BLOG ORLLANDO TAMBOSI
Há uma indústria inteira focada em capturar aquilo que cada um de nós tem de mais importante: nosso tempo e nossa atenção. Fernando Schüler para a revista Veja:
O
perigo chegou de mansinho. Você precisa entregar aquele projeto, na
empresa, e quando menos percebe está assistindo a vídeos sobre tsunamis
no YouTube. Você decide fazer aquela pós-graduação que planejava há
muito tempo, mas na sexta-feira à noite, no meio da aula, está perdido
checando mensagens, no WhatsApp, ou bisbilhotando a vida de um monte de
gente que você mal conhece, no Instagram.
Leio
que nós, brasileiros, gastamos três horas e 42 minutos todos os dias
nas redes sociais. Pouco mais de dez horas na internet, sendo metade
disso em um telefone celular. Achei incrível isso. Gastamos mais de
vinte horas por mês só no TikTok, e a coisa vem crescendo. Fui somando
tudo com o que as pessoas presumivelmente fazem desconectadas (dormir,
por exemplo, ou quem sabe ler alguma coisa) e a conta não fecha. Será
que as pessoas transam checando o último bate-boca no Twitter? A última
novidade parece ser o metaverso. Vejo um especialista animado dizendo
“você poderá ser qualquer coisa por lá, um gato, um coelho, ou mesmo um
Elvis Presley”, e garante que será a rede dominante no futuro próximo.
Há
quem diga que não vê nenhum problema nisso. A sobrecarga de informação é
um fato do nosso tempo e é natural que percamos um pouco do dia
separando o joio do trigo. Há quem vá mais longe e diga que a dispersão
no mundo digital pode ser mesmo um modo de vida. Conheço uma senhora que
passa o dia no YouTube, e parece que está tudo bem. De vez em quando
ela faz um comentário do tipo: “Viram a última gafe do Faustão?”. A
psicanalista Élisabeth Roudinesco vai nessa direção. Ela diz que “estar o
tempo todo conectado é melhor do que usar drogas”. Achei fraco o
argumento. Sou dos que desconfiam que há um problema bastante grave aí,
que em geral costumamos empurrar para debaixo do tapete.
Talvez
eu ache isso porque sou professor. Percebo o efeito destruidor sobre a
atenção dos alunos pela simples presença de um celular em sala de aula.
Um estudo feito na Universidade Carnegie Mellon mostrou que o desempenho
de alunos com seus aparelhos ligados, em testes padronizados, é 20%
menor do que o de alunos inteiramente focados. Outra pesquisa mostra que
levamos até 23 minutos para retomar a atenção quando somos
interrompidos. Se fossem dez ou quinze minutos, isso não faria lá grande
diferença. Esse não é o ponto central.
O
ponto é que andamos em meio a uma guerra. Quem faz o alerta é um
ex-estrategista do Google, James Williams, que lança agora no Brasil seu
livro Liberdade e Resistência na Economia da Atenção. Williams
trabalhava no Google exatamente na área de “programação persuasiva”. Era
pago para criar estratégias de “captura” da atenção das pessoas. Em um
dado momento, percebeu que ele mesmo havia perdido o controle. Não era a
primeira vez que tinha acontecido isso. No ensino médio se meteu com
games digitais e quase dançou. Depois fez uma carreira de sucesso, na
indústria da tecnologia, focado em “fidelizar” usuários, até perceber
que ele mesmo havia sido fisgado. A partir daí, deu um tempo. Foi
estudar em Oxford e tentar decifrar o problema.
Ele
diz que vivemos uma epidemia. Que há uma indústria inteira focada em
capturar aquilo que cada um de nós tem de mais importante: nosso tempo e
nossa atenção. Captura voluntária, feita com técnicas sofisticadas de
inteligência artificial, uso de cookies, de clickbaits, aqueles
conteúdos “caça-cliques” com títulos do tipo “Dez vídeos que vão fazer
você chorar”, e coisas do tipo. O tempo de atenção de cada indivíduo
passou a ser milimetricamente monitorado. Se tornou, ele mesmo, o
produto. Há um velho conceito de “liberdade como autodomínio” em jogo
aí, e é precisamente isso, a retomada do controle sobre nossa própria
atenção, que Williams enxerga como o “grande desafio da nossa época”.
A
informação foi, no passado, um bem escasso. Em Relatos do Mundo, Tom
Hanks faz o papel de um veterano da Guerra Civil que ganha a vida lendo
notícias de jornal em teatros e igrejas nas pequenas cidades do Velho
Oeste. A atenção, à época, era abundante, diante da informação
rarefeita. A coisa hoje se inverteu. A informação se tornou abundante e a
atenção, um recurso escasso. Acessamos muito mais informação do que
precisamos. Ela vem de maneira caótica, em boa parte mesquinha, feita de
qualquer besteira capaz de capturar nossa atenção.
Sempre
me surpreendo com o oceano de informação irrelevante que toma conta do
debate público. O acidente de moto do general Pazuello, a “quentinha” do
Wagner Moura com os sem-teto, a última treta do Zé de Abreu com não sei
quem. A lista dos trend topics do Twitter é um bom mostruário do
besteirol infinito, mas está longe de ser o único. O resultado está aí. A
política transformada em um exercício permanente de incomunicabilidade,
em que cada um tem a sensação de ganhar alguma coisa, no curtíssimo
prazo, e todos perdem, coletivamente.
O
primeiro resultado da dispersão crônica é a perda do sentido de
potência e realização pessoal. Tenho um amigo escritor que a cada dois
anos passa um tempo numa pousada, no interior, escrevendo seus livros.
Ele guarda o celular em um cofre e desliga seu acesso à internet. Ele
entra em flow. Um estado de completa imersão no que está fazendo. Isso
lhe dá um sentido de autodomínio e a sensação de que realmente está
fazendo o que havia decidido fazer. O modo dispersivo dos meios digitais
poderia tirar tudo isso dele. Em troca, lhe daria uma sucessão de
recompensas de curto prazo, em geral inúteis.
Outro
resultado são as microafetações de humor. Há uma tonelada de estudos
que mostram a conexão direta entre o uso intensivo de redes sociais e o
aumento da ansiedade e do estresse. A permanente comparação de sua vida
real com a vida “editada”, dos outros; a raiva que dá, todas as manhãs,
ao checar as opiniões do político que você odeia e dos queridos amigos
que gostam dele. Um grupo de pesquisadores da Universidade de Pittsburgh
conduziu um amplo estudo identificando “uma significativa associação
entre o uso das mídias sociais e o aumento da depressão”. Eu me lembrei
da definição algo poética de Tim Wu sobre a liberdade: a possibilidade
de “viver sem ansiedade”. No fundo é isso que está em jogo.
Sou
vivido demais para acreditar que produziremos uma “solução coletiva”
para esse problema todo. Que iremos disciplinar as redes sociais, que as
big techs ajustarão seus algoritmos, ou que algum cometa cairá sobre a
Terra e desligará a internet por duas ou três gerações. O mercado e o
avanço tecnológico tratarão de despejar mais e mais informação sobre a
nossa cabeça.
De
modo que me permito deixar um conselho neste ainda quase início de ano:
larguem um pouco a internet. Em especial, as mídias sociais. Há quem
ganhe dinheiro com isso, mas não são muitos. A maioria só perde seu bem
mais precioso: o tempo. Esse bem fugidio, que apenas vai escorregando,
sem que a gente perceba, e cujo preço, no final, vem na conta de uma
tristeza morna por tudo aquilo que deixamos de viver.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2022, edição nº 2773
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