Nas conversas políticas de hoje, há excesso de discussão e falta de política. João Pereira Coutinho via FSP:
Os rótulos enganam, avisa Marcos Lisboa, em coluna excelente para esta Folha. A tese do autor é que os termos usuais das nossas discussões políticas —direita x esquerda, conservador x progressista etc.— são mais flutuantes do que imaginamos.
Marcos Lisboa dá exemplos: "liberal", hoje, pode ser o defensor das liberdades individuais —ou, sob outra perspetiva, o defensor das desigualdades naturais.
Eu próprio já escutei, da boca de um entusiasta da "cultura de cancelamento",
que ele era o verdadeiro liberal. Suprimir certas vozes para promover
os que não têm voz é uma forma legítima de libertar quem permanece
acorrentado.
"No século 17", avançou ele, "foi preciso calar a voz da igreja e da monarquia para que a burguesia se emancipasse".
É
uma interpretação bizarra do liberalismo moderno, mas tudo bem. Meu
ponto é outro: quem acusa os "canceladores" de serem iliberais nem
imagina que, aos olhos deles, os iliberais são os outros.
Mas
existe um segundo problema com os rótulos que suplanta essas diferenças
de perspetiva: eles são internamente incoerentes. Pior: os rótulos
funcionam como "kits" ideológicos que dispensam o sujeito de pensar.
Se
a pessoa é de esquerda, existe uma lista de assuntos —da política à
economia, da moral à educação– que já estão decididos e fechados. Um
progressista que seja contrário à eutanásia, por exemplo, é uma
contradição nos termos.
O mesmo acontece à direita, sobretudo nos Estados Unidos. Um conservador que seja contrário à liberalização das armas é uma aberração ambulante. Ou não?
Talvez
não. Essa, pelo menos, é a tese de James Mumford no seu "Vexed: Ethics
Beyond Political Tribes" (Bloomsbury). A ambição de Mumford é investigar
até que ponto as posições habituais da esquerda e da direita são
coerentes com os princípios que ambas defendem.
Sentença:
não são. Porque, se fossem e ficando apenas nos exemplos citados, os
progressistas seriam contra a eutanásia e os conservadores seriam
favoráveis a um controle férreo das armas.
Sobre
a eutanásia, Mumford relembra que o princípio da "inclusão" é caro à
esquerda. Por "inclusão", entenda-se identificar os marginalizados e
proteger os mais vulneráveis.
Superficialmente,
a eutanásia e o suicídio assistido cumprem esses dois quesitos,
libertando os indivíduos do sofrimento terminal.
Mas
só superficialmente. Ao permitir que um médico mate (eutanásia) ou que
um paciente possa ser ajudado a matar-se (suicídio assistido), é
possível contra-argumentar que serão os mais vulneráveis, os mais
solitários, os mais pobres, sem acesso a cuidados paliativos ou a mero
suporte familiar ou comunitário, que olharão para a eutanásia e para o
suicídio assistido com outra disponibilidade.
O caso agrava-se se a eutanásia exceder os casos terminais e contemplar também quadros depressivos graves, como já acontece na Europa.
E a direita?
Basta escutá-la na defesa da "sacralidade da vida humana". Em matéria de aborto, essa sacralidade começa ab initio, desde a concepção.
Pena
que a "sacralidade da vida humana" não se estenda a outros domínios.
Como relembra James Mumford, os Estados Unidos têm 4% da população
mundial e 50% de todas as armas nas mãos de civis. Também têm uma taxa de homicídio que é 20 vezes superior à média dos países da OCDE.
Sem
falar do resto: 60% das mortes por armas de fogo são por suicídio. E o
número de crianças mortas todos os anos por disparos acidentais supera o
número de crianças vítimas de câncer.
Não
seria hora de defender a "sacralidade da vida humana" para lá do
período de gestação, limitando severamente o acesso às armas? Ou a vida
só é sagrada enquanto não saímos cá para fora?
Nas
discussões políticas de hoje, há excesso de discussão e déficit de
política. Porque pensar politicamente significa abandonar a "junk food"
ideológica e começar a pensar sobre as coerências e as consequências das
nossas convicções mais profundas.
Isso
não significa que as contradições serão resolvidas –e aqui me distancio
de James Mumford, que parece defender uma coerência radical entre os
princípios e as ações.
Significa,
tão só, ter uma noção mínima de que essas contradições existem –e que,
por causa disso, o ceticismo e a livre discussão de ideias serão sempre
preferíveis ao fanatismo de quem só sabe falar dentro da caixa.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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