Livro
de estreia do escritor gaúcho apresenta humor inteligente e afiado
acerca das neuroses e preocupações humanas neste primeiro quarto de
século
“Não
parece, irmãos, contraditório que, para esse mesmo Deus, profundamente
indignado com a servidão do povo hebreu, seja justamente a obediência a
virtude humana mais importante?”
(Trecho do conto “Quatro Teses Sobre Deus”, pág. 164)
Nascido
em Porto Alegre (RS), Bert Jr. se graduou em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Diplomacia pelo Instituto Rio
Branco. Hoje, com três livros publicados, o escritor tem longa carreira
diplomática, já tendo vivido em países como Itália, Venezuela, Canadá,
Bolívia e Zâmbia. Bert agora reside na República de Cabo Verde, onde
atua como embaixador. Em 2020, como resposta ao marasmo da crise
instaurada pela Covid-19, passou a escrever intensivamente todos os dias
à tardinha e às madrugadas. O resultado é “Fict-Essays e Contos Mais Leves” (Editora Labrador, 192 pág.), obra composta por sete contos que registram com perspicácia o espírito do tempo contemporâneo.
O
humor ácido de Bert somado ao seu olhar crítico para o modo como o
homem se relaciona consigo, com o próximo e com o mundo fazem com o
leitor reconheça as caricaturas que o autor apresenta em cada uma das
histórias, que tratam desde uma obsessão pela saúde que deságua em
psicose, até reflexões sobre a condição humana e uma investida em busca
de explicações para a origem da vida e do universo. “Os temas dos contos
do livro vinham sendo objeto de reflexão há algum tempo e se
relacionam, em sua maioria, com leituras que fiz, por exemplo, sobre
pré-história humana, espiritualidade, nutrição e psicologia”, conta
Bert.
Reflexões sérias tratadas com bom humor
Como
viver uma vida saudável e com autoestima? Será que o perfeccionismo
limita a nossa capacidade de gozar a vida? Será que obras
intelectualmente relevantes e originais têm suficiente visibilidade e
atenção? Será que podemos optar por uma vocação profissional com futuro
incerto quando temos sucesso comprovado em outra área? Será que memórias
sofridas da infância podem ser metabolizadas de forma positiva e se
transformarem em lições para a vida? Será que sustentar posições
não-dogmáticas e um tanto irreverentes nos faz conviver melhor com as
dúvidas inerentes à condição humana?
São
algumas das indagações propostas pelo escritor ao longo dos textos,
tratando de reflexões sobre temas sérios de forma bem-humorada. “O humor
possui por natureza um caráter crítico e, portanto, pode ser uma
ferramenta para lidar com questões complexas, muitas vezes insolúveis,
ou cujas respostas são incertas.”
Cada um dos sete contos que compõem “Fict-Essays e contos mais leves”
possui uma temática própria. “Neandertala brasiliensis” trata de uma
adaptação biológica da humanidade a uma nova era do gelo, provocada
pelas mudanças climáticas em curso no planeta, por meio do emprego de
carga genética neandertal. “VegaLight”, por sua vez, traz os possíveis
efeitos das dietas radicais e a busca de equilíbrio psíquico. Em “Um tal
recital”, o autor aborda o perfeccionismo exagerado e sua
flexibilização em resposta a acontecimentos fortuitos.
“Sincronicidades”
pauta o esforço de um intelectual para entender a realidade, a partir
do desenvolvimento de novos conceitos e ferramentas de análise, e os
efeitos emocionais provocados pela expectativa de boa aceitação da obra
por parte do público e da crítica. “Freddy Quin” traz o dilema entre
seguir uma trajetória de sucesso ou abraçar uma vocação latente, e
“Ensino fundamental” traz lições de vida retiradas de situações vividas
na infância. Por fim, “Quatro teses sobre Deus” é uma reflexão
humorística sobre a condição humana, na encruzilhada entre as lacunas
das explicações científicas acerca das origens do universo e da vida e a
dificuldade de compreender a personalidade divina.
“Três
dos contos do livro – Neandertala brasiliensis, Sincronicidades, e
Quatro teses sobre Deus – estão classificados como fict-essays, ou
ensaios fictícios: um tipo de conto imaginado por mim, em que o fio da
estória é a “viagem intelectual” do protagonista. Os ensaios fictícios
são mais longos e densos que os demais contos do livro, que classifiquei
de “mais leves”, justifica.
Com
sentenças diretas e claras, a escrita de Bert não exige descrições para
dar vida dinâmica aos cenários e personagens imaginados pelo autor. Ele
cita Fernando Sabino, Nelson Rodrigues, Luís Fernando Veríssimo, Carlos
Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, e Machado de Assis como os
responsáveis pela sua formação literária. “Não creio, porém, que o meu
livro tenha sofrido influência direta de nenhum desses autores em
particular, mas acredito que todos contribuíram, em conjunto, para a
forma e o estilo dos textos”, ressalta.
A trajetória literária de Bert Jr.
Bert
Jr. tem 61 anos e escreve desde os 17 anos. Aos 18, foi finalista, na
categoria Poesia, do Concurso Habitasul-Correio do Povo Revelação
Literária, na época o maior certame literário do Rio Grande do Sul. No
júri, estavam os escritores consagrados Mário Quintana e Lya Luft.
Estreou na ficção em 2020, com “Fict-Essays e contos mais leves”.
Em 2021, publicou o seu primeiro livro solo de poesia: “Eu canto o
ípsilon E mais”. No ano seguinte, lançou um novo volume de contos, “Do
Incisivo ao Canino”, e um segundo livro de poemas, intitulado
“Nevoandeiro”. Em 2023, publicou “Vi&Verei”, contendo poemas curtos,
frases e axiomas, e “Sem pé com cabeça”, uma antologia de crônicas
humorísticas.
Atualmente,
o autor colabora com as edições mensais da revista eletrônica Conexão
Literatura e tem engatilhado para 2024 o seu primeiro romance, que
aponta como uma distopia humorística. A previsão de lançamento é ainda
no primeiro semestre, pela editora Oito e Meio.
Leia um trecho de “Fict-Essays e Contos Mais Leves” (“VegaLight”, pág. 61):
“Enlouquecida
de calor, ergueu o corpo para desfazer-se das cobertas, quando então
percebeu que não eram mantas e lençóis que a recobriam, mas tiras de
massa mole e quente, lambuzadas de molho branco. Estarrecida, Talívida
compreendeu que tinha despertado no interior de uma lasanha.
“Socooorrrooo!!!”, gritou. E logo berrou, ainda mais alto. O senhor do
quarto vizinho veio bater à porta, para saber o que se passava. Lutando
para libertar-se das pegajosas línguas de muçarela, verdadeiros
elásticos que a mantinham ligada ao leito, Talívida foi ao chão,
tentando arrastar-se em direção à porta, enquanto gritava, chorosa: “Tem
uma lasanha me atacando, por favor, me acuda!” “Uma o quê?”, perguntou o
senhor, incrédulo. “Uma lasanha, uma lasanha assassina… Está me
atacando, socorrooo!” “Você está sendo atacada por uma lasanha
assassina, é isso? Bom, nesse caso, vou pedir à recepção para chamar a
clínica psiquiátrica. Vá dormir, garota!”
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