A maior parte das ideias políticas opostas poderia ser defendida com idêntica plausibilidade ou implausibilidade, de forma igualmente convincente ou inconvincente, tanto para o bem como para o mal. Antonio Rocha Martins para o Observador:
Negação
dos factos, mentira, duplicidade, mostrando ser o que não se é e não
ser o que se é, tipificam nuclearmente condutas de má-fé.
É
um conceito filosófico e um tema amplamente debatido. As páginas mais
pertinentes talvez sejam as que lhe são dedicadas por Jean-Paul Sartre,
um dos grandes nomes do pensamento existencialista.
O
projeto consiste na racionalidade da consciência. Tudo se passa na
mediação entre dois polos, a «transcendência» (realidade exterior à
consciência) e a «facticidade» (contingência dos acontecimentos), numa
recíproca, simultânea, unitária e perpétua remissão.
A
má-fé configura o autoengano («automascaramento»). Aplica-se às
situações de vida nas quais desviamos o olhar de factos, opções ou
escolhas que, de algum modo, sabemos estarem presentes. Negamos a
realidade e mentimos a nós mesmos, dissimulando-nos e encobrindo-nos a
verdade. «Representamos», para os outros e para nós mesmos. Equivale a
mentir, mas difere da mentira pura e simples.
A
mentira aparece-nos como uma relação diádica. Há sempre dois elementos:
o enganador e o enganado. Mentir supõe que quem engana conheça a
verdade que esconde. Não se mente sobre o que se ignora. Nem quando se
difunde um erro de que se é vítima ou quando nos equivocamos.
Além
disso, a disposição íntima do mentiroso é sempre positiva. Ele tende
até a regular cuidadosamente as suas atitudes. Nem dissimula a intenção
de pretender enganar, nem a intenção fingida de dizer a verdade: a
atitude deliberada de enganar respeita apenas ao personagem que ele
representa perante os outros (o «interlocutor»).
Não
há dificuldade em conceber que o mentiroso «realiza com toda a lucidez o
projeto da mentira», tendo «inteira compreensão da mentira e da verdade
que altera».
Sem
dúvida que o mentiroso poderá ser vítima da sua própria mentira,
acabando mesmo por ser meio persuadido por ela. Mas, ainda assim,
conservará sempre a lucidez de que mente e da verdade que tenta
esconder. Não mentimos senão conhecendo a verdade da mentira.
No
caso da má-fé, o exercício é mais subtil. «Autenticidade» é a antítese.
Estaremos de má-fé sempre que invocarmos expedientes externos como
forma de dirimir responsabilidades pessoais. Disfarçamos – para nós
mesmos – algo que é desagradável. Recusamo-nos a assumir exigências e
responsabilidades, através de pretextos plausíveis. E iludimo-nos a nós
próprios sobre as nossas verdadeiras intenções e motivações.
É
como se fosse a mentira, mas numa relação monádica. Significa que não
existe dualidade entre enganador e enganado. Ambos são uma e a mesma
pessoa: o indivíduo que mente (a si mesmo).
Desenvolvido
o disfarce, o maior problema não está em distinguir entre o que se é e o
que se não é. Se assim fosse, seria fácil eliminar a má-fé. O mais
grave é que, «fingindo ser alguém que não somos», deixamos de ser quem
somos e tornamo-nos alguém que é «no modo de ser o que não é». E
mentindo a nós mesmos, mentimos forçosamente aos outros.
Dois
exemplos concretos, apresentados por Sartre, atestam o processo. Um
«empregado de café» e a história de uma «mulher que aceita visitar um
homem que a deseja». O primeiro tende a ver-se como o público o vê. Faz o
que se supõe dever fazer, replicando estereótipos (rotinas,
maneirismos…). Reproduz comportamentos de forma previsível e
indiferenciada do papel que assume representar. Só que, cedendo
comportar-se segundo o «olhar» dos clientes («plateia»), ele não só
desaparece nessa persona como nega que existam outras escolhas e
interpretações – iludindo-se a si mesmo. Representa tão «exageradamente»
que parece acreditar na mentira que conta a si próprio.
No
exemplo da mulher, imagine-se que ela sabe perfeitamente as intenções
do homem que aceita visitar. Também sabe que mais cedo ou mais tarde
terá de tomar uma decisão – que vai retardando o mais possível. Assume
uma posição ambivalente: toma ao pé da letra as afirmações do anfitrião
quando ele lhe diz que a admira, e entende essa admiração em sentido
meramente espiritual. A certa altura, o anfitrião pega-lhe na mão; ela
finge não reparar e nega a intimidade e as implicações sexualmente
implícitas no ato. Ao «não consentir, nem resistir», a mulher age de
má-fé: desarmou as ações do companheiro como «se não fosse o seu próprio
corpo», como se ela fosse simplesmente um objeto passivo. Apesar de
desfrutar do desejo, recusa aceitar que se comprometera com um padrão de
conduta. Dissimula para si mesma o carácter inicial do encontro
(remetendo o acontecimento para a esfera exclusivamente “intelectual”).
Tendemos
a acreditar nas nossas próprias desculpas. Inventamo-las para fugir
«daquilo que somos». Uma fuga impossível. Motivo pelo qual
«representamos». Tal como no grande teatro, é necessário que as
personagens mantenham a simpatia da plateia. Mas a repetição verdadeira
de um falso original gera sempre uma falsa autenticidade. Mentimos e
ludibriamos, fixando-nos em certos motivos e reprimindo outros. Através
da má-fé, tornamo-nos a nossa perfeita alteridade, excluímos o olhar e a
resposta do outro, mostramos que nos identificamos apenas pela mediação
das coisas que nos devolvem a nossa (deficiente) identidade.
É
possível que os nossos políticos não cheguem a compreender a natureza e
as implicações da má-fé. No grande jogo da representação, a que todos
assistimos, transparece uma espécie de debate trágico continuado. A
maior parte das ideias políticas opostas poderia ser defendida com
idêntica plausibilidade ou implausibilidade, de forma igualmente
convincente ou inconvincente, tanto para o bem como para o mal.
Lembrando
o que René Girard diz do desejo, a rivalidade mimética torna os rivais
cada vez mais «indiferenciados e idênticos». Uma simetria replicante de
quem crê nas coisas unicamente por causa de si próprio e do seu próprio
interesse – o genuíno princípio dos dogmáticos. A partir daqui,
evidentemente, é impossível distinguir entre o «verdadeiro» e o «falso».
Ter-nos-emos
esquecido da noção de Bem Comum. Claro que o poder tem uma função de
serviço essencial nas nossas sociedades. Mas se construído com base na
ignorância, na mentira e na má-fé será sempre e, por definição,
potencialmente explosivo, autodestrutivo, causador de graves danos.
A
má-fé cultiva a desagregação da integridade dos indivíduos, dos grupos,
das sociedades. Eis o nosso drama. A política da má-fé implantou a
má-fé na política.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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