O fim da força-tarefa passou a ser uma possibilidade real desde que Jair Bolsonaro escolheu Augusto Aras para chefiar a PGR, em setembro de 2019. Editorial da Gazeta do Povo:
A
maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção do Brasil
recebeu seu golpe fatal nesta segunda-feira. A força-tarefa da Lava Jato
no Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba foi dissolvida neste
dia 1.º, por decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras,
apesar de ele mesmo ter determinado anteriormente que o grupo
continuaria trabalhando na configuração atual até outubro deste ano. As
investigações até continuarão, mas bastante enfraquecidas: os
procuradores serão incorporados ao Grupo de Atuação Especial de Combate
ao Crime Organizado (Gaeco) do MPF paranaense, mas apenas parte deles
seguirá com os casos do petrolão.
Em
sete anos de investigação do maior escândalo de corrupção da história
do país, montado pelo governo petista com a participação de outros
partidos e de empreiteiras para sangrar estatais e alimentar um projeto
antidemocrático de poder, foram 130 denúncias contra 533 acusados,
resultando em 278 condenações atingindo 174 pessoas, cujas penas,
somadas, são de 2.611 anos. Os 209 acordos de colaboração e 17 acordos
de leniência resultaram em compromissos para a devolução de R$ 15
bilhões, dos quais R$ 4,3 bilhões já retornaram aos cofres públicos ou
da Petrobras. Se mais não houve, foi apenas porque os detentores de foro
privilegiado têm tido a vida facilitada pela inaceitável lentidão tanto
da PGR quanto do Supremo Tribunal Federal, responsável pelos
julgamentos – até hoje, o Supremo só condenou três réus da Lava Jato.
O
fim da força-tarefa passou a ser uma possibilidade real desde que Jair
Bolsonaro escolheu Augusto Aras para chefiar a PGR, em setembro de 2019.
As críticas de Aras à Lava Jato eram já bastante conhecidas, e
certamente não eram ignoradas pelo presidente da República. Elas não só
continuaram, mas também passaram a ser acompanhadas de atitudes de
enfraquecimento da força-tarefa, como a intervenção para obter os dados
levantados pela operação, no primeiro semestre de 2020. Em setembro do
ano passado, Aras prorrogou a força-tarefa por apenas quatro meses,
quando o costumeiro seria um ano; depois, estendeu sua duração até
outubro, mas agora reverteu sua decisão, antecipando o fim que já se
antevia.
Mas
Aras chegou apenas para dar o golpe de misericórdia; a desconstrução da
Lava Jato já vinha de muito antes. Não é para menos: os números, embora
maiúsculos, não contam a história toda. Nunca uma operação de combate à
corrupção havia conseguido mandar tantos peixes graúdos para a prisão –
ex-governadores, parlamentares e ex-parlamentares, chefes de casas
legislativas e, claro, um ex-presidente da República. Nunca tantos
partidos tiveram membros implicados nos esquemas, prova de que a Lava
Jato jamais teve o viés partidário que seus detratores tentaram lhe
atribuir. Nunca houve tamanho apoio popular às investigações. Os
corruptos e seus aliados jamais assistiriam a isso passivamente.
A
reação ocorreu exatamente como na Itália do pós-Mãos Limpas, e de nada
adiantaram os alertas dos membros da força-tarefa e do então juiz
federal Sergio Moro. No campo político, a bancada da impunidade no
Congresso Nacional patrocinou e aprovou projetos de lei para atrapalhar e
amordaçar agentes públicos encarregados de investigar e julgar
corruptos, como a Lei de Abuso de Autoridade e a desfiguração do pacote
anticrime, e agora investe na redefinição de crimes de colarinho branco
para reduzir penas ou restringir as circunstâncias em que políticos
poderão ser responsabilizados.
No
campo midiático, Moro e a força-tarefa – especialmente o então
coordenador Deltan Dallagnol – foram alvo de um circo montado com a
divulgação de supostas mensagens atribuídas a eles e outros
procuradores, e ganhou força uma narrativa falsa sobre “abusos”
cometidos pela Lava Jato sem que os patrocinadores desse discurso fossem
capazes de apontar que “excessos” seriam esses, ou de comprovar que
houve dolo naquelas ações mais controversas e que são passíveis de
interpretação. No campo jurídico, o STF vem desmontando o trabalho bem
feito ao anular sentenças proferidas sem irregularidade alguma, e está
nas mãos da corte uma ação que pode destruir de vez a operação caso se
entenda que Moro não agiu de forma isenta ao condenar o ex-presidente
Lula. Tudo isso sem falar da perseguição aberta contra Dallagnol no
Conselho Federal do Ministério Público, em processos movidos por
políticos e ministros do STF irritados com o legítimo exercício da
liberdade de expressão por parte do procurador.
