia que o cristianismo “é com certeza a
religião mais ridícula, mais absurda e mais sangrenta que já infectou
este mundo”.
Voltaire
era deísta: acreditava em Deus, mas não na revelação (ou seja, não no
que as religiões dizem sobre Deus), uma posição comum entre seus pares
no século XVIII. O filósofo ilustra que nem toda pessoa de pensamento
minoritário em religião estava preparada para aceitar a evolução, embora
a versão que ele vira em Maillet pouco tivesse de científica.
Por
outro lado, muitos dos precursores de Darwin eram religiosos. O juiz e
linguista escocês James Burnett, mais conhecido como Lorde Monboddo
(1714-1799), dedicou-se a estudar a origem da linguagem estudando
línguas de nativos americanos, taitianos, do norte da Europa e do
Oriente Médio. A analogia da evolução das línguas com a evolução das
espécies foi sugerida pelo próprio Darwin mais tarde, que via órgãos
vestigiais (órgãos sem função hoje, mas que tiveram função no passado,
como dedos que se observam na região da pélvis de várias espécies de
cobra) como análogos às letras sobressalentes, não mais pronunciadas, em
palavras como “susceptível”.
O
que Monboddo concluiu de seus estudos linguísticos foi que a humanidade
tinha uma origem em um único local do planeta e de lá se espalhou para o
resto do mundo. Isso é corroborado hoje pela genética de populações, e o
local é a África. A origem única da humanidade está em conformidade com
a narrativa bíblica. Em sua principal obra, “Sobre a origem e progresso
da linguagem” (1774), ele afirma que “é dever de todo historiador
inculcar o valor primário da devoção” e chama de “infeliz” a opinião de
pessoas que pensam “que não existe Deus, ou que Sua providência não
supervisiona e dirige as questões do homem, além das operações da
natureza”. Ele sugere que os ateus se afastem do trabalho da
historiografia e se dediquem “à comédia”.
Onde
o lorde escocês se aproxima de Darwin, de forma surpreendente para um
defensor da fé, é em sua opinião sobre os macacos. Mais especificamente,
sobre o orangotango. Impressionado com a semelhança do primata com o
ser humano, Monboddo defendeu que o orangotango é um ser humano.
Seguidor de Aristóteles, ele repetiu na mesma obra a definição de homem
dos aristotélicos e se pôs a mostrar como este animal não poderia ficar
de fora do conceito.
“Penso
que não pode haver dúvida disso”, escreveu sobre o orangotango ser um
homem. “Pois não apenas ele tem a forma humana por dentro e por fora,
mas tem as particularidades (...) relacionadas à mente, ou o princípio
interno”. O juiz filósofo, que como Darwin também tinha noção prática da
variação dos animais de criação, chamou os grandes primatas de “irmãos”
de criação divina. Ele terminou ridicularizado pelo romancista Charles
Dickens na obra Martin Chuzzlewit, publicada 16 anos antes do Origem das
Espécies de Darwin.
A receita de conciliação entre a ciência e a fé religiosa, ou mais especificamente entre a narrativa do Gênesis e o que a ciência diz sobre a origem humana, já estava em Agostinho de Hipona, canonizado pela Igreja Católica em 1298. Escreveu Santo Agostinho, no livro V da obra De Genesi ad Litteram, escrita entre os anos 401 e 415:
“Supor
que Deus formou o homem a partir do pó com mãos corpóreas é muito
infantil... Deus não formou o homem com mãos corpóreas, nem soprou sobre
ele com garganta e lábios.”
Em
outras palavras, Agostinho fazia oposição ao literalismo bíblico 15
séculos atrás, preferindo interpretar o Gênesis como metáfora ou
alegoria da criação. Em outra passagem, o santo parece sugerir uma ideia
vaga de origem das espécies por um processo evolutivo:
“Na
[semente] está de forma invisível tudo o que há de se desenvolver em
árvore. E dessa mesma forma devemos imaginar [a origem do] mundo... Isso
inclui não apenas o Céu com o Sol, a Lua e as estrelas... também inclui
os seres que a água e a terra produziram em potência e em suas causas
antes que viessem a existir no curso do tempo.”
A extrapolação da teoria pelos ateus e a resposta dos teólogos
O
ateísmo não está contido na teoria da evolução, mas é uma de várias
interpretações teológicas possíveis do que a teoria significa a respeito
da natureza última do mundo. Ateus como o zoólogo britânico Richard
Dawkins argumentam que uma coisa se segue da outra. Em seu bestseller
“Deus, um delírio” (Cia das Letras, 2007), o cientista afirma que
postular um projetista inteligente para os seres vivos “faz emergir
imediatamente o problema maior de sua própria origem”. Para Dawkins,
“qualquer entidade capaz de projetar inteligentemente algo tão
improvável quanto a planta papo-de-peru (ou um universo) seria ainda
mais improvável que a papo-de-peru. Longe de terminar essa regressão
viciosa, Deus a intensifica”.
