Conrado Hübner Mendes
Folha
Diante de crises de violência, a cartilha da desinteligência penal brasileira prescreve os seguintes mandamentos: criminalizar novas condutas; aumentar penas de condutas já criminalizadas; ampliar o rigor da execução da pena; prender quanto mais, melhor; e “guerra às drogas”. Diante de qualquer problema social, nosso instinto primitivo manda atacar com direito penal. E dispensa qualquer evidência sobre eficácia.
A cartilha também prevê outros entorpecentes para acalmar a sensação de insegurança: permitir ao policial torturar e matar sem consequência; isentar a polícia de qualquer controle real; politizar a polícia. Pede ainda a contribuição de um Judiciário e um Ministério Público lenientes e corresponsáveis. E solicita a governadores uma frase machona: “vai mirar na cabecinha”; “tô nem aí”.
MATAR E MORRER – Essa política estatal dá resultado. Institucionaliza uma das polícias que mais matam e morrem no mundo. Aumenta exponencialmente o encarceramento e a execução de pretos e pobres. E oferece centro de treinamento para o crime organizado nas prisões.
A correlação entre o crescimento da população carcerária, da corrupção policial e do poder de organizações criminosas, que já elegem representantes e ocupam a burocracia, se faz evidente.
Essa desinteligência tem, entre seus principais operadores, políticos cujo principal apelo eleitoral é o fígado. Não resistem em perpetuar esse círculo vicioso. A cidadania perde no seu direito à vida, à liberdade, à segurança (sobretudo pretos e pobres). Enquanto isso, eles se elegem. E cidadãos desatentos ganham um suspiro efêmero de sensação de segurança, que nunca corresponde a indicadores objetivos de segurança.
CLÁUSULA PÉTREA – O senador Rodrigo Pacheco, advogado criminalista mal versado na sociologia do crime, entrou na turma. Num acesso de estupidez orgulhosa, resolveu reagir a iminente decisão do STF de descriminalizar o porte de maconha. E o senador não quer projeto de lei, mas emenda constitucional. E não por uma emenda qualquer, mas uma que muda o artigo 5º da Constituição.
Quer usar nossa declaração de direitos civis para criminalizar de uma vez por todas a “posse e o porte, independentemente da quantidade”.
Pacheco apresenta três argumentos. O primeiro acusa o STF de promover “invasão da competência do Poder Legislativo”. Com esse argumento, Pacheco sugere o fim do controle judicial de constitucionalidade. Simula não saber que, na separação de Poderes, não há monopólio nem exclusividade do Congresso para a proteção de direitos. Não há mais democracia constitucional sem um tribunal para incomodar o legislador.
OUTR FALÁCIA – Em seguida, afirma que “o país não pode permitir descriminalização sem a adoção de políticas públicas”. Não percebe que existe, sim, política pública contra as drogas, sintetizada pela “guerra às drogas”. E é a criminalização que bloqueia e dificulta, justamente, qualquer outra política pública que enfrente o desafio de forma eficaz. Há múltiplas alternativas regulatórias.
Em vez de reconhecer a ineficácia do direito penal como remédio para problema social complexo, o que faz um populista da desinteligência? Em vez de substituir o remédio, apenas aumenta a dose.
Completou: “a própria existência da droga já é um perigo em si, por envolver riscos de saúde e potenciais crimes, que vão da corrupção a homicídios”. Esse argumento já não deu nem para entender. Afinal, a atual política contra drogas apenas multiplica risco à saúde, homicídio e corrupção.
DIZ A ONU – O senador poderia ao menos mostrar algum dado por trás da tese heterodoxa. Por falar em dados, as “Diretrizes Internacionais sobre a Prevenção do uso de Drogas”, um consenso produzido pela ONU, recomenda que políticas sejam baseadas em evidências científicas.
Pacheco substitui evidências pela insapiência. Pratica tolerância zero contra o conhecimento e vai na contramão de países que estão na vanguarda da política de drogas.
Parece só cinismo, mas é cristalina ignorância. Ignorância não como falta de capacidade intelectual, mas como predisposição de ignorar o que importa. A perpetuação dessa política de drogas, que alimenta tanto o crime quanto o vício, sem devido tratamento de saúde, precisa de cabeças ousadas como a de Pacheco.
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