O
Congresso tinha acabado com o futuro do combate à corrupção. Aras
acabou com o presente da Lava Jato. Está definitivamente criado o clima
para que o Supremo destrua de vez o passado da operação, bastando que
Kassio Nunes Marques – outra escolha de Jair Bolsonaro – também
considere que Moro agiu com motivação política; seria uma conclusão
absurda, que desconsideraria a montanha de provas acumuladas contra o
petista no caso do tríplex do Guarujá (e nos outros processos que ainda
correm nas várias instâncias da Justiça), mas que, a essa altura do
campeonato, não é nada improvável.
E
os abutres nem esperaram que o cadáver da Lava Jato esfriasse para
atacar. O deputado que Bolsonaro escolheu para ser líder do governo na
Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), em entrevista à rádio CBN na
terça-feira, pediu uma CPI para investigar o que chamou de “crimes
cometidos pela quadrilha da Lava Jato”, acusando, julgando e condenando
com aquela desenvoltura de quem sabe que a impunidade dos corruptos tem
tudo para prosperar. Com uma retórica que lembra mais um representante
do petismo que o líder de um governo eleito na esteira do antipetismo,
Barros ainda desfilou uma série de mentiras para denegrir a operação.
“Nunca
teve prisão em segunda instância no Brasil. Só teve para prender o Lula
e tirá-lo da eleição casuisticamente (...) A prisão em segunda
instância foi um casuísmo que a Lava Jato construiu para tirar o Lula da
eleição”, afirmou o deputado, que tem no currículo a relatoria da Lei
de Abuso de Autoridade, uma aberração desenhada para permitir a
retaliação de investigados, réus e condenados contra seus investigadores
e julgadores. A afirmação, no entanto, está errada do começo ao fim.
A
prisão após condenação em segunda instância é a norma histórica no
Brasil, e continuou a ser praticada mesmo depois da Constituição de
1988. O tema tinha sido alvo de julgamento no Supremo em 1991, quando
prevaleceu o relatório de Neri da Silveira, segundo o qual “mantida, por
unanimidade, a sentença condenatória, contra a qual o réu apelara em
liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não
sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo
grau determina se expeça contra o réu”. Só em 2009 passou a valer a
prisão apenas após o esgotamento de todos os recursos possíveis; em
fevereiro de 2016 (sete meses antes de a Lava Jato oferecer a primeira
denúncia contra Lula, e mais de um ano antes de o petista ser condenado
por Moro) o Supremo retomou o entendimento histórico, derrubado mais uma
vez em 2019. Portanto, o cumprimento da pena com a condenação por
colegiado não só existiu como foi o padrão durante a maior parte da
história recente do país.
E
o que tirou Lula da eleição não foi sua prisão, mas a Lei da Ficha
Limpa, de 2010, que torna inelegíveis os condenados por colegiados,
acusados de crimes como os que levaram Lula à prisão. Ainda que na época
de sua condenação pelo TRF-4 estivesse valendo o entendimento atual do
STF sobre prisão em segunda instância e e Lula jamais tivesse passado um
dia na cadeia, ele estaria fora do pleito de 2018. Ao falar em
“casuísmo”, portanto, Barros promove uma enorme falsificação histórica
com o objetivo de imputar intenções políticas à Lava Jato, fazendo sem
pudor o jogo do petismo.
O
fim da força-tarefa da Lava Jato é uma derrota para o Brasil não apenas
pela importância das investigações do petrolão, doravante
enfraquecidas, mas porque este é mais um ato da destruição do bom
combate à corrupção no país. Com todo o arcabouço legal e jurídico que
está sendo montado – Lei de Abuso de Autoridade, decisões do STF e de
conselhos como o CNMP –, pode não tardar até que os corruptos estejam
todos livres enquanto aqueles que agiram dentro da lei para colocar os
ladrões na cadeia estejam no banco dos réus. Uma inversão que destruiria
qualquer esperança de um Brasil sem corrupção.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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