Este aparentemente simples contraste entre uma visão procedimental da democracia e uma visão tribal-conspirativa exprime um dualismo bastante mais profundo entre dois conceitos de democracia: um entendimento da democracia como sistema de regras gerais de boa conduta sob as quais concorrem diferentes propostas rivais versus um regime definido por um plano final de alegada perfeição (de esquerda ou de direita). Artigo do professor João Carlos Espada para o Observador:
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Inúmeras críticas têm sido dirigidas à campanha eleitoral em curso,
sobretudo aos debates televisivos. Ou porque foram demasiado curtos, ou
porque os problemas fundamentais do país não foram abordados, ou porque
os desafios europeus e mundiais estiveram ausentes. Sem negar
necessariamente algumas dessas críticas, gostaria de enfaticamente
contrariar o seu sentido geral.
Pela
minha parte, gostaria de saudar o sentido de civilidade
liberal-democrática e não-revolucionária que presidiu à generalidade dos
debates televisivos. E gostaria de enfatizar que essa atmosfera
não-revolucionária deve ser orgulhosamente assumida por todos os que
prezam a liberdade ordeira sob a lei.
2 O
ponto crucial a sublinhar, creio, é que, na generalidade dos debates
televisivos, os interlocutores rivais assumiram que estavam genuinamente
a apresentar argumentos com vista a persuadir os eleitores — isto é,
assumindo um debate leal num sistema eleitoral leal. Por outras
palavras, não houve, que eu me recorde, acusações de que o ‘sistema’ ou o
‘regime’ impede o debate livre e a escolha livre entre propostas e
partidos rivais.
Poderá
ser dito que este ponto a que chamo ‘crucial’ não é surpreendente numa
democracia liberal. Certamente não é, ou não deveria ser, surpreendente.
Mas é um ponto seguramente em contraste com o clima tribal que estava a
ser vivido antes da abertura da campanha eleitoral. Vários partidos e,
sobretudo, inúmeros comentadores, falaram (e muitos ainda falam) do
“regime oligárquico”, do “sistema corrupto”, e/ou do “colapso da
democracia”. Discursos semelhantes são hoje infelizmente frequentes em
democracias ocidentais tragicamente contaminadas por tribalismos
terceiro-mundistas (inesquecivelmente celebrizados pela patética figura
do General Tapioca nos inesquecíveis livros de Tintin).
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Sintomática e saudavelmente, esses discursos estiveram ausentes da
generalidade dos debates partidários na televisão. Isto significa,
fundamentalmente, que a generalidade dos líderes partidários aceitou as
regras não-revolucionárias e não-tribais que distinguem as democracias
do livre Ocidente.
E
deve anda ser enfaticamente sublinhado o exemplar não-protagonismo do
Presidente da República durante toda a campanha eleitoral. Este
comportamento exemplar reforçou e sublinhou o seu papel constitucional
de garante das regras democráticas e de Presidente de todos os
Portugueses.
Acresce
que esta atmosfera não-revolucionária e não-tribal foi também
corroborada pela evolução nas sondagens eleitorais. É certo e seguro que
a única sondagem que conta é o resultado final da votação dos eleitores
no dia 30 de Janeiro. Mas o facto de estar a existir uma flutuação nas
sondagens corrobora a confiança demo-liberal na importância do debate
civilizado entre argumentos rivais e concorrentes.
Por
outras palavras, não há um ‘sistema’ ou ‘regime’ ‘oligárquico’ que
controla os resultados. Os resultados genuinamente resultam das escolhas
dos eleitores e existe um debate livre e leal entre os candidatos para
tentar influenciar essas escolhas.
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Este aparentemente simples contraste entre uma visão procedimental da
democracia e uma visão tribal-conspirativa exprime um dualismo bastante
mais profundo entre dois conceitos de democracia. Basicamente, distingue
um entendimento da democracia como sistema de regras gerais de boa
conduta sob as quais concorrem diferentes propostas rivais versus um
regime definido por um plano final de alegada perfeição (de esquerda ou
de direita).
Ralf
Dahrendorf (1929-2009) — entre muitos outros autores liberais,
democráticos e não-revolucionários desde pelo menos Edmund Burke
(1729-1797) — sublinhou repetida e insistentemente a importância crucial
da distinção entre estes dois conceitos de democracia. Numa passagem
célebre na célebre palestra (sintomaticamente intitulada ‘Must
Revolutions Fail?’) que proferiu em Londres, a 15 de Novembro de 1990,
celebrando a queda do Muro de Berlim mas contrariando os sonhos de
utopias revolucionárias ou/e contra-revolucionárias pós-comunistas,
disse Dahrendorf:
“Democracia.
Nenhuma outra palavra resume melhor os sonhos dos revolucionários na
Europa e noutros lugares nos últimos 200 anos. […] Mas democracia tem
dois significados inteiramente diferentes. Um é constitucional, um
arranjo através do qual é possível substituir governos sem revolução,
através de eleições e de parlamentos eleitos. O outro significado é
muito mais fundamental: a democracia deve ser autêntica; o governo deve
ser devolvido ao povo; a igualdade tem de ser real. Este é o sonho de
Rousseau de uma volonté générale que inspirou os revolucionários
franceses em 1789, uma vontade geral que misteriosamente levaria todos a
concordar sem recurso à força ou ao constrangimento”.
Este
segundo entendimento ‘fundamental’ (no sentido de ‘fundamentalista’) da
democracia, prosseguiu Dahrendorf, simplesmente não é compatível com a
preservação da liberdade, do pluralismo e da convivência pacífica e
civilizada entre pontos de vista e de modos de vida diferentes. Conduziu
a ‘excitantes’ revoluções autoritárias, de extrema-esquerda e de
extrema-direita, contra a ‘tranquilidade aborrecida’ das democracias
pluralistas, burguesas e parlamentares.
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Este dualismo entre dois conceitos de democracia e de revolução é
seguramente um tema fundamental da Teoria Política moderna e
contemporânea. É aliás o tema da segunda edição do Seminário académico
sobre “Seis Revoluções da Era Moderna (Inglesa, Americana, Francesa,
Brasileira, Soviética e Portuguesa)” que o Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa e o Labô da Universidade
Católica de São Paulo vão retomar on-line a partir de 10 de Fevereiro. O
mesmo tema também acaba de ser aprovado pela Fundação norte-americana
Liberty Fund para o seu seminário anual no Hotel Palácio do Estoril, em
Junho.
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Voltarei seguramente a este tema. Mas, de momento, apenas gostaria de
saudar a atmosfera de civilidade liberal, pluralista e não
revolucionária da campanha eleitoral entre nós. E de apelar a que
votemos certeiramente nas eleições — isto é, em liberdade e em
consciência. Isto é, também, com o orgulho tranquilo de vivermos numa
democracia liberal, sem opressão revolucionária nem
contra-revolucionária.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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