A
Gazeta do Povo conversou com especialistas na relação entre ciência e
fé a respeito do tema. “Infelizmente, Richard Dawkins não entende a
teologia cristã tradicional da criação”, disse Denis Alexander, diretor
emérito do Instituto Faraday de Ciência e Religião e membro emérito do
St. Edmund’s College na Universidade de Cambridge, Reino Unido. “Ou, se
ele entende, escolhe ignorá-la”.
Alexander
afirma que a teologia cristã acredita em Deus como “a Causa Primária de
tudo o que existe”, o que é muito diferente de “um ‘Deus projetista
inteligente’ que opera como um ‘mecânico celeste’ para projetar aspectos
específicos do mundo criado”. O problema da ideia do “mecânico
celeste”, diz o professor, é que leva “à ideia de Deus como um ‘Deus das
lacunas’, ou seja, que é usado para explicar aqueles aspectos do mundo
vivo que não entendemos muito bem no presente”. Para esse deus
“tapa-buracos”, Alexander diz que é ateu tanto quanto Dawkins. Mas não
quanto à Causa Primária, “a Mente por trás de tudo o que existe”.
“O
que nós cientistas investigamos são as Causas Secundárias que a Causa
Primária usa para suscitar a Sua vontade para o universo”, diz o
acadêmico, para quem a ciência só é possível porque este Criador
estabeleceu uma “regularidade nômica”, ou seja, as leis da natureza, e a
“integridade funcional” dos estudos dessas leis. “A biologia evolutiva
opera de acordo com sua própria regularidade nômica. É por isso que
cristãos e ateus podem compartilhar a mesma empreitada científica
maravilhosa — a ciência de ambos é idêntica”. Ele cita grandes nomes da
biologia que tinham fé, como Theodosius Dobzhansky, que trabalhou na
conciliação entre Darwin e a genética no começo do século XX.
Para
Alexander, faz tanto sentido perguntar quem criou a Causa Primária
quanto perguntar, analogamente, “se o número dois foi criado”. A maioria
dos matemáticos “acreditam que a matemática expressa uma realidade que é
independente das mentes humanas”, ou seja, há um número dois mesmo se
não houver mentes humanas para pensarem nele.
Para
Everthon de Souza Oliveira, doutor em engenharia e presidente da
Sociedade Brasileira de Cientistas Católicos, “Dawkins tenta fazer
filosofia a partir de sua prática científica” e que é evidente da
própria afirmação do zoólogo “que a ciência não é a chave de resposta
para muitas questões”. Oliveira não disputa a qualidade da teoria da
evolução para explicar a origem das espécies, mas “a tendência de
absolutizar uma teoria como explicação universal constitui uma forma de
ideologia, tão dependente de fé quanto qualquer religião”.
Tiago
Garros, biólogo e doutor em teologia com passagem pela Universidade de
Oxford, concorda com Alexander e Oliveira que “a crítica de Dawkins é
inócua e infantil” e que mostra que o zoólogo precisa estudar mais a
filosofia patrística, dos pais da Igreja. “Deus é por definição o
incriado, a explicação para todas as outras coisas que existem”, afirma.
A importância da pessoa de Darwin para a teoria e a teologia da teoria
Denis
Alexander diz que “Charles Darwin era um deísta durante a época em que
estava escrevendo o Origem das Espécies” (1859). O naturalista “percebia
Deus como a pessoa que criou as primeiras formas de vida, mas que havia
então se afastado de um envolvimento ativo em Sua criação”. A opinião
teológica do cientista vitoriano foi ela própria evoluindo com o tempo,
culminando em uma autodeclaração como “agnóstico”, termo cunhado por seu
fiel defensor, o escritor Thomas Henry Huxley, que defendeu a teoria
publicamente em um famoso debate contra o bispo Samuel Wilberforce.
“Mas
Darwin nunca foi ateu e sempre acreditou que sua teoria era compatível
com o teísmo cristão”, afirma o professor de Cambridge, onde Darwin
também estudou e que hoje tem um college que leva seu nome — uma entre
31 instituições de alojamento e estudos que começaram como mosteiros, os
mais antigos há mais de 800 anos.
“Não
penso que a perda de fé do próprio Darwin faça alguma diferença para a
apreciação e aceitação da teoria da evolução”, diz Alexander. “As razões
pelas quais ele perdeu sua fé cristã estavam concentradas em torno da
triste morte de dois de seus filhos quando ainda pequenos, não por causa
de sua ciência”.
Em
uma encíclica de 22 de outubro de 1996, o então Papa João Paulo II
afirmou que a evolução era “mais que uma hipótese”, resultante de “uma
série de descobertas em várias áreas do conhecimento” e uma convergência
de estudos “não procurada nem fabricada”. Alexander aponta que a
cobertura da imprensa na época transformou a afirmação do Papa em “mais
que uma teoria”, desfazendo a nuance do original. “Na ciência, as
teorias agem como mapas que juntam muitos tipos diferentes de dados e os
fazem coerentes”. Dessa forma, uma teoria é o máximo que o trabalho
científico pode entregar, enquanto uma hipótese, termo usado
corretamente pelo papa, é uma proposta mais especulativa, ainda em
teste. “As teorias podem se tornar mais fortes ou mais fracas com a
idade”, explica, “dependendo de como lidam com novos dados”. Desde
Darwin, a teoria da evolução se fortaleceu muito, englobando a genética e
os estudos de desenvolvimento embrionário.
O
bispo Wilberforce não era católico, mas anglicano. Em suas declarações
iniciais do debate de 30 de junho de 1860 em Oxford, ele perguntou
sarcasticamente a Huxley se ele era descendente de um macaco pelo lado
de sua avó ou de seu avô. Huxley, então um estudante de graduação,
respondeu que preferiria ser neto de um macaco que ter como ancestral
“um homem que, não satisfeito com seu sucesso em sua própria esfera de
atuação, se lança em questões científicas com as quais não tem a menor
familiaridade, só para obscurecê-las com retórica desgovernada e
distrair a atenção de seus ouvintes do real assunto em questão por
digressões eloquentes e apelos ardilosos ao preconceito religioso”.
Há
historiadores que disputam esse relato e pensam que Huxley e seus
amigos florearam a história, diz Tiago Garros, que acrescenta que o
próprio Darwin reconheceu críticas boas na participação de Wilberforce.
Denis
Alexander diz que houve “bastante revisionismo histórico” a respeito do
debate. Ele indica como melhor descrição do debate a que está no livro
Magisteria: The Entangled Histories of Science and Religion de Nick
Spencer (trad. livre: “Magistérios: as histórias entrelaçadas da ciência
e da religião”, publicado pela One World em 2023, sem edição no
Brasil).
“A
principal lição desse debate é que líderes religiosos não deveriam
criticar uma teoria científica até que a tenham entendido de forma
apropriada e pensado com cuidado a respeito das implicações teológicas
possíveis da teoria”, diz Alexander, que afirma que a posição de
resistência de Wilberforce não era representativa da Igreja Anglicana.
“Na verdade, foi notável a rapidez com que a evolução foi ‘batizada’
pela Igreja Anglicana dentro da teologia cristã”.
De
fato, eram sacerdotes ordenados por esta igreja os principais
responsáveis na época pelo ensino da teoria na própria Universidade de
Cambridge. “Até meados da década de 1860, poucos anos depois da
publicação do Origem, artigos de ciências naturais da própria
universidade já faziam perguntas científicas que presumiam a validade da
‘teoria do Sr. Darwin’.”
Alexander
cita a primeiríssima resposta que Darwin recebeu a um rascunho de seu
livro. Ela veio do padre anglicano Charles Kingsley, que escreveu ao
autor:
“Aprendi
gradualmente a ver que crer na concepção da Divindade que criou formas
primevas capazes de autodesenvolvimento é tão nobre quanto acreditar que
Ele precisou de um ato novo de intervenção para preencher as lacunas
que Ele próprio deixou.” Era uma opinião já comum entre homens letrados,
como o filósofo da ciência William Whewell (1794-1866), que escreveu
que “podemos perceber que os eventos trazidos à existência não por
interposições isoladas do poder Divino, exercidas em cada caso
particular, mas pelo estabelecimento de leis gerais”.
Para
Everthon Oliveira, “devemos evitar pelo menos dois riscos” ao pensar em
importantes figuras científicas como Darwin: “primeiro, o de
desvalorizar sua visão científica devido a uma má interpretação
filosófica, e segundo, o de validar sua visão teológica/filosófica ao
transferir para esse campo o prestígio que adquiriram como
pesquisadores”. Oliveira pensa que “as opiniões de Darwin sobre a origem
da criação são contribuições valiosas para a reflexão, porém devem ser
consideradas com uma autoridade menor do que suas declarações no âmbito
científico, sem, no entanto, serem descartadas”.
“Assim
como Newton descobriu as leis físicas que regem o movimento do
universo”, diz Tiago Garros, “Darwin queria descobrir as leis biológicas
que regiam o aparecimento das espécies. Essa noção de leis é totalmente
teísta, totalmente cristã. Se existem leis, existe um Legislador, que
criou essas leis”.
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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