Este é um texto sobre uma ideia e sobre como essa ideia será recebida pelo público leitor. Quer ver? Via Gazeta, a crônica de Paulo Polzonoff Jr.:
Depois
de um dia especialmente tenso, minha mulher chega em casa e me encontra
com o olhar meio perdido. Oi, tudo bem?, pergunta ela depois de passar
os 15 minutos regulamentares adulando a Catota e reclamando da louça que
esqueci (realmente esqueci) de lavar. Respondo que não, que está tudo
horrível, que a Câmara “aprovou” a prisão do deputado Daniel Silveira e
que Jair Bolsonaro “dilmou” ao nomear um general para a presidência da
Petrobras.
Mas,
assim que as palavras saem da minha boca, caio no riso. Não é um riso
histérico nem desesperado. É um riso gostoso, de alívio mesmo. De quem
se percebe ridículo. Minha mulher fica ali, batendo o pezinho nervoso e
com a Catota no colo, esperando uma explicação – e também que eu me
levante para lavar a louça. Mas me falta fôlego. Me dói a barriga.
Aos
poucos, porém, o ataque de riso perde força. Solto um “ai, ai” que é
quase um pedido de trégua para mim mesmo. Chamo, então, minha mulher
para que ela se sente ao meu lado no sofá e repita a pergunta que fez ao
chegar em casa. Não a da louça. A outra. E dessa vez respondo que está
tudo ótimo, porque está mesmo. E tudo está melhor ainda porque sou capaz
de perceber.
Não fuja da raia, não!
Antes
que o texto avance, acho por bem reafirmar o óbvio, isto é, que sou
contra qualquer intervenção política na Petrobras. Também considero que o
Congresso errou feio ao permitir que o deputado Daniel Silveira
permanecesse preso. Mas entendo a primeira “tragédia”. E, com algum
esforço, sou capaz também de entender a segunda.
Interdição do debate público
Mas
este não é um texto sobre a importância das ideias liberais na economia
nem exatamente uma defesa da liberdade de expressão. Este é um texto
sobre uma ideia e sobre como essa ideia será recebida pelo público
leitor. Quer ver?
A ideia
A
ideia a que me refiro é aquela contida nos primeiros parágrafos. É uma
ideia mais filosófica do que política. Uma ideia sobre a real influência
das “decisões de macroimpacto”, como diria um coach, na vida de cada um
de nós.
Porque,
assim que minha mulher chegou em casa, pegou a Catota no colo e me deu
bronca por causa da louça suja na pia (um copo, um prato, uma colher, um
garfo e uma faca), me dei conta de que a submissão do Congresso ou a
intervenção de Jair Bolsonaro na Menina dos Olhos do PT não
influenciavam em nada a minha vida.
Como assim?!
Como
assim?!, perguntará um leitor mais afoito, sem nem me dar tempo para
tomar um copo d'água. Claro que o trator que passa por cima das
garantias fundamentais influenciará minha vida. Nem que seja
indiretamente. Afinal, meu trabalho é dar minha opinião. E é realmente
temeroso se ver diante da possibilidade de alguma represália por causa
de uma ironiazinha mal-entendida.
E,
enquanto consumidor de qualquer coisa, sei muito bem que uma
intervenção no preço dos combustíveis gerará consequências econômicas
desagradáveis no médio e longo prazos. A economia pode degringolar, eu
posso perder o emprego, se eu ficar desempregado o governo pode não ter
dinheiro para me pagar o Bolsa Família, se o governo tiver dinheiro para
me pagar o Bolsa Família, talvez ao fim do mês o dinheiro já não esteja
valendo nada. E assim por diante.
Vida pequena
Mas
“liberdade econômica” ou “liberdade de expressão” são conceitos
abstratos que brincam num parque de diversões próprio, ao lado de “amor”
e “oblívio” – para citar um poeta bissexto que prefere continuar
anônimo. Assim como “democracia” ou “fascismo”. Assim como
“interseccionalidade”. Assim como “livre mercado” e “intervencionismo”.
E
a vida pequena, a do bichinho que ronrona no colo da dona e da louça
por lavar na pia, é feita de conceitos muito concretos, que dialogam não
com o Mercado, a Humanidade, o Cidadão, o Consumidor, o Seguidor e
outros coletivos sem rosto nem alma. Os conceitos muito concretos da
vida pequena dialogam com os amigos, a mulher, os parentes, o vizinho,
os colegas de trabalho, esse cara aí que dorme pesado ao seu lado no
ônibus.
Assim, ó
E
é aqui que entra a interdição do debate público, um conceito abstrato
que às vezes foge de casa para, munido de uma adaga à qual darei o nome
de “A Impiedosa”, entrar na nossa alma e nos cegar para a beleza da vida
pequena. Essa interdição, provocada por aqueles que insistem em
confundir o parque de diversões dos conceitos abstratos com o
nem-tão-divertido-assim cotidiano, nos transforma em horríveis (e não
raro deturpadas) reduções cognitivas.
Funciona
assim, ó: se eu fico em silêncio é porque sou um covarde e estou me
omitindo. Se eu faço alguma crítica é porque sou inegavelmente um
idiota, um vendido, um comunista, um onde-estava-você-no-governo-do-PT.
Se elogio é porque sou assalariado de Steve Bannon. Se defendo é porque
estou passando pano. E, se tento compreender qualquer um dos lados de
qualquer querela, sou um isentão. Por fim, se reclamo da interdição do
debate público é porque estou de mimimi.
A saída
É tentador dizer que a saída é que não há saída. Mas há. E mais de uma.
A
primeira saída está em entender os conceitos abstratos e inatingíveis à
luz da vida pequena, e não o contrário. A segunda é conversar menos com
os coletivos sem rosto e alma e mais com a mulher que segura a gatinha
no colo. E, por último, há a saída proposta por Monteiro Lobato na
história “O Velho, o Menino e a Burrinha”, ecoando Shakespeare e os
estoicos: ser fiel a mim mesmo, sabendo-me incapaz de controlar a
opinião alheia.
Ou
Ou então tocar um tango argentino.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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