POLITICA LIVRE
Vivendo sozinha no chamado distrito 8, região mais pobre de Washington, a aposentada Mabel Harris, 72, não assistiu ao início da vacinação contra a Covid-19 nos EUA. Ainda era 14 de dezembro, e as imagens das primeiras doses do imunizante na cidade foram registradas a 10 km de sua casa.
Desatenta ao noticiário, soube por um amigo que, desde o mês passado, pessoas da sua idade já poderiam ser vacinadas nos oito distritos da capital americana e, somente na terça-feira (16), foi ao único centro médico de seu bairro para receber a primeira dose.
Apesar de gratuita, a vacinação adicionou um novo —e grave— contorno à desigualdade social e racial que assola os EUA.
Sem carro, computador ou acesso à internet em casa, Harris levou mais tempo para marcar seu atendimento. “Não tenho computador, não sei usar nada disso. Agendei minha consulta por telefone, e eles tiveram que me levar até o hospital”, explica a aposentada sobre o serviço de transporte sem custo oferecido pela prefeitura.
Agora, Harris faz parte dos 21% de moradores com 65 anos ou mais que já receberam ao menos uma dose da vacina na região mais carente de Washington —percentual bem abaixo dos 50% de imunizados no distrito 3, o mais rico da cidade.
Apesar de serem os mais atingidos pela pandemia, bairros pobres —e com maioria de moradores negros— são os que têm menor índice de pessoas vacinadas na capital dos EUA, em um abismo escancarado desde o início da campanha de imunização.
Com 92% de habitantes negros, o distrito 8 teve 94 agendamentos na primeira semana de vacinação, enquanto o distrito 3 e seus 5% de residentes negros chegou a 2.465.
Segundo o Departamento de Saúde do Distrito de Columbia, onde fica Washington, 30.800 moradores com 65 anos ou mais já haviam tomado ao menos uma dose da vacina até 14 de fevereiro —36,8% dos idosos da cidade. A maioria, porém, vive em bairros ricos, localizados nos distritos 1, 2 e 3, onde até 50% das pessoas dessa faixa etária já foram vacinadas. Nas regiões mais pobres, que englobam principalmente os distritos 5, 7 e 8, a porcentagem de idosos imunizados não chega a 28%.
Os números chamaram a atenção do Departamento de Saúde e da prefeitura da cidade, que tentam reduzir as diferenças com estratégias que vão desde mais agendamentos para vacinação disponíveis nas regiões carentes até um mutirão de porta em porta para avisar aos moradores que eles têm direito ao imunizante.
Funcionários dos escritórios de assuntos comunitários e de relações e serviços comunitários da Prefeitura de Washington estão sendo chamados de “amigos da vacina para idosos” e têm percorrido pessoalmente o distrito 8 para informar os residentes sobre como se registrar para receber o imunizante.
Além disso, oferecem serviços como transporte sem custo até os locais de vacinação —aquele utilizado por Harris— e retirada da neve de portas e calçadas para facilitar a circulação sob temperaturas que, nesta semana, chegaram a 7°C negativos na cidade.
O esforço das autoridades é garantir que as doses limitadas de vacina sejam distribuídas de forma mais igualitária, mas as discrepâncias ainda são gritantes, enraizadas na desigualdade sistêmica de séculos no país.
Desde o início da pandemia, Washington registrou 39.300 casos de Covid-19 e 992 mortes —74% das vítimas eram pessoas negras, que representam 46% da população da cidade.
Até o fim de janeiro, 17.520 dos que haviam recebido ao menos uma dose da vacina na cidade eram pessoas brancas, ante 9.967 negras.
Pesquisas recentes mostram que 60% dos americanos querem receber o imunizante. As pessoas negras, porém, representam historicamente a minoria mais cética nos EUA quando o assunto é vacina —apenas 42% afirmam estar dispostos a tomar a primeira dose.
As consultas para vacinação nos EUA podem ser feitas por telefone, mas há muita reclamação de linhas congestionadas ou de esgotamento dos horários disponíveis em poucos minutos. Dessa forma, acaba tendo vantagem quem consegue ser ágil no agendamento online, com acesso a computadores ou celulares com bons provedores de internet, além de carro e rotina flexível para chegar ao local de imunização.
No site da prefeitura, há o comunicado de que é preciso “um navegador moderno —como Chrome, Safari, Edge ou Firefox”— para que seja possível fazer o agendamento. “Internet Explorer [um dos mais comuns] não irá funcionar”, avisa o portal.
Harris afirma não ter ideia do que é um navegador e comemora ter conseguido agendar sua consulta por telefone. Mas ainda não tinha ouvido falar do mutirão porta a porta no distrito 8, nem sabia que o sistema estava abrindo mais vagas para vacinação no seu bairro.
A falta de informação entre os mais velhos e o desnível entre pobres, ricos, brancos e negros na campanha de imunização não se restringem a Washington.
De acordo com pesquisa da Kaiser Family Foundation, 6 em cada 10 americanos com 65 anos ou mais relatam não saber onde ou quando podem ser vacinados contra a Covid-19 —nos EUA, o cronograma é definido por cada um dos 50 estados.
Na capital, 105.575 doses de vacinas foram entregues até 13 de fevereiro, e 82% delas foram administradas.
A prefeita da cidade, a democrata Muriel Bowser, admite que a atual demanda de vacinas é “muito maior do que o fornecimento que estamos recebendo do governo federal”, a despeito dos problemas de logística e desigualdade na distribuição.
Nas últimas semanas, a prefeitura quadruplicou o número de atendentes para marcar agendamentos por telefone —agora são 200 pessoas em linha— e abriu quase 2.000 vagas para vacinação nos distritos mais pobres.
Em oito dias, o número de vacinados no distrito 8 aumentou de 1.258 para 1.650, mas o índice ainda está muito abaixo das 7.511 pessoas que já receberam a primeira dose no abastado distrito 3 —nacionalmente, os EUA têm vacinado pouco mais de 1 milhão de pessoas por dia.
Na região mais carente de Washington, além do hospital onde Harris recebeu sua dose, ao menos um supermercado e uma igreja têm aplicado a vacina nos moradores.
Uma funcionária do supermercado diz que tem imunizado até 20 pessoas por dia, mas não é sempre que consegue alcançar esse número.
As vacinas que sobram, explica, são aplicadas em pessoas que aparecem mesmo sem hora marcada. Muitas vezes, elas vêm de outros bairros —porque têm carro ou podem pagar pelo Uber em um deslocamento de quase 30 minutos e US$ 30 (R$ 160) desde o centro da cidade.
Marina Dias / Folha de São Paulo
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