Livro de Pilar Bonet é um manual didático para aqueles a quem, como o autor deste artigo, tomou de surpresa o ataque de Vladimir Putin à Ucrânia:
Pilar Bonet, que foi correspondente na Rússia por
vários anos, publicou um livro que se chama Náufragos do Império e que
recomendo a todos os que, como eu, se sentiram confusos pela diversidade
de informações que geram as versões oficiais e jornalísticas de Rússia e Ucrânia.
Este interessante livro permite estabelecer de uma maneira gráfica os principais personagens do confronto entre Rússia e Ucrânia,
que, descobrimos em suas páginas, se dividem numa multidão de partidos,
grupos e até ofícios dos quais tínhamos pouca ideia no Ocidente.
É um manual didático para aqueles a quem, como o autor deste artigo, tomou de surpresa o ataque de Vladimir Putin para ficar com a Ucrânia,
já que aborda com detalhe a origem do conflito, e também para quem está
um pouco perdido com os nomes tão diversos das distintas localidades
afetadas e dos dirigentes políticos desses países, que, nos revela a
correspondente, têm uma longa vida com antecedentes que permitem
esclarecer muitos aspectos do que sucede.
É
muito difícil retransmitir o livro de Pilar Bonet, mas as suas
instruções e vias para não nos perdermos nesse magma são claras, e a
autora as conforma para apresentar esse caos como o que ele não é; ou
seja, um mundo ordenado, onde a loucura de um visionário demente provocou uma catástrofe na qual o número de vítimas e deslocados alcança cifras pavorosas.
Pilar
Bonet passou vários anos em Moscou e se nota que ela viajou muito por
toda a região, não somente às capitais ou cidades principais, porque sua
informação sobre os distintos grupos, partidos e personagens tem uma
simplicidade que facilita extraordinariamente a localização das ações
bélicas. O livro Náufragos do Império permite que se faça uma ideia das situações que ocorrem em todas as regiões da Ucrânia.
A
primeira das surpresas que acomete quem o lê é que grande parte da
Ucrânia, incluindo as zonas mais afastadas da ação, está comovida pela
guerra e que em muitos lugares afetados não há somente camponeses e
militantes, mas também artistas, pois se trata de um país que vem
fervilhando com sua capacidade múltipla para criar espectáculos de alto
nível e manifestações artísticas.
Pilar
Bonet tem uma clara visão dos fatos e condena, desde logo, a
intervenção russa na Ucrânia, mas a partir daí é objetiva e apresenta os
personagens principais, tanto do lado russo quanto do ucraniano, de uma
maneira convincente, segundo as ações de cada grupo para estabelecer-se
e resistir. A Ucrânia não é, como talvez poderia se acreditar, um mundo
primitivo, um tanto bárbaro.
Nada
disso. Trata-se de cidades sofisticadas, nas quais há uma vontade
artística de primeira ordem e uma vida política extraordinariamente
diversa, que a autora relata com minúcia. Pode parecer estranho, mas
este livro, manchado de sangue, é, não obstante, ameno e simpático,
porque apresenta os personagens em seus melhores paramentos e funções.
É
verdade que há milhares de mortos, mas as virtudes de um bom relato
dominam sempre, e a autora as conforma em todos os casos para apresentar
os grupos políticos de maneira amável e até risonha. O contexto não
pode ser mais horrível, dezenas de milhares de pessoas sofrem, perdem
seus lares, enfrentam situações tremendamente trágicas e, não obstante,
ela relata esse mundo explosivo sem truculência, graças também aos
muitos idiomas que a autora conhece e que permitem uma grande
aproximação com os personagens que entrevista ou revela à luz de seu
anonimato.
A
Ucrânia é um mundo muito vasto e com uma intensa vida política, cujos
partidos disputam entre si de forma aguerrida a liderança do país
mediante votações muito estritas. É um país de alto nível social e
educacional, sobre o qual recaiu um tremendo conflito, no qual, a autora
admite, há poucas esperanças de solução. A negociação que virá ao fim e
que selará uma paz entre ambos os países, assim esperamos, está
tardando em chegar e tardará ainda algum tempo, porque os exércitos em
questão são de alto voo e a Rússia tem armas para fazer durar a guerra.
A
Ucrânia, de sua parte, recebe um apoio do Ocidente que lhe permite
resistir. Mas os donos dessas armas deveriam exigir uma negociação o
quanto antes para pôr fim às matanças cotidianas naqueles territórios
(os Estados Unidos acabam de exigir também da Ucrânia maiores esforços
contra a corrupção em troca da ajuda econômica que Kiev precisa).
E
quem luta não são apenas militares ou elementos perdidos, mas toda uma
população civil, pessoas refinadas que perderam seus lares e que,
segundo a autora permite entrever, têm uma extensa trajetória cívica.
Trata-se de um livro surpreendente, pois quem o lê descobre que a terra
em disputa não é de terceiro ou quarto mundo, como muitos creem, mas um
lugar com cidadãos de alto nível, hoje convertidos em milicianos,
orgulhosos de seus colégios e suas instituições, que agora estão em
ruínas, e de suas cidades que, sob os bombardeios selvagens, ainda
resistem, mesmo que perdendo inumeráveis compatriotas.
Chama
a atenção no livro o fato de os políticos estarem sempre ali, e Pilar
Bonet, que parece familiarizada com os idiomas locais, nos coloca muito
perto deles, produzindo-nos uma sensação de horror, em um livro que quer
ser ao mesmo tempo — e é — simpático.
O
conjunto da Ucrânia se mostra por completo: vamos desde Kiev, a capital
que luta e resiste, às ásperas terras nas quais o império russo trata
de aventurar-se, de Odessa a Kharkiv, Mikolaiv, Zaporizhzhia e várias
outras mais, cidades que vão desaparecendo apesar da fortaleza de seus
moradores, que muitas vezes morrem sem munições e que perderam tudo com
os bombardeios.
O
livro de Pilar Bonet, como mencionei, é risonho apesar do material que
coloca ao alcance dos leitores ser enormemente grave, porque tem a ver
com a vida e a morte de muitos milhares de pessoas. Graças à linguagem,
que ela sabe utilizar com maestria para nos aproximar de lugares que
frequentou e figuras políticas que conhece, ela consegue evitar que nos
asfixiemos com os horrores da guerra.
O
relato tem, ademais, a virtude de exigir a mobilização das pessoas. Não
é possível continuar assistindo ao longe essas matanças. É necessário
uma mobilização das pessoas que vivem em paz para que ela seja alcançada
também pelos ucranianos, a partir de uma negociação que levante o
espírito desse povo que vai perdendo sua gente a cada bombardeio.
A
autora tem carinho por essas terras e deseja que essa paz venha
prontamente. E sua contribuição é muito grande, já que ela utiliza o
material que reuniu para nos aproximar de uma guerra que causa inúmeras
mortes diante da indiferença de boa parte do mundo.
A
invasão russa à Ucrânia não deve nos deixar impávidos. É necessário
atuar e empurrar os adversários para a negociação. A Rússia atacou, e as
artes da guerra a favorecem, mas o Ocidente, que é mais civilizado e
mais bem preparado para esses trâmites, deveria poder tomar partido de
sua superioridade moral e lutar incansavelmente por essa multidão que
defende seu direito à existência, sem humilhações nem castigos, tratando
de alcançar negociações de paz. Quanto antes isso ocorrer, melhor será
para ucranianos e russos, pois a invasão continua cobrindo de sofrimento
ambos os lados. (Estadão).
Postado há 1st October por Orlando Tambosi
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