Alberto Fernández quer se distinguir por práticas republicanas, mas a realidade latino-americana é mais forte – e tem caso no Peru também. Vilma Gryzinski:
O
ministro, o vice-ministro, mais outros ministros, os chefões sindicais,
o embaixador no Brasil, um ex-presidente, os filhos, as esposas, os
sobrinhos, os sogros, os amigos, as “amigas”, as secretárias, o
fotógrafo do presidente e até, em pelo menos um caso, o motorista.
Não
tem fim a lista de privilegiados, no poder ou em suas imediações, que
furaram a fila da vacina e receberam a Sputnik V num hospital de Buenos
Aires, o Posadas. Os mais VIP ainda tiveram uma facilidade extra: uma
equipe de vacinadores ia ao Ministério da Saúde para um atendimento
customizado.
O
ministério fica a cinco minutos da Casa Rosada, mas o presidente
Alberto Fernández parece ter caído do terceiro ainda quando o caso
explodiu.
Rapidamente,
ejetou do cargo o ministro da Saúde, Ginés González García. Promoveu
para a pasta a vice, Carla Vizzotti, que precisaria ter um nível
extraordinário de embotamento perceptivo para não captar o que estava
acontecendo à sua volta.
Também
rodou o sobrinho de Ginéz, Lisandro Bonelli, que também era, por uma
extraordinária coincidência, seu chefe de gabinete. Como nas grandes
festas, era ele o encarregado de controlar a lista VIP.
Fernández
fez a degola e viajou para o México, com a comitiva desfalcada por
alguns dos VIPs vacinados na surdina – e num avião particular
pertencente a Lionel Messi, alugado para a viagem oficial por 160 mil
dólares com o objetivo de oferecer privacidade sanitária ao presidente.
Antes
de viajar, mandou que fosse divulgada a lista completa dos vacinados,
achando que assim o caso – “reprovável”, segundo o adjetivo mais forte
que conseguiu encontrar – começaria a refluir. Teve o efeito oposto.
Quem acha que o nível de delírio é alto demais, mesmo para os padrões argentinos, ainda não ouviu a história toda.
O
escândalo da “Vacinação VIP” explodiu através do relato do veterano
jornalista Horacio Verbitsky, durante as últimas décadas o chefão do
jornal peronista de esquerda Página 12.
Verbitsky,
de 79 anos, contou a história em seu programa de rádio – aliás,
ex-programa, porque foi demitido – como se fosse um caso curioso, sem
atentar minimamente para a gravidade da vacinação paralela.
Disse
que, tendo decidido se vacina, ligou para o ministro – agora ex – da
Saúde, a quem conhecia “desde antes que fosse ministro”. Recebeu
instruções para ir ao hospital Posadas. No dia, um secretário de
González avisou por celular que “uma equipe especial viria de Posadas
para o ministério”. Era só passar para receber o tratamento especial.
Detalhe:
o ex-montonero, responsável por atentados brutais na época em que os
guerrilheiros peronistas de esquerda planejavam insuflar um golpe
militar, acreditando que seria um atalho para a tomada do poder (ah, os
delírios argentinos), foi um dos pioneiros nas denúncias de corrupção na
época do governo do recém-falecido Carlos Menem.
Mas
tem mais: ele denunciou um certo cardeal chamado Jorge Bergoglio quando
o argentino foi eleito papa, acusando-o de cumplicidade na prisão e
tortura de três padres de esquerda na época da ditadura.
Quando
a turma de Cristina Kirchner percebeu que não pegava bem falar mal do
papa argentino, Verbitsky tirou o pé do acelerador. Ele próprio é
acusado por um ex-companheiro de ter se tornado um informante da
ditadura.
No
programa de rádio em que confessou ter furado a fila, como se fosse a
coisa mais normal do mundo, ele disse ter cruzado no ministério com José
Antonio Aranda, um dos donos do Clarín, o jornal mais abominado pelos
peronistas e pela esquerda em geral. O Clarín deu a informação,
corretamente, e o desmentido de Aranda.
A
espontaneidade sem noção com que relatou seu caminho até a vacina é um
retrato definitivo de uma das maiores pragas latino-americanas: o
compadrio, o jeitinho, as facilidades ilícitas oferecidas pelo poder.
O
presidente do México, Andrés Manuel López Obrador, falou sobre o
assunto, com a habitual falta de tato, pouco antes de receber o
visitante argentino.
“Vai
haver vacinas para todos e não há preferência por ninguém”, espetou
ele, criticando “toda essa situação que se apresentou em vários países
de que há vacinação secreta para os de cima”.
“Toda essa situação” também está acontecendo no Peru. O “Vacinagate” envolve 400 funcionários do governo que furaram a fila.
“De
nada serviria um vice-ministro na UTI. Foi para proteger o líder da
resposta à pandemia”, alegou, com a habitual cara de pau, o
vice-ministro da Saúde, Luiz Suárez Ognio.
E
os familiares, funcionários e agregados. “Foi feita uma espécie de
bolha para bloquear por onde poderia vir a infecção”, repisou.
Outros
funcionários do ministério divulgaram uma carta na qual se desculpam
“pelos sentimentos gerados pela falta de uma comunicação adequada e
oportuna”. Entenderam bem? Foi tudo culpa da “falta de questionamento
institucional”. Dezesseis desses funcionários foram demitidos.
Entre
os políticos vacinados à sorrelfa estão o ex-presidente Martín Vizcarra
– o último de uma sequência difícil de acompanhar, pela alta
rotatividade – e a ex-ministra da Saúde Pilar Mazzetti.
O
escândalo peruano tem repercussões políticas comparativamente menores
porque o país atualmente tem um presidente interino, Francisco Sagasti,
eleito pelo Congresso basicamente com a missão de chegar num pedaço só
até a eleição presidencial de abril.
Para
o argentino Alberto Fernández, a situação é mais delicada. Visto,
universalmente, como um pau mandado de Cristina Kirchner, que resolveu
ser “apenas” vice-presidente, ele está sempre em terreno explosivo.
Procura
agradar a chefona e, ao mesmo tempo, imprimir um estilo menos
monárquico e voluntarioso ela. Entre as duas exigências, precisa evitar a
hecatombe econômica que paira permanentemente sobre o país.
“Devemos
trabalhar para que estas situações não voltem a se repetir”, disse
Fernández, lamentando também o “espetáculo mediático de escárnio
público” – empurrando a culpa para o “espetáculo”.
Fernández
continua a ter um índice de aprovação invejável, de quase 54%, apesar
dos estragos da pandemia na saúde pública e na economia. E sua
popularidade sobe quando um certo colega latino-americano faz,
absurdamente, campanha contra.
O
presidente argentino ainda tem espaço para uma quantidade razoável de
erros. Mas o colchão fica mais fino com casos como o da Vacinação VIP.